terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Na pequena livraria do bairro, fizeram amor pela última vez


Era véspera do aniversário dele quando um médico o chamou para uma conversa particular importante. Foi bem assim que ele disse. “Tenho de ter uma conversa particular importante com o senhor.” Devia ser algum tipo de chefe de equipe, aquele médico. Tinha cabelos grisalhos, quase brancos, e barba bem aparada. Devia beirar os 70 anos, mas estava bem conservado. Gestos firmes, passos de soldado. Voz tonitruante.
Fazia cinco dias que ela estava internada naquele hospital. A esposa sentira fortes dores de cabeça no domingo pela manhã e, à tarde, após os analgésicos não funcionarem, ele resolveu levá-la ao centro médico.
Ele não achava que era algo sério. Sua mulher costumava se queixar de enxaquecas, mas nunca sentira uma dor como aquela do domingo pela manhã. O médico disse para ele se sentar. Ele não gostou daquilo. Imaginou que seria uma conversa longa. E aquela não seria uma conversa qualquer. Era uma conversa particular importante.
Sentou-se. O médico também o fez.

Ele tinha 21 anos quando a conheceu. Foi em uma livraria, dessas acanhadas, de bairro. Ele era amigo do dono e costumava passar por ali uma vez por semana para saber das novidades e conversar um pouco. Ele gostava daquele velho livreiro. Um homem digno, não restavam dúvidas. Um resistente. Mantinha com afinco aquele negócio apesar da concorrência das grandes redes e das vendas pela internet. Não tinha pretensões de riqueza ou de faturar muito com a venda de livros. Mas gostava daquilo. Fazia aquilo há quase 50 anos, sempre no mesmo lugar. Era um homem culto e um grande leitor. Isso fazia dele o melhor livreiro da cidade. Pelos menos quem o conhecia achava isso. Ele estava olhando algumas obras que o livreiro havia separado para ele ver. Estava sentado em um baú antigo de carvalho que estava encostado na parede e que servia para guardar os livros reservados. Foi quando ela adentrou na loja e passou na sua frente.

O médico tinha um semblante sério. Difícil saber se ele estava realmente triste e preocupado ou se era a cara teatral que fazia sempre que tinha de dar uma notícia ruim para um paciente ou parente de paciente. Devia ser um pouco das duas coisas, provavelmente. Sabedor de que prolongar a conversa com palavras consoladoras e solidárias não faria com que a notícia fosse recebida com menos dor, ele foi direto ao assunto, como costumava fazer sempre que uma situação como aquela se repetia.

“Ela tem um tumor no cérebro.”

Ele não ouviu mais nada do que o velho médico disse depois disso. Ele não ouviu o médico dizer que era um tumor grande, maligno, localizado em um local impossível de ser operado e que os procedimentos médicos existentes e conhecidos não poderiam fazer nada para evitar o seu desenvolvimento, muito menos fazer com que ele regredisse. Ele não ouviu nada isso. Ele só ouviu o “ela tem um tumor no cérebro”. O médico explicou mais algumas coisas, o consolou com dois rápidos tapinhas no ombro esquerdo, se levantou, ajeitou o jaleco e foi embora. Devia ter mais notícias ruins para dar. Ou notícias boas. Tanto faz. “Ela tem um tumor no cérebro.” Ele ouviu apenas isso.

Ela passou à sua frente na livraria. Ele só viu uma pequena parte de suas pernas, seus tornozelos e seus pés. Ele estava passando os olhos pelas páginas de um livro. Era Sartre. Ela passou, com suas sandálias frescas, seus tornozelos finos e suas canelas alvas. E seu perfume. Era um perfume vivo, de flores do campo. Ele quase podia tocar aquelas pétalas. Levantou a cabeça e olhou para ela. Estava de costas, remexendo em uma estante. Cabelos negros. Blusinha preta de alças e uma saia que batia pouco abaixo dos joelhos. Ela virou a cabeça, de repente, e notou que ele a observava. Ela pareceu não se importar muito, mas tinha gostado daquele sujeito. Não sabia a razão, mas tinha gostado dele. Ele se sentiu envergonhado. Voltou a olhar para o livro de Sartre. Sua cabeça, porém, já não estava nas páginas. Enquanto ela estivesse por perto, nunca mais iria estar. De longe, o velho livreiro percebia tudo.

Caberia a ele informar a ela sobre o que causara a dor de cabeça. O médico disse que poderia fazer isso, mas ele achou melhor negar a “ajuda” profissional. Essa não iria ser uma hora de profissionais. Ele ficou por alguns vários minutos sentado naquele sofá. Talvez horas. Ele ficou tentando achar o jeito certo de contar aquilo. Desistiu. Não havia um jeito certo. Teria de ser do seu jeito. Certo ou errado, teria de ser do seu jeito. Levantou-se e saiu. Resolveu dar uma volta. Espairecer. O dia estava realmente lindo lá fora. Era a terceira semana da primavera. Ele foi ao parque. Precisava ver gente. Precisa descansar um pouco. Deitou-se sob a sombra de um ipê, entrelaçou os dedos embaixo da cabeça e, olhando para o azul do céu, misturado com o lilás das flores e o branco das nuvens, refez os passos da sua vida, desde aquele dia na pequena livraria do bairro, até o momento em que o médico lhe disse o que ela tinha. Havia sido tudo tão belo. Os olhares foram belos. Os abraços foram belos. Os beijos foram belos. Eles tiveram belíssimas discussões. O modo como ela arrumava a gravata dele era belo. A maneira como ele fechava o zíper do vestido dela era bela. Ele não estava triste pela doença. As pessoas adoecem, é normal. Ele estava triste com o sentimento que lhe tomava por inteiro e lhe dizia que aqueles momentos tão únicos, tão mágicos, poderiam não se repetir novamente. Ele estava triste. Levantou-se e iniciou a caminhada de volta ao hospital. Era preciso falar com ela.

