domingo, 27 de abril de 2008

O qué é notícia?

Em tempos de caso Isabella dominando as atenções da imprensa, publico aqui um texto do Rubem Braga que fala por si próprio.

Os Jornais

Meu amigo lança fora, alegremente, o jornal que está lendo e diz:

- Chega! Houve um desastre de trem na França, um acidente de mina na Inglaterra, um surto de peste na Índia. Você acredita nisso que os jornais dizem? Será o mundo assim, uma bola confusa, onde acontecem unicamente desastres e desgraças? Não! Os jornais é que falsificam a imagem do mundo. Veja por exemplo aqui: em um subúrbio, um sapateiro matou a mulher que o traía. Eu não afirmo que isso seja mentira. Mas acontece que o jornal escolhe os fatos que noticia. O jornal quer fatos que sejam noticias, que tenham conteúdo jornalístico. Vejamos a história desse crime. “Durante os três primeiros anos o casal viveu imensamente feliz...” Você sabia disso? O jornal nunca publica uma nota assim:
“Anteontem, cerca de 21 horas, na rua Arlinda, no Méier, o sapateiro Augusto Ramos, de 28 anos, casado com a senhora Deolinda Brito Ramos, de 23 anos de idade, aproveitou-se de um momento em que sua consorte erguia os braços para segurar uma lâmpada, para abraçá-la alegremente, dando-lhe beijos na garganta e na face, culminando em um beijo na orelha esquerda. Em vista disso, a senhora em questão voltou-se para o seu marido, beijando-o longamente na boca e murmurando as seguintes palavras: ‘Meu amor’, ao que ele retorquiu: ‘Deolinda’. Na manhã seguinte, Augusto Ramos foi visto saindo de sua residência às 7:45 da manhã, isto é, dez minutos mais tarde do que o habitual, pois se demorou, a pedido de sua esposa, para consertar a gaiola de um canário-da-terra de propriedade do casal”.
A impressão que a gente tem, lendo os jornais – continuou meu amigo – é que “lar” é um local destinado principalmente à pratica de “uxoricídio”. E dos bares, nem se fala. Imagine isto:
“Ontem, cerca de 10 horas da noite, o indivíduo Ananias Fonseca, de 28 anos, pedreiro, residente à rua Chiquinha, sem número, no Encantado, entrou no bar ‘Flor Mineira’, à rua Cruzeiro, 524, em companhia de seu colega Pedro Amâncio de Araújo, residente no mesmo endereço. Ambos entregaram-se a fartas libidações alcoólicas e já se dispunham a deixar o botequim quando apareceu Joça de tal, de residência ignorada, antigo conhecido dos dois pedreiros, e que também estava visivelmente alcoolizado. Dirigindo-se aos dois amigos, Joça manifestou desejo de sentar-se à sua mesa, no que foi atendido. Passou então a pedir rodadas de conhaque, sendo servido pelo empregado do botequim, Joaquim Nunes. Depois de várias rodadas, Joça declarou que pagaria toda a despesa. Ananias e Pedro protestaram, alegando que eles já estavam na mesa antes. Joça, entretanto, insistiu, seguindo-se uma disputa entre os três homens, que terminou com a intervenção do referido empregado, que aceitou a nota que joça lhe estendia. No momento em que trouxe o troco, o garçom recebeu uma boa gorjeta, pelo que ficou contentíssimo, o mesmo acontecendo aos três amigos que se retiraram do bar alegremente, cantarolando sambas. Reina a maior paz no subúrbio do Encantado, e a noite foi bastante fresca, tendo dona Maria, sogra do comerciário Adalberto Ferreira, residente à rua Benedito, 14, senhora que sempre foi muito friorenta, chegado a puxar o cobertor, tendo depois sonhado que seu netinho lhe oferecia um pedaço de goiabada”.
E meu amigo:
- Se um repórter redigir essas duas notas e levá-las a um secretário de redação, será chamado de louco. Porque os jornais noticiam tudo, tudo, menos uma coisa tão banal de que ninguém se lembra: a vida...

terça-feira, 1 de abril de 2008

Uma excrescência e um absurdo

O principal telejornal brasileiro, Jornal Nacional, da Globo, apresentou, nesta segunda-feira, uma matéria que abordou o fato do número de muçulmanos ter ultrapassado o de católicos no mundo todo. A única fonte entrevistada para falar sobre o assunto foi uma antropóloga italiana de uma universidade ligada à Santa Sé. De todas as coisas que ela deve ter falado para a repórter, a única que mereceu destaque na matéria foi quando ela disse que esse acontecimento se deve ao fato dos muçulmanos terem mais filhos do que os católicos. Uma excrescência jornalística foi não ter sido entrevistada algum líder religioso muçulmano ou alguma pessoa estudiosa do islã. Um absurdo foi a afirmação banal e preconceituosa da antropóloga ter sido relegada ao primeiro plano da reportagem. Ainda espero que o fato seja tratado de modo mais aprofundado pela imprensa brasileira. Já estou sentado, por via das dúvidas.