terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

O filósofo catador

Hoje à tarde, o prefeito, secretários municipais e a conhecida claque se reuniram em um grande terreno, localizado quase no fim da avenida Protásio Alves, para assinar a ordem de início das obras de construção do loteamento para o qual os moradores da atual Vila Chocolatão, que fica encravada ali no Centro de Porto Alegre, serão transferidos. Discursos inflamados seguidos de efusivos aplausos foram ouvidos. A notícia, teoricamente, era isso, a assinatura por parte do prefeito, com as informações sobre o novo loteamento, com muitos números e tudo aquilo que é extremamente clichê em matérias jornalísticas, mas que, não adianta, tem de estar lá. Não é por isso, porém, por causa das obrigatoriedades das reportagens diárias, que não se pode fazer algo, um pouquinho que seja, diferente.
Pois bem, ouvi todos os discursos, anotei uma coisinha que outra, mas percebi que havia um senhorzinho, de pequena estatura, ao lado de um dos secretários, que ouvia tudo com muita atenção e que, de vez em quando, fazia um leve e discreto sinal de reprovação com a cabeça. Ali estava alguém que deveria ser ouvido. Terminada a falação de praxe, enquanto os colegas se dirigiam para falar com o prefeito e com o secretário de habitação, eu fui falar com aquele senhorzinho. Chamei ele para um lado, com menos barulho e perguntei se ele era morador da Vila. Ele disse que sim. E começou a falar. E eu descobri um filósofo, ex-seminarista e catador. E ele me deu uma aula. Aquele senhor era quem tinha realmente algo diverso a falar. Não sei como serão as matérias dos meus colegas amanhã. Mas, após ouvir tudo o que ele me falou, eu vi que teria de abrir a matéria com ele e deixar os números lá pro final. Dentro das limitações, principalmente de espaço, escrevi isso que segue aí embaixo. Uma beirinha de subversão.



Para o filósofo catador, novo loteamento deve preservar o trabalho da comunidade



Conversar com José Luiz Ferreira, 60 anos, é ter uma aula. Muito menos pelo fato de ele ser formado em Filosofia e quase ter concluído o curso de Teologia durante o tempo em que fez seminário em Viamão e muito mais pela sabedoria que só os anos e o convívio com as dificuldades trazem. Seu Luiz, como é conhecido na comunidade da Vila Chocolatão, onde reside a mais de três anos e é um dos líderes, é um homem simples. Um sábio homem simples. “Eu sempre fui e ainda sou adepto das ideias da Teologia da Libertação. Temos de estar no meio do povo e construindo soluções junto às pessoas. É dentro da comunidade que se resolvem os problemas. A única forma de transformar a situação de uma comunidade é trabalhando junto”, diz.
Enquanto observa o terreno, após a assinatura da ordem de início das obras de construção na nova Vila Chocolatão, realizado no local do futuro loteamento (avenida Protásio Alves, 9.099), realizada no início da tarde de ontem, seu Luiz diz que aprova a mudança da comunidade para o novo local. Segundo ele, a os moradores estão cheios de esperança, o que não quer dizer que os sofrimentos e lutas diárias irão diminuir ou acabar. Para ele, a prefeitura erra ao querer fazer com que as pessoas deixem de trabalhar naquilo no qual elas têm uma história. “Não gosto da forma como o governo aborda a questão. É um equívoco achar que o bom para as pessoas é achar um trabalho fora da comunidade. Todo o conhecimento que essas pessoas têm está ali. Eles sabem transformar as coisas que têm ali. Não se pode desconstruir toda a sabedoria local dessas pessoas”, ressalta.
O filósofo catador da Vila Chocolatão também acredita ser necessário uma transformação do olhar da comunidade. “A inclusão social não pode estar só na obra. O morador da vila tem de olhar para a sociedade de outra forma. Novas relações, inclusive com o município, têm de ser construídas. Temos que saber dialogar com o governo e buscar soluções integradas. Queremos ter uma condição de vida digna. Pobre, mas digna”, ressalta, movimentando o corpo e os braços, como se desse uma aula, em pleno canteiro de obras.

Obras deverão ser concluídas em 300 dias

O discurso do prefeito José Fogaça após a autorização do início das obras foi recheado de referências bíblicas. “Será como uma Nova Jerusalém, um novo começo para essas pessoas