quarta-feira, 23 de março de 2011

Daquilo que não é dito

Uma palavra. Não mais do que uma palavra pode ser necessária para que tudo aconteça. Uma palavra. Não mais do que uma palavra pode ser necessária para que nada aconteça. A palavra tem esse poder. Uma palavra tem esse poder.
Algumas delas em sequência podem significar o tudo. A ausência delas, em determinado instante, pode significar o nada. Muito mais do que o que você faz, são as palavras que indicarão o que será da sua vida. Um “sim” dito na hora errada, um “não” dito no momento certo. A vida pode ser apresentada a partir das palavras que são ditas.
Mas não só delas.
A vida também pode ser apresentada a partir das palavras que não são ditas.
As consequências daquilo que não é dito são muito maiores e mais duradouras do que as consequências daquilo que é dito. À palavra dita pode se seguir um pedido de desculpas, um arrependimento. À palavra dita pode se alegar que houve uma má interpretação, que não foi aquilo que se quis dizer. Aquilo que é dito pode ser esquecido com o tempo, tanto por quem disse quanto por quem ouviu.
Aquilo que não é dito pode produzir efeitos devastadores em quem deixa de dizê-lo. Sofre em silêncio aquele que deixa de dizer. E aquele que deixa de dizer não o faz seja querendo fazer (e daí o sofrimento é maior), seja porque a oportunidade de fazer passou (ou ainda não chegou).
Aquilo que não é dito.
É uma experiência sui generis imaginar como você estaria agora se tivesse dito todas as coisas que quis dizer e não disse. Não há como recordar de todas elas, é evidente. Porém, as mais importantes, as que marcaram mesmo, estão lá, guardadas, em algum lugar. Basta um esforço, e elas brotarão.
Provavelmente você manteve alguns amigos (amigos mesmo?), alguns namoros, alguns empregos, algumas relações sociais, por não ter dito o que queria dizer. Muito provavelmente também, você deixou de fazer alguns amigos e deixou de iniciar namoros (empregos e relações sociais talvez não) em razão disso.
“As palavras têm a leveza do vento e a força da tempestade.” O escritor e poeta francês Victor Hugo tinha a noção da carga de importância e significados para a vida que as palavras têm. Nada é mais angustiante para um poeta do que não encontrar a palavra exata para descrever aquilo que está sentindo no momento em que escreve. E nada é mais torturador do que uma palavra que fica presa na garganta, que insiste em não sair, que quase te impede de respirar. A palavra que não é dita.
As palavras que não são ditas, quase sempre, são aquelas que vieram à boca depois de se ter pensado sobre o assunto. Palavras que não são ditas são palavras pensadas, são palavras maturadas. Palavras que não são ditas, geralmente, são frutos de reflexão. Por isso elas incomodam tanto, por isso machucam tanto. Por isso elas arranham a boca tentando se libertarem. As palavras que não são ditas são convicções (naquele momento são). Não são ideias passageiras, ou resultados de alguma emoção. As palavras que não são ditas ferem tanto porque não saem da cabeça de quem não as diz. Elas ficam ali, martelando, todo o tempo, como se dissessem “hey, estou aqui, só há um modo de você se livrar de mim, e você sabe como”.
Nossa vida, essa que nós vivemos e com a qual covardemente nos conformamos, é feita daquilo que é dito. A vida que queríamos viver, a vida que pulsa em nossa mente e em nosso coração, a vida libertadora e libertária, a vida desafiadora e rebelde, a vida que está nos nossos sonhos, a vida no seu sentido mais amplo e profundo, essa é feita daquilo que não é dito.
E o que fazer quando é dado o momento? O que fazer quando as palavras rompem seus casulos e se dirigem em direção à luz? O que fazer quando você quer dizer algo, mas as palavras ficam ali, presas, sufocando-o?
A resposta mais fácil e clichê seria um simples “diga-as, expulse-as do seu corpo e se liberte”. Sabemos, porém, que não é simples assim. A razão de palavras não serem ditas está, em boa parte das vezes, intrinsecamente ligada a um sentimento com o qual é difícil de se lidar: o medo.
Já disse em outra ocasião que o medo é algo natural, existe e deve existir e que, entretanto, nada que realmente se quer fazer deve deixar de ser feito por causa do medo. É assim que deveríamos agir se fôssemos pensar em algo mais próximo do ideal. Todavia, não vivemos a vida ideal.
Aquilo que não é dito não é dito por que há um motivo significativamente forte para que assim seja. Significativamente forte, pelo menos, para quem não o diz. Aquilo que não é dito não é dito por que quem não o diz teme que, se disser, o resultado de suas palavras podem não ser o que ele deseja. E, assim sendo, ele se magoará, ficará triste. Não proferindo as palavras, ele não corre esse risco. Não proferido-as, contudo, ele também não se arrisca a receber como resposta aquilo que deseja ouvir. E assim ele fica. Inerte. No mesmo lugar. Parado. Assim ele não vive. Assim ele cumpre um papel de extrema coadjuvância em sua própria existência. Ele é coadjuvante em sua própria vida.
Daquilo que não é dito se constrói uma história que não foi escrita. Daquilo que não é dito se vive uma vida que não foi vivida. Daquilo que não é dito se pinta um quadro com azuis que não lembram o céu, com vermelhos que não escorrem feito sangue, com amarelos que não queimam como o sol, com verdes que não acalmam feito os campos.
Daquilo que não é dito ficam só três coisas: a lembrança, o arrependimento e a saudade. Não há como retroceder ao passado. Não há como voltar no tempo e dizer aquilo que não foi dito.