quinta-feira, 14 de junho de 2012

De como ele acordou sem rosto em uma manhã de verão


E então ele acordou em uma manhã mormacenta de verão e já não tinha mais rosto. Simples assim. Acordou e não tinha mais rosto. Só os olhos permaneciam na face. Uma face sem rosto. Sem nariz, sem boca, sem sobrancelhas, sem nada. Até as orelhas sumiram. No lugar, só havia dois pequenos orifícios. O cabelo estava desgrenhado depois de uma noite mal dormida. Muitos mosquitos e o quarto era pequeno, sem ar-condicionado ou um mísero ventiladorzinho que fosse. Em frente ao espelho do banheiro, ficou contemplando aquela imagem grotesca e brutal. De certa forma, conseguia ver beleza naquilo. Nunca foi um homem que se preocupasse muito com a aparência. Nunca foi vaidoso. Nem se lembrava direito de como era o seu rosto mesmo. Só sabia que não era bonito. Disso ele sabia muito bem.
Olhando aquela massa opaca de carne e pele, conseguiu até encontrar vantagens na situação. Não perderia mais tempo escovando os dentes, nem dinheiro com dentistas os quais ele odiava, por exemplo. Quase deu um sorriso. Só não o fez porque não tinha boca.
Depois ficou se perguntado como ainda vivia, como respirava, por onde o oxigênio entrava em seu corpo. Imaginou que talvez todo o seu organismo também tivesse mudado, que talvez a sua pele absorvesse o oxigênio e liberasse o gás carbônico. Pensou ainda em como iria se manter, como iria se alimentar. Algum tipo de processo semelhante à fotossíntese era uma possibilidade, mas ele não tinha certeza.
Jogou água sobre o rosto que deveria estar ali, mas não estava, e foi abrir a janela para ver como se encontrava o dia, já imaginando, pelo calor que fazia, o sol de rachar que deveria estar lá fora. Quando o primeiro raio de luz lhe tocou as retinas, ele se sentiu mal. Tentou fechar os olhos, mas não pôde, pois as pálpebras já não estavam mais ali. Abaixou-se um pouco e espichou o braço esquerdo. Pegou os óculos escuros modelo aviador que estavam sobre uma banqueta ao lado da cama e os pôs em frente aos dois olhos que pareciam tão miúdos, como duas pequenas bolas de gude. Os óculos, porém, caíram no chão quando ele os soltou e então ele lembrou que não tinha orelhas para apoiar as hastes. Ficou chateado. Ele adorava aqueles óculos. Os havia ganhado de presente de uma namorada antiga. Eram bons óculos. Ele gostava deles. Muito mesmo.
Fechou a cortina e catou algumas roupas que estavam jogadas sobre uma poltrona antiga já meio rasgada que havia sido do seu pai. Pôs uma camiseta amarrotada, uma calça suja de mostarda que escorreu do cachorro-quente que ele havia comido como almoço no dia anterior, calçou os tênis batidos e se preparou para sair. Novamente se colocou em frente ao espelho para dar uma olhada naquilo em que havia se transformado. Não achou nada mal. “Nada mal”, era o que ele pensou em dizer e diria se tivesse boca. Abriu a torneira, molhou as mãos e passou-as nos cabelos, tentando acalmá-los um pouco. Não adiantou.
Dirigiu-se para a porta, mas deu meia volta e pegou a máscara para dormir do Bob Esponja que uma amiga havia lhe dado no seu último aniversário. Passou o elástico por trás da cabeça e pronto, já não sofreria com a luz solar lá de fora. Abriu a porta. Fechou a porta. Saiu e foi trabalhar. No caminho, ficou imaginando como os caras bêbados do bar em que ela passava para comer um sanduíche e beber qualquer coisa antes de pegar no batente iriam rir de tudo aquilo. Não se importava. Riria junto, se tivesse ...
Era uma manhã quente de verão e lá ia caminhando pela rua um homem sem rosto. Cabelo revolto, camisa amarrotada, calça suja, tênis velho e máscara para dormir do Bob Esponja. Mais um dia começava. Ele nunca foi vaidoso mesmo.