sábado, 9 de novembro de 2013

Era um domingo


Ela é sempre a mesma, mas, a cada novo dia em que acorda, ela é outra.

Outro dia pela manhã cedo, ela abriu os olhos, deu um longo e silencioso bocejo, ergueu-se da cama, ficou em pé e se viu uma palhaça, dessas de circo. Saiu fazendo estripulias e assim permaneceu durante todo o dia. Espirrou água no rosto de amigos, deu cambalhotas no corredor da escola e, sempre que pôde, falou com voz alta e estridente “hey, amiguinhos!!”. Ela estava impossível.

Noutra ocasião, acordou e era uma bailarina. Passou a manhã, a tarde e a noite dando saltos e giros, rodopios e rebuscados passos de dança. Foi dormir com os pés doendo e a cabeça nas nuvens.

Houve uma vez em que era uma atriz. Foi um dia difícil aquele. Uma hora era um drama só. Em seguida, ela ria, falava bobagens, caminhava engraçado, era pura comédia. Disso para um suspense de tirar o fôlego, era um pulo.  

Era sempre assim. A cada amanhecer, uma nova pessoa se mostrava para ela no espelho.

Teve um dia, em especial, em que ela levantou, ainda de pijama, calçou as pantufas, tomou um demorado banho, penteou os cabelos, trocou de roupa, arrumou a mochila colorida, passou na cozinha, pegou algumas coisas de comer, encheu seu cantil com água, abriu a porta e saiu.

Ela era uma andarilha. Uma desbravadora. Uma caminhante. Sem direção e sem propósitos. Somente andar. Era um domingo.

Não deixou nenhum recado. Não avisou ninguém. Não disse a que horas voltava.

Era dona de si mesma. Tinha o tempo em suas mãos. Tinha o mundo aos seus pés.

Ela tinha os cabelos amarrados às costas em um rabo de cavalo que chacoalhava de um lado para o outro, acompanhando os seus passos despreocupados.

Ela conversou com muitas pessoas. Queria ouvir as histórias da gente da rua, mendigos, ambulantes, catadores, prostitutas, beberrões, vagabundos que passavam o dia zanzando sem ter o que fazer.

Conheceu um músico no Centro da cidade. Era um rapaz jovem, com barba espessa e negra, olhos faiscantes e cabelo ondulado e comprido, logo abaixo dos ombros. Ela o ouviu tocar e cantar. Era uma música que ela não conhecia, mas gostou muito. Ela não lhe deu dinheiro, mas lhe deu atenção, a qual ele retribuiu com entusiasmo, afinal, uma boa conversa vale mais do que alguns trocados. Falaram sobre a canção, sobre a rua, sobre as pessoas ao redor, sobre sentimentos e sobre mais algumas trivialidades. Deram risadas juntos. Sorriram um para o outro. Ela se apaixonou. Mas sabia que não podia se apaixonar. Sabia que, no dia seguinte, não seria mais essa garota que se apaixonou pelo jovem cantador das ruas. Lutou contra si e contra sua paixão repentina. Foi uma luta árdua. Aquela que se apaixonara era pura emoção, puro instinto. Mas era preciso resistir. Amanhã, muito provavelmente ele não teria nenhum interesse por aquele rapaz. Ela sabia disso. Suas variações de personalidade eram muito bruscas. Não podia arriscar.

Foi com uma lágrima correndo no rosto que ela se despediu com um abraço e seguiu sua jornada do dia.

Andou por onde nunca antes houvera andado. Espantou-se com quanta coisa nova havia para ver. Quanta coisa nova. Era um velho mundo novo, uma cidade que sempre esteve ao alcance de suas mãos, mas que ela nunca tocara.

Tantos prédios, tantas árvores, tantas ruas, tanto céu, tanta gente, tanta vida.

Na praça, senhores de cabelos brancos disputavam acirradas partidas de damas e dominó. Ela admirava quem dava a si mesmo um belo tempo de um ensolarado dia como aquele para se divertir em uma partida sem objetivo algum a não ser a distração gratuita e leve.

Homens carregavam sacos de algum grão nas costas no porto. Ela nunca havia parado para prestar atenção neles. Não sabia que trabalhavam aos domingos. Eles suavam sob o sol forte. O rosto vincado pelo esforço. As costas arqueadas pelo cansaço.

Seguiu.

Seus pés doíam um pouco. Não havia escolhido os tênis mais confortáveis para a caminhada. Paciência.

Entrou em um bar. Pediu um café. “Bem forte!” Sorveu enquanto olhava uma mulher sentada em uma mesa no canto. Ela parecia exausta, aquela mulher. Carregava uma mochila batida e uma criança. A criança estava em silêncio, mas parecia ter chorado muito há pouco tempo. A mãe também parecia ter chorado recentemente. As duas dividiam uma fatia de pão tostado com manteiga. Permaneceu por algum tempo observando a mulher e a criança. Tentou imaginar o que ocorrera com elas, porque haviam chorado, para onde iriam. Imaginou algumas coisas e pensou em ir perguntar às duas. Desistiu. A imaginação, na maior parte das vezes, é mais digerível do que a realidade. Ela levantou e saiu, sem não antes deixar pago dois copos de café com leite e duas torradas reforçadas. Havia feito a sua boa ação do dia.

