sexta-feira, 17 de maio de 2013

Vitória



Aquela era uma cidade pequena, bem pequena, pequena demais. Nela, vivia pouca gente, bem pouca. Todos se conheciam. Todos conheciam o nome de todos, o sobrenome de todos, onde haviam nascido, crescido, estudado, trabalhado e onde moravam. Todos sabiam tudo sobre todos. Todos sabiam quem estava doente e quem estava de namoricos. Todos sabiam quem traia a esposa e quem era a amante. Até as esposas traídas sabiam quem eram as amantes. Todos conheciam o que todos conheciam. Naquela pequena cidade, não existia vida privada, não existia assunto privado, não existia nada privado. Tudo era público. Naquela pequena cidade, todos sabiam que saber tudo sobre todos não era uma exclusividade de ninguém. Todos sabiam tudo sobre todos. Ou, pelo menos, achavam que sabiam.

A vida era boa naquele lugarejo distante. O fato de não haver segredos, deixava as pessoas livres. Elas podiam fazer o que quisessem. Não havia vergonhas a serem escondidas. Ali, naquela pequena cidade, o adágio bíblico se fazia real: a verdade vos libertará.
Não havia problema algum naquele pedaço de fim de mundo. Tudo funcionava de modo perfeito. Uma praça, uma igreja, uma farmácia, um açougue, um mercadinho. Um médico, um dentista, um veterinário. Um barbeiro, um advogado e um carteiro. Não existia criminalidade naquele lugar. Os mais velhos diziam que, uma vez, há muito tempo, ocorrera um furto. Um menino teria pegado uma laranja de uma laranjeira que existia no pátio de uma casa sem pedir para o dono. Mas ninguém estava muito certo disso.

Os jovens pequenos e os não tão pequenos estudavam na escola da cidade. Era uma escola pequena, por óbvio. Os jovens maiores passavam a semana em cidades próximas, cursando suas faculdades ou seus cursos ou coisas do tipo. Eles retornavam nos finais de semana, que passavam junto com suas famílias. Não se tinha notícias de que alguém que tenha nascido naquele lugar não tenha, também, vivido e morrido nele. Ninguém estudava e se formava em uma profissão senão para substituir a quem a ocupava momentaneamente. Ou seja, ninguém se formava em uma profissão pensando em não praticá-la na cidade. E, como é costume em famílias tradicionais, os filhos seguiam a profissão dos pais. Isso era natural e não passava pela cabeça de alguém que vivia naquele povoado uma mudança nesse estado de coisas. Sempre foi assim, sempre funcionou e, portanto, não havia porque mudar. Assim pensavam todos.

Assim pensavam todos até que alguém resolveu pensar diferente.

Desde que nasceu, Vitória foi uma contestadora. Seu pai, o médico da cidade, queria que a perpetuação da tradição familiar fosse garantida por um homem. Não aconteceu. Ele, então, despendeu seus esforços para fazer da filha a sua sucessora no ofício médico. A menina cresceu em um ambiente que mais parecia um longo e constante curso preparatório para o futuro profissional. Seu pai a levava quase que diariamente para o seu consultório. Dava-lhe livros com desenhos do corpo humano, passava lições e fazia com que ela acompanhasse o maior número de consultas que fosse possível. Em casa, a doutrinação seguia com filmes, documentários e séries que abordassem o mundo da medicina. “Um bom médico já nasce médico” e “se reconhece um médico de verdade já na primeira infância, no jeito de segurar o lápis” eram duas das frases que ele dizia com mais frequência.

Vitória nunca gostou muito de lápis ou canetas. Vitória gostava de dançar. A mãe costumava dizer que os primeiros passos da menina foram ao som de Danúbio Azul. A valsa, aliás, sempre foi uma de suas danças prediletas. Gostava da elegância, do ritmo e da imagem que um casal dançando formava. Vitória, porém, dançava de tudo. Não tinha preconceito contra estilos. Bastava que o som lhe tocasse a alma e lá estava a garota movendo as pernas e remexendo o corpo. Não havia hora nem lugar para Vitória dar saltos e giros, balançar cabelos e braços, esquecer do mundo ao seu redor e sentir o som.
A menina espoleta dava trabalho aos pais. Não parava quieta um minuto sequer. Mesmo não demonstrando interesse algum na medicina, o pai nutria uma esperança inquieta de que o espírito de Hipócrates despertasse nela quando fosse a hora certa. Não aconteceu.

Era um domingo pela manhã. A família tomava o café. O pai preparava-se para se levantar após ter concluído o desjejum quando, como quem perde as forças e o controle sobre os músculos do corpo, deixou-se cair sobre a cadeira. Aos 16 anos, quase 17, Vitória disse “vou pra Capital fazer faculdade de dança.” Simples assim. A mãe, calada, fixava o olhar no pai que, impassível, parecia ter entrado em um estado de transe. Não expressava reação alguma. Assim ficou por quase meio minuto. “O que disseste?” perguntou, olhando nos olhos da filha, que comia com indizível prazer um pão de queijo. Ele conjugava os verbos na segunda pessoa do singular com perfeição. Orgulhava-se disso. “Eu vou estudar dança na Capital”, repetiu Vitória. A mãe se levantou e começou a levar talheres, xícaras e pires e pratos para a pia. Não falou nada. O pai ajeitou os óculos, pôs a mão o queixo e disse “tu não estás falando sério, né?” Vitória, com uma gota de surpresa encenada na expressão, retrucou: “claro que estou, ora.” O pai fez o escândalo que se esperava que fizesse diante de tal situação. Bateu na mesa, esbravejou, xingou, sentou ao lado da filha, pôs a mão sobre a cabeça dela, falou palavras de carinho, fez cafuné, levantou e gritou de novo, culpou a mãe, a sogra, os amigos, a escola e a mídia. A menina seguiu comendo. O pai, ainda mais descontrolado, girou nos calcanhares e saiu da cozinha pisando firme, sem não antes apontar o indicador da mão direita para filha e sentenciar um “tu não vais fazer isso! Ouviste? Não vais!”. Vitória deu de ombros e sorveu um belo gole do suco de laranja que bebia. Fazia calor.

Antes do fim da tarde, toda a cidade já sabia que a menina não queria ser médica como haviam sido o pai, o avô e o bisavô, e, sim, dançarina. O padre achou um descalabro moral resultado da pouca fé da juventude. O advogado disse que a escolha não era ilegal, mas que poderia representar jurisprudência para outros jovens e era aí que morava o perigo. O barbeiro disse que estava com os cabelos em pé diante de tal surpresa e o farmacêutico afirmou que tinha uns “remedinhos” que podiam fazer com que a garota retomasse o juízo. O carteiro seguiu entregando as correspondências e espalhando a notícia. A falação aumentou e aumentou. No dia seguinte, não se comentava outra coisa naquela pequena cidade. O assunto de todas as conversas era o mesmo. E assim seguiu por dias e dias e dias e dias e semanas e semanas.

...

Passaram-se três meses em que não houve um dia sequer sem que o pai de Vitória tentasse convencê-la de que a decisão da menina era um erro, de que a Medicina era o seu destino e de que dançar não dava dinheiro pra ninguém. Não adiantou. Não adiantou nem um pouco.

O ano em curso findou-se e o novo ano teve início. Era uma manhã ensolarada quando a filha do médico da cidade cruzou o portão de casa e, carregando duas malas, uma em cada mão, iniciou a breve caminhada até a pequena estação rodoviária do povoado. Ainda dentro de casa, a mãe havia lhe dado um carinhoso beijo na testa e lhe desejado boa sorte. O pai não se despediu. Seguiu lendo o jornal sentado no sofá da sala, como se nada de extraordinário estivesse acontecendo. Sob os olhares curiosos, inquisidores e reprovadores de quase toda a gente que vivia naquele lugar, Vitória caminhava serena e decidida. Passos firmes e olhar tranquilo. Seu vestido balançava no ritmo de seus passos. Não se ouvia uma voz. Alguns cochichos inaudíveis podiam ser percebidos, mas eram poucos. Após alguns minutos, o ônibus chegou e a porta se abriu. A filha do médico deu uma rápida olhadela para trás e encarou seus conterrâneos e vizinhos por alguns instantes. Um sorriso de satisfação e orgulho incontido brotou em sua face e ela subiu os degraus. Sentou-se, recostou a cabeça na poltrona e fechou os olhos. O ônibus arrancou e partiu. Durante toda a viagem, a garota dormiu. Sem culpa e feliz.

Vitória queria ser dançarina. Não havia problema algum nisso. A saúde dos moradores daquele lugar não ficaria sem atenção. O filho do açougueiro sempre sonhou em ser médico mesmo. Vitória abriu as janelas e deixou o ar entrar. A vida nunca mais foi a mesma naquela pequena cidade. Nunca mais.