sábado, 10 de março de 2012

Sobre um soco na ponta do queixo (e um velho gato preto no telhado)

Foi como um tapa na cara. Hmm ... não, não. Definitivamente não. Fez menos barulho, mas foi mais forte. Bem mais forte. Foi como um soco. Um cruzado de direta no queixo. Daqueles rápidos, que você nem sabe de onde veio. Olhos abertos e BOOOM. Quando você retorna à consciência, está caído. Não há sangue nem qualquer outra marca física. Mas você está caído e não sabe por quanto tempo está assim. Foi um belo soco. Realmente foi.

Ele voltou pra casa. Simplesmente pegou suas coisas que haviam se espalhado no chão úmido, as colocou na mochila e foi pra casa.
Não havia muito o que fazer. Mais do que a força, o que o derrubou foi a surpresa. Ele não esperava por aquele soco. E, assim, ele não soube como reagir. Caiu. Levantou. Foi pra casa.

Ele foi dando passos descoordenados. Às vezes rápidos e sequenciados. Pé após pé após pé após pé. De repente, o ritmo era outro. Arrastado, modorrento. Pé ........................ após pé ............................ após pé .....................

A cabeça. Ora baixa. Terra, areia, granito, cimento, brita, asfalto (BIIIIIIIIII!!!! “Sai do meio da rua, abobado!”), lajotas, barro, poça d’água (havia chovido pela manhã). Ora alta. Azul, branco, azul, branco, azul, cinza, azul, branco (olha! um coelho nas nuvens).

E, assim, ele foi. E começou a pensar o que poderia ter motivado aquele murro. Não conseguiu lembrar de nada que pudesse ser a causa. Pequenas rusgas, nada demais. Nada demais para ele, pelo menos. Algumas discordâncias, mas eram tão poucas... e então pensou que, talvez, não houvesse razão e que (talvez) as coisas não precisem de razão para acontecer. Mas isso não fez muito sentido para ele. Não naquele momento. Deveria haver uma razão. Não precisava ser uma boa razão (e ele não achava que fosse, seja ela qual fosse, SE ela existisse). E ele conjecturou e conjecturou e conjecturou (mesmo não tendo a menor ideia do significado da palavra “conjecturar”). Quiçá, tivesse sido um ato instintivo, algo impensado, emocional, quase irracional. É, era uma possibilidade. Mas, ele, sinceramente, não acreditava muito nessa possibilidade.

O fato é que foi um belo de um soco no queixo que o levou a nocaute instantaneamente. Pelo menos, ele sentiu como se tivesse sido um. Na hora nem doeu. Ele simplesmente apagou. Mas depois... ahh, depois doeu e doeu muito. E mal ele fazia ideia de quanto e por quanto tempo ainda iria doer.

E ele seguiu rua após rua. Quadra após quadra. Ele ainda estava um pouco tonto. O primeiro murro na ponta do queixo a gente nunca esquece. E aprendemos com ele. Ele aprendeu com aquele soco. Aprendeu a se esquivar, aprendeu a se proteger, aprendeu a prever o golpe e, assim, estar preparado quando ele vier. E ele veio. Algumas vezes mais.

Realmente, aquele soco mudou a vida dele. Aquele soco o mudou. Hoje ele agradece a quem lhe deu a pancada (até ali também né, até ali).

E quando ele se deu por conta, estava em frente a uma porta. Não bateu nem tocou a campainha. Colocou a chave e girou. E então, estava em casa. Entrou no quarto. Jogou a mochila no chão (ali no canto, ao lado do violão). E sentou na cama. E, com os cotovelos sobre os joelhos, pôs as mãos no rosto. E chorou. Não chorou muito, porque ele não é muito de chorar. Mas chorou. Um pouco. E não chorou pela dor física da pancada. Chorou pelo inesperado. Chorou pela falta de motivo. Ele já enxugava as lágrimas quando ouviu um barulho. Era um fim de tarde bem silencioso. Daqueles em que o barulho de uma gota que cai da torneira que não foi bem fechada ecoa como um trovão. Mas ele ouviu algo que quebrou aquele microssistema que estava ali posto. Ele, então, foi à janela e o viu. Um gato. Preto. Um gato preto sobre o telhado da casa do vizinho. Era um gato grande, desses que já não tem a agilidade de outrora, mas possuem a sabedoria que somente os velhos bichanos têm. O gato lambia-se tranquilamente, sem pressa, como se tivesse todo o tempo do mundo. Naquele instante, aquele era o seu mundo. Nada era mais importante para aquele gato preto do que lamber-se. E lambia e lambia e lambia. Com calma, cuidadosamente, devagar. Para aquele velho gato, lamber-se era mais do que uma necessidade. Para aquele velho gato preto, lamber-se era uma arte. Uma arte executada e aperfeiçoada com o tempo.
E ali ficaram ambos, o gato e ele. O gato praticando seu ato, que mais parecia algum tipo de meditação, algo quase transcendental. E ele olhando. Em completo silêncio. Completa harmonia. Ele não sabe precisar por quanto tempo permaneceram ali. Podem ter sido segundos, podem ter sido minutos, parece que foram horas. E então o gato parou e virou a cabeça. E o gato olhou pra ele. O velho gato preto sobre o telhado o mirou com aqueles aguçados olhos de felino. E olhou. E olhou. E olhou. E seguiu olhando. E olhou. E olhou. Ele sentiu que algo estava acontecendo ali. Algum tipo de conexão. Algo que, se ele estivesse nos anos 60 sob o efeito de ácido, faria muito sentido.

BREVE EPIFANIA

Entra no carro, capota abaixada, aumenta o volume (alto, BEM ALTO) acelera e acelera, vento no cabelo, olhos no céu e vai. Ai ai ...

FIM DA BREVE EPIFANIA

O gato parou. O gato olhou pra ele. O gato voltou a se lamber.

Um pardal inocente pousou no telhado, perto do velho gato, que deu uma olhadela e seguiu seu ritual. Não era hora de caçar. Era hora de lamber. O pardal voou e foi embora.

E, então, ele deixou o gato seguir sua prática e deitou-se na cama. E pensou. Pensou que ele devia ser como o gato (não, ele não passaria a se lamber deitado sobre o telhado do vizinho). Que todos deveríamos ser como aquele velho gato preto. Que ele devia viver o instante. Que todos deviam viver o instante. Usar tudo o que aconteceu e o que aprendeu no passado, para viver intensamente o instante.  Pensou que não havia como mudar o passado. O que aconteceu, aconteceu. Ponto. Doía. Doía bastante. E a dor persistiria por mais algum tempo. Mas, cedo ou tarde, essa dor iria cessar. Mas o soco já havia sido desferido. Ele já havia recebido o impacto. Nada mudaria isso. Agora era hora de parar e curtir o momento. Agora era hora de digerir aquilo e, assim, aprender a se defender quando da próxima vez. Agora era hora de se lamber.

E ele fechou os olhos. E dormiu. Profundamente. Como um velho gato sobre o telhado.