Saiu caminhando a esmo. Não tinha pressa. A vida não tinha pressa. Seguia serena.

Deu de comer aos pombos no largo, sentiu os cheiros das bancas do mercado.

Passou pela rua dos sebos. Cruzou a ponte de pedra. Andou e andou. Chegou ao parque.
Sentou-se na grama à sombra de um Ipê. Bebeu água, soltou os cabelos e deitou-se. Ficou ali. Depois, contando a amigos por onde andara, não soube precisar por quanto tempo, mas ficou ali até principiar o anoitecer. Estava feliz como nunca havia estado.

Não viu o sol se pôr no lago, mas viu casais jovens trocando carícias ao saírem das aulas na faculdade.

Levantou-se, pegou sua mochila, olhou ao redor e tomou o caminho de casa.

Era uma noite linda aquela. Tudo era lindo naquela noite. O céu estava lindo, brilhante. O ar estava lindo, leve. As ruas estavam lindas, movimentadas, cheias de gente, vivas.  

Ela estava linda.

Seguiu atenta. Olhava tudo. Estava elétrica, mas, ao mesmo tempo, sentia-se serena de um modo único. Passos, quadras, ruas, avenidas, bairros, pessoas. Pessoas novas, pessoas velhas, pessoas alegres, pessoas nem tão alegres. Pessoas.

Já estava bem perto de casa, podia ver a movimentação de amigos e parentes no pátio da frente. Todos preocupados com ela. Não tiveram notícia alguma durante todo o dia. Ela achou aquilo engraçado. Nunca deram muita bola para ela e, agora, pareciam formigas que tiveram seu formigueiro pisoteado por um garoto. Sorriu para si mesma e, ao mesmo tempo, imaginou toda a chateação que viria a seguir, perguntas, reprimendas, falação... enfim, sabia que não seria bom, mas sabia também que era inevitável. Tinha de voltar para casa. Amanhã, iria achar tudo isso que fez durante esse dia uma grande loucura sem sentido. Caminhou um pouco mais e, agora, já podia ouvir as vozes. Era isso. Havia chegado a hora de dar fim àquela jornada.

Deu três passos.

Parou.

De súbito, parou.

Como um relâmpago em noite de tempestade, um pensamento cruzou a sua mente.

Sim!

Era isso!

Estava tudo tão claro.

Largou a mochila no chão, girou nos calcanhares, deu meia volta e saiu correndo com uma determinação de um campeão olímpico.

Correu e correu e correu. Ela tinha pressa. Precisava correr. E mais rápido, mais rápido, mais rápido. O tempo corria ao seu lado. Os dois disputavam, um contra o outro. Ela não podia se dar ao luxo de se sentir cansada. Não podia parar, nem por um segundo. Ela corria. Tinha de chegar. Tinha de conseguir. Era preciso.

As pessoas olhavam para ela e não entendiam. Por que aquela menina corria tanto? Para onde ela ia? Qual o motivo da pressa?

Ônibus passavam ao seu lado, ela chegou a pensar, mas não podia, não naquele dia. Aquele dia era das ruas. Seguiu correndo. Os olhos bem abertos. Como um guepardo atrás de sua presa. Corria.

Pensamentos, imagens surgiam frente aos seus olhos. Tudo o que havia visto durante o dia. Pensou na mãe com a criança, nos trabalhadores no cais, no casalzinho do parque.

Corria. Estava perto. Torcia para que não fosse tarde demais. Não haveria de ser tarde demais. Tinha de conseguir.

Correu e correu e correu e correu ainda mais. Faltavam metros. Dobrou a esquina.

Encontrou o músico recolhendo seu banquinho e se preparando para ir embora. Parou em frente dele. Finalmente havia parado de correr. Arfava. Ele estava curvado, olhando para o chão. Em um primeiro momento, não a viu. Só percebeu sua presença ao sentir sua respiração ofegante e forte. Ergueu-se e ficou surpreso ao vê-la. Realmente não esperava por isso. Achava que nunca mais iria encontrá-la. Aquela era uma cidade grande.

Olhou para ela e disse um “olha só quem cruza, mais uma vez, o meu caminho! A que devo a honra?”

Ela sorriu. Ela sorriu e chorou. Ao mesmo tempo.

Sem pestanejar nem um momento sequer, deu um salto e pendurou-se no pescoço dele. Estava esfuziante. Sentia-se em outra dimensão. Uma coisa cósmica, sei lá, não sei explicar bem. Nem ela sabe.

Sem compreender direito o que se passava, mas sabendo exatamente o significado de tudo aquilo, restou a ele abraçá-la também. E ele o fez com força.

Estavam juntos. Eram um só, unidos, em uma rua no Centro da cidade.

Ela escolheu viver essa paixão.

Amanhã?...

Bom, amanhã, seria outro dia. Quem sabe, ela não seria uma artista de rua também. Quem sabe, não seria uma criança? Ou um sopro de vento? Quem sabe?

Saíram caminhando. Para onde, não sei. O braço esquerdo dele enlaçava a cintura dela e o braço direito dela, a dele.

O banquinho ficou lá. No meio da rua. Eles levavam consigo tudo o que precisavam para aquela noite.

Amanhã?

Que o amanhã venha fresco, novo. Que seja só mais um dia mágico. Isso basta. Para ela.