E então ele acordou em uma manhã
mormacenta de verão e já não tinha mais rosto. Simples assim. Acordou e não
tinha mais rosto. Só os olhos permaneciam na face. Uma face sem rosto. Sem
nariz, sem boca, sem sobrancelhas, sem nada. Até as orelhas sumiram. No lugar,
só havia dois pequenos orifícios. O cabelo estava desgrenhado depois de uma
noite mal dormida. Muitos mosquitos e o quarto era pequeno, sem ar-condicionado
ou um mísero ventiladorzinho que fosse. Em frente ao espelho do banheiro, ficou
contemplando aquela imagem grotesca e brutal. De certa forma, conseguia ver
beleza naquilo. Nunca foi um homem que se preocupasse muito com a aparência. Nunca
foi vaidoso. Nem se lembrava direito de como era o seu rosto mesmo. Só sabia
que não era bonito. Disso ele sabia muito bem.
Olhando aquela massa opaca de
carne e pele, conseguiu até encontrar vantagens na situação. Não perderia mais
tempo escovando os dentes, nem dinheiro com dentistas os quais ele odiava, por
exemplo. Quase deu um sorriso. Só não o fez porque não tinha boca.
Depois ficou se perguntado como
ainda vivia, como respirava, por onde o oxigênio entrava em seu corpo. Imaginou
que talvez todo o seu organismo também tivesse mudado, que talvez a sua pele absorvesse
o oxigênio e liberasse o gás carbônico. Pensou ainda em como iria se manter,
como iria se alimentar. Algum tipo de processo semelhante à fotossíntese era
uma possibilidade, mas ele não tinha certeza.
Jogou água sobre o rosto que
deveria estar ali, mas não estava, e foi abrir a janela para ver como se
encontrava o dia, já imaginando, pelo calor que fazia, o sol de rachar que
deveria estar lá fora. Quando o primeiro raio de luz lhe tocou as retinas, ele
se sentiu mal. Tentou fechar os olhos, mas não pôde, pois as pálpebras já não
estavam mais ali. Abaixou-se um pouco e espichou o braço esquerdo. Pegou os
óculos escuros modelo aviador que estavam sobre uma banqueta ao lado da cama e
os pôs em frente aos dois olhos que pareciam tão miúdos, como duas pequenas
bolas de gude. Os óculos, porém, caíram no chão quando ele os soltou e então ele
lembrou que não tinha orelhas para apoiar as hastes. Ficou chateado. Ele
adorava aqueles óculos. Os havia ganhado de presente de uma namorada antiga.
Eram bons óculos. Ele gostava deles. Muito mesmo.
Fechou a cortina e catou algumas
roupas que estavam jogadas sobre uma poltrona antiga já meio rasgada que havia
sido do seu pai. Pôs uma camiseta amarrotada, uma calça suja de mostarda que
escorreu do cachorro-quente que ele havia comido como almoço no dia anterior,
calçou os tênis batidos e se preparou para sair. Novamente se colocou em frente
ao espelho para dar uma olhada naquilo em que havia se transformado. Não achou
nada mal. “Nada mal”, era o que ele pensou em dizer e diria se tivesse boca.
Abriu a torneira, molhou as mãos e passou-as nos cabelos, tentando acalmá-los
um pouco. Não adiantou.
Dirigiu-se para a porta, mas deu
meia volta e pegou a máscara para dormir do Bob Esponja que uma amiga havia lhe
dado no seu último aniversário. Passou o elástico por trás da cabeça e pronto,
já não sofreria com a luz solar lá de fora. Abriu a porta. Fechou a porta. Saiu
e foi trabalhar. No caminho, ficou imaginando como os caras bêbados do bar em
que ela passava para comer um sanduíche e beber qualquer coisa antes de pegar
no batente iriam rir de tudo aquilo. Não se importava. Riria junto, se tivesse
...
Era uma manhã quente de verão e lá
ia caminhando pela rua um homem sem rosto. Cabelo revolto, camisa amarrotada,
calça suja, tênis velho e máscara para dormir do Bob Esponja. Mais um dia
começava. Ele nunca foi vaidoso mesmo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário