quarta-feira, 29 de abril de 2009

História e estórias

Em uma noite dessas peguei-me a pensar sobre como os caminhos que eu trilhei até aqui, desde as escolas por onde passei, passando pela faculdade e pela influência familiar fizeram com que eu me tornasse o que sou hoje.
Viajei, então, para o meu passado e relembrei os meus nove anos de ensino fundamental, do jardim de infância à oitava série. Foram tempos bons aqueles. Muita diversão, muitos amigos, uma paixão adolescente e algumas fugas cinematográficas. Sempre fui um cara super tranquilo e amigável. Fiz muitos amigos durante aqueles anos. Não me lembro de ter feito inimigos e nunca briguei com ninguém no colégio, o que me transformava em um Gandhi, na medida em que quase todo mundo brigava de vez em quando. O colégio era público. Escola Estadual de 1º Grau Professora Violeta Magalhães. Sua localização é no pé do Morro do Osso, bem perto ao conjunto habitacional dos bancários e de um lugar que sempre chamamos apenas de “o morro”. “O morro” era um lugar um tanto quanto temido e respeitado. Seus moradores eram em sua grande maioria negros e pobres. Tinha que ser macho para entrar no “morro”. Perdemos algumas bolas de futebol que passavam por cima dos muros da escola e caíam em uma ruazinha do lado. Poucos tinham coragem de ultrapassar àquele muro para ir buscá-las. As exceções eram feitas aos colegas que moravam ali. Praticamente todos eram meninos e meninas bastante pobres e muito legais. Eram francos. Com eles não tinha muita frescura. Se não gostavam de algo, antes de conversar ou de pedir explicações mandavam um murro na cara do sujeito. Depois perguntavam. Era o jeito deles. Não acho que era errado. Eu morava no Condomínio Jardim Vitória Régia. O VR era um condomínio de classe média. A maioria dos moradores era de classe média baixa, como a minha família, porém, o condomínio sempre foi muito bonito e vistoso para quem olhava de fora. Em razão disso, nós que morávamos lá éramos vistos como os “filhinhos de papai”. Mesmo os alunos que, como eu, passavam longe, mas muito longe mesmo, de ser filho de papai era taxado assim. A grande maioria dos alunos do colégio era pobre, ou melhor, muito pobre. Boa parte dos colegas que tive iam na escola somente para comerem o que era oferecido na merenda escolar. Merenda essa que era quase sempre a mesma, variando entre sopa de feijão, sagu, um mingau estranho e carreteiro. Eu, geralmente, levava lanche de casa. Nada muito requintado, um sanduíche e suco, ou pão feito pela minha mãe com alguma geléia, coisas simples assim. Para quem ainda não sabe, a minha infância e adolescência, assim como a do meu irmão mais velho, foi totalmente sem luxos. Meu pai era metalúrgico e minha mãe dona de casa. Ele nunca ganhou muito e, além disso, tinha de pagar o condomínio todos os meses, o que diminuía ainda mais o dinheiro disponível. Nunca passei fome, muito pelo contrário, é bom deixar bem claro. Minha vida até o fim de minha adolescência foi bem simples, com várias restrições, mas nunca me faltou nada do essencial.
Bom, voltando ao meu primeiro grau, lembro que até a quarta série tinha alguns preconceitos com os alunos que moravam no “morro”. Achava-os grosseiros, violentos e mal-educados. Em razão disso, meu círculo de amizades se restringia aos colegas que também moravam no VR e aos que vinham de outros lugares da zona Sul. A quinta série foi um divisor de águas. Desde o jardim de infância até a quarta série eu estudei com a mesma turma, que era a dos mais “certinhos” do colégio, ou seja, os “filhinhos de papai”. Entretanto, não sei porque, quando da divisão das turmas de quinta série eu fui separado da minha e passei a fazer parte da turma dos repetentes, somente um pessoal mais velho, a maioria moradora do “morro”. Confesso que fiquei bastante chateado com isso no começo, acho até que chorei, por me separar dos colegas antigos e por medo da nova turma. Agradeço até hoje à desconhecida pessoa que colocou na turma 54 daquele ano. Durante aquele ano aprendi mais sobre a vida do que no resto do primeiro grau. Os meus novos colegas eram bem diferentes de mim. Eu era o estudioso, o cdf, que nunca tirava uma nota abaixo de 9. Eles eram os rebeldes, ou os “maloqueiros” como eu os chamava antes de conhecê-los. Aprendi demais com eles. Aprendi a não julgar as pessoas pela cor, pelo lugar onde moram ou pela aparência física. Com eles não existia política da boa vizinhança, falavam tudo na cara, se não gostavam de algo chamavam para resolver lá fora. Não existia hipocrisia e cinismo. Tudo era dito frente a frente e na hora. Grande turma 54. Todos eles eram no mínimo dois anos mais velhos do que eu. Passei a ser amigo do pessoal “barra pesada do colégio”. Eles eram durões, mas somente por fora. Percebi, com a convivência, que a maior parte deles havia criado essa imagem de força para compensar uma fraqueza que tinha origem lá na casa deles, na desestruturação familiar (somente uns 6 ou 7 de uma turma de quase 30 moravam com o pai e com a mãe). Lembro-me que tive altos papos com eles, falando até de política, coisa que, nem na oitava série, já de volta à minha turma original, a gente falava ainda. Grandes mestres aqueles meus amigos do “morro”.
Não consigo me recordar ao certo quantas vezes tive de matar aula e pular o muro da escola, saindo mais cedo, para escapar de uns caras grandões que pegavam no nosso pé, no pé dos “filhinhos de papai”. Consegui, assim, evitar muitas surras e ganhei muita agilidade na sequência “pega a mochila, corre para os fundos da escola, joga a mochila por cima do muro, pula o muro, pega a mochila e vai correndo para casa”. Recordo-me também, muito claramente, de dois fatos ocorridos no Violeta que me marcaram muito. Um foi o incêndio do colégio. Vários pavilhões de madeira pegaram fogo. Ninguém soube o motivo. Foi triste ver aquela humilde escola, onde tanta gurizada também humilde tentava aprender coisas para se dar bem na vida, queimando. As aulas demoraram para serem retomadas. O outro episódio também foi traumático. Alguns ladrões que haviam cometido um assalto pelas redondezas adentraram no pátio da escola para se esconder. A polícia foi chamada. Não demorou muito para o tiroteio começar. Estávamos lá, todos nós, deitados no chão, ouvindo os sons dos tiros, morrendo de medo e rezando para aquilo acabar logo. O resultado foi que nenhum aluno se feriu e eu não me lembro o que aconteceu com os ladrões.
Basicamente, o meu primeiro grau foi isso. Ou isso, pelo menos, foi o que me marcou a ponto de eu recordar até hoje. Ah, claro, teve a paixão adolescente também. Mas isso todos tivemos, e deve ter sido muito parecida em todos os casos. Portanto, não me aprofundarei no assunto. Quem sabe em uma próxima oportunidade. Vamos agora para o segundo grau.
No segundo grau, já de cara, outra separação. A maior parte dos meus amigos foi para o colégio Padre Réus, que fica no bairro Tristeza. Eu, também não sei por que, fui para o Colégio Estadual Júlio de Castilhos. Reclamei bastante, briguei, fui com a minha mãe até a SEC, mas não deu em nada. O famoso e temido Julinho era o meu destino.
O colégio era muito famoso por ser um “antro de maconheiros”. Lembro-me muito bem de algumas pessoas conhecidas dizerem “bah, lá é boca braba”. Aquele colégio foi onde eu realmente descobri o mundo. Três mil alunos. Dois prédios gigantescos, corredores, grandes, câmeras de vigilância, pixações, um campo oficial de futebol, traficantes aliciando os alunos em frente ao colégio, colegas indo para o recreio e voltando com os olhos vermelhos e todos risonhos. Ali eu saí da zona Sul, que era o meu mundinho até então. Ali eu tinha colegas de todos os cantos da cidade, de outras cidades e até de outros estados. O Julinho foi uma verdadeira escola para mim, no sentido mais amplo da palavra. Ali eu via colegas de 15 anos ficarem grávidas e abandonarem os estudos, vi verdadeiras pancadarias em frente e dentro do colégio, que deixavam aquelas briguinhas do Violeta no chinelo, com cadeiras voando (o que fazia com que nós, brincando, fazendo uma alusão à Marx, disséssemos que estávamos presenciando ao vivo, em nossa frente, uma luta de classes). As drogas existiam e eram vistas a qualquer hora no colégio, seja na frente, nos corredores ou até, algumas vezes, dentro da sala de aula. Entretanto, ninguém era obrigado a usá-las. Durante os meus três anos lá, nunca me ofereceram nada. Conheci pessoas bacanas lá e mudei a minha visão sobre as expressões “maconheiro” ou “drogado”. Os imensos corredores, escuros e repletos de grades a cada cinco ou seis metros davam a impressão de que estava em um presídio. Mas só a impressão. Os alunos dali eram livres. Impressionei-me muito no primeiro dia de aula quando um colega não pediu para o professor para sair da sala. Apenas se levantou e saiu. Depois de uns 15 minutos ele voltou e o professor não falou nada, não pediu nenhuma explicação. Éramos livres para fazermos o que quiséssemos. Grande escola da vida, o Julinho. Lá, eu aprendi a olhar nos olhos na hora de falar.
Olhando para trás e revivendo um pouco dessas duas etapas da minha vida, vejo que muito do que eu sou hoje devo àquelas pessoas que cruzaram o meu caminho. Aos meus amigos “filhinhos de papai”, aos meus amigos “do morro”, aos caras que queriam dar surras em nós, às sopas de feijão, à dor do incêndio, ao trauma das separações, aos colegas “maconheiros”, aos “brigões”, aos “maloqueiros”, às assanhadas do Julinho (lembro-me de uma frase escrita em um banheiro do colégio que dizia “se puta fosse flor, o Julinho seria um jardim”), aos professores, desde os certinhos até os excêntricos (como um que ia dar aula caindo de bêbado e nós tínhamos que o ajudar a achar a sala certa), a todos. Hoje sei que muitos deles não tiveram as mesmas oportunidades que tive, alguns estão presos, uns três já morreram e a maioria mal conseguiu terminar o segundo grau. Sinto que tudo que consegui até aqui, consegui porque acabei tirando um pouquinho de cada um deles. Sentia-me um estranho no ninho no começo da faculdade quando via que todos os meus colegas e hoje meus melhores amigos tinham feito toda a sua formação escolar em instituições privadas. No começo cheguei a pensar que aquele não era o meu lugar. Todo o meu caminho trilhado até ali era o mesmo dos meus colegas de primeiro e segundo graus, mas eles não estavam ali comigo. Eles tinham ficado para trás. É lógico que eu me esforcei muito para chegar até aqui. Passei no vestibular com uma baita média, no tempo em que não existia o sistema de cotas para egressos do ensino público e eu, mais do que ninguém, posso falar da precariedade do ensino público. Mas sei também que isso se deu em razão da forte estrutura familiar que eu tenho, porque eu não precisei trabalhar quando adolescente e porque eu morava em um lugar até certo ponto tranquilo e seguro. Coisas que a maior parte deles não teve. Sinto que devo a eles e tenho de pagar de alguma forma. O jornalismo talvez seja um bom meio. Ainda não tenho certeza de que é, mas talvez seja. Tenho me esforçado para compensar a dívida. Penso muito neles toda vez em que sento em frente ao computador e começo a escrever uma matéria de cunho mais social. Penso que tenho que pagar um pouco dessa dívida com o que estou escrevendo. Vendo o pouco que eu já fiz até agora, acho que já comecei a saldá-la. Mas, ainda falta bastante. Tranquiliza-me saber que ainda há muito pela frente.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Joaquim Barbosa detona Gilmar Mendes

Esse bate-boca foi na sessão do STF de ontem. Grande Joaquim Barbosa. Disse na cara do Gilmar Mendes tudo o que muita gente gostaria e dizer mas não pode ou não tem coragem. Palmas para ele.

domingo, 19 de abril de 2009

Pressão = ação

É engraçado como um governo só funciona na base da pressão. Estou falando mais especificamente da prefeitura de Porto Alegre. A comunidade do bairro Restinga, na zona Sul da Capital, estava correndo o risco de perder uma verba garantida pelo MEC para a instalação de uma escola técnica federal no bairro. A verba estava garantida, o terreno, doado pela prefeitura, também. Entretanto, existia uma coisa que impedia que o MEC enviasse seu corpo técnico para o local para analisar a área e preparar o projeto: o mato.
A equipe do ministério não conseguia chegar ao local porque a prefeitura não roçou e demarcou a área doada. Além disso, não havia sido aberto um caminho no matagal para que os técnicos pudessem chegar ao local. Pude conferir isso in loco, quando fiz uma matéria sobre o assunto, em novembro do ano passado. Passados 5 meses, a prefeitura não havia feito absolutamente nada. Foi então que o tema voltou novamente à mídia, o governo federal botou uma pressão dizendo que se o executivo municipal não tomasse alguma atitude para resolver o problema, a comunidade perderia essa grande oportunidade de dar um gigantesco passo em direção ao desenvolvimento. Pois, não deu outra. A prefeitura mandou na sexta-feira passada cerca de 30 homens e até um trator para limpar o local. Enfim, parece que a escola irá ser construída. Mas, demorou para a prefeitura se mexer. Coisa que, aliás, é uma constante. Há quanto tempo não temos uma grande obra de infraestrutura sendo feita na cidade? A grande preocupação com a Copa do Mundo de 2014 na Capital, pelo menos até agora, não resultou em nenhuma obra concreta para a cidade. Projetos existem muitos. As gavetas das secretarias municipais já devem estar transbordando de papel. Já chegou a hora de agir. Quanto tempo se levou para fazer a 3ª Perimetral? E o conduto Álvaro Chaves-Goethe? A Copa é daqui há 5 anos e nada foi feito. Porto Alegre está parada. Grandes obras demandam bastante tempo para serem feitas. Está na hora de colocar a mão na massa.

sexta-feira, 3 de abril de 2009

O sublime sentimento

Eram umas 20h30min mais ou menos quando eu peguei o ônibus ontem, pós-trabalho, rumo à minha casa, na zona Sul de Porto Alegre. Seria mais uma daquelas viagens maçantes de 20 minutos, de pé, tendo de aguentar as bruscas freadas do motorista que conduzia o coletivo. Seria, mas não foi.
Subi no ônibus e me coloquei ao lado de um banco em que duas meninas estavam sentadas. A minha colocação ali foi totalmente casual. O que se seguiu foram cenas sujas do mais puro preconceito e cenas lindas do amor sendo expressado sem pudores.
As duas meninas, e digo meninas porque elas deviam ter entre seus 16, 17 ou, no máximo, 18 anos, se acariciavam com um carinho comovedor. Tocavam-se, alisavam-se. Uma mexia no cabelo da outra. Uma delas, a morena, recostou a cabeça sobre o ombro da outra, a loira, enquanto esta lhe fazia cafuné. E assim foi durante todo o trajeto. Elas se olhavam ternamente nos olhos e se beijavam. Sem vergonha. Sem medo do que os outros iriam pensar. Elas se amavam e isso bastava para as duas. Estas eram as cenas lindas e comovedoras.
As cenas sujas foram estas. Pessoas se olhando e fazendo sinal de negativo com a cabeça, olhares de canto de olho para elas seguidos de cochichos. Uma mãe com seu filho, que havia entrado depois e sentou no banco atrás das meninas, quando as duas se beijaram, se levantou e foi para a parte da frente do veículo, permanecendo de pé. Duas senhoras que estavam sentadas no banco atrás de mim falavam, sem a preocupação em baixar a voz. “Que absurdo. Não se respeita mais ninguém. Duas gurias bonitas fazendo isso. Não sei como o cobrador deixa”. Isso foi o que eu ouvi e o que eu vi.
Eu fiquei ali. Parado. Não me incomodei nem um pouco com as meninas apaixonadas. Pelo contrário, achei toda a cena de uma beleza ímpar. Elas eram uma ilha de beleza cercadas por um oceano de sujeira.