Ela pediu ajuda para ele. Não conseguia encontrar um livro específico. Ele ficou um pouco desconcertado, meio sem saber como agir, se atrapalhou, deixou cair o Sartre no chão. Ergueu-se e encarou-a. Nossa, ela era linda. Ela falou algumas coisas que ele não prestou muita atenção. Seus olhos eram verdes feito as águas do Caribe. Ele ajeitou os óculos e a ouviu falar em Hermann Hesse. “Sim, Hermann Hesse!”, ele disse, abruptamente. Ele sabia exatamente onde estavam os livros de Hermann Hesse. Como não iria saber? Era Hermann Hesse, e, por alguns anos, no período logo depois da faculdade, quando ele estava desempregado, aquela livraria de bairro era a sua segunda casa. Na verdade, ele se sentia mais à vontade ali do que no apartamento que dividia com outros dois jovens estudantes. Sabia tudo sobre aquela livraria. Onde estavam os livros, quais os preços, se tinha edições específicas de algumas obras. Indicou com a mão a direção a ser tomada e pediu para ela o acompanhar. Faziam, ali, o seu primeiro passeio juntos.

Na porta, do lado de fora, pouco antes de entrar no quarto do hospital, ele respirou fundo e pensou brevemente e pela última vez em como falar aquilo. Ele não queria aparentar muita tristeza, pois isso não faria bem a ela. Mas ele estava triste, muito triste, e sabia que sua expressão o iria denunciar, de uma forma ou de outra. Passou as mãos no rosto, deu um suspiro, e entrou. Ela estava deitada de lado, olhando complacentemente para a janela, que estava aberta e mostrava um céu ainda claro de fim de tarde primaveril. Ele entrou devagar, em silêncio e a admirou por alguns segundos. Ela estava muito bonita. Os últimos raios de sol do dia riscavam o seu rosto e faziam seus cabelos cintilarem. Era uma pintura. Ele nunca mais esqueceria aquela imagem. Aproximou-se e sentou ao pé da cama. Ela se virou, olhou para ele, e sorriu. Ela costumava sorrir muito. Era uma otimista. Sempre procurava ver o lado bom das coisas. Sempre. Ele perguntou como ela estava, como se sentia. Ela disse que a dor de cabeça tinha passado com o efeito dos medicamentos. E disse para ele nunca mais deixá-la sozinha naquele quarto. E disse ainda que os médicos não tinham conversado com ela sobre a causa da forte dor de cabeça e que achava que não deveria ser nada demais, apenas mais uma crise de enxaqueca, só que mais intensa desta vez. Ele ficou em silêncio. Apenas ouvindo-a. Ele adorava ouvi-la. Saber como havia sido o dia dela, seus feitos, suas conquistas, seus problemas. Somente ouvi-la. Sem pressa. Sempre preferiu ouvir a falar. Ela era o seu equilíbrio. Sempre preferiu ouvir a falar.

Ir àquela pequena livraria se tornou um hábito na vida deles. Foi ali que tudo começou. Iam todas as semanas. Na maior parte das vezes nada compravam. Mas folheavam muito, tocavam muito, conversavam muito. Conheciam muito dos autores e muito de si mesmos. Foi ali que se encontraram pela segunda vez. Ela estava sentada no chão, lendo, com as costas escoradas na estante. Foi ali que deram o primeiro beijo. Foi ali que ele a pediu em casamento. Foi ali que tudo começou. Foi ali que tudo cresceu.

Ele se aproximou dela, sentou-se mais perto. Tomou-lhe as mãos entre as suas e lhe deu um beijo na testa. Ela deixou escapar uma lágrima do olho direito. Ele aparou a gota com o dedo. Ela sabia que ele não tinha boas notícias para dar. Ela o conhecia bem. Ele sabia que ela já havia percebido tudo. Ele a conhecia bem. Adormeceram. Lá fora, a chuva caía quente.

Era bem cedo pela manhã quando ele a acordou. Era madrugada, na verdade. A lua brilhante deixava a noite clara. Saíram em silêncio pelo corredor. Passo após passo. Cruzaram o saguão e ganharam a rua. Seguiram caminhando. Cruzaram o parque. Pularam sobre as poças d’água. Correram de mãos dadas. Pararam em frente à pequena livraria do bairro. A porta estava aberta, pois ele havia acordado no meio da noite e feito um telefonema para o velho livreiro, pedindo um favor. Entraram em silêncio. Transformaram aquilo em um ritual. Percorreram os corredores. Tocaram. Cheiraram. Sentiram. Fizeram amor pela última vez. O sol aparecia tímido quando eles fechavam a porta da pequena livraria. A vida havia valido a pena. A história havia sido escrita. Ponto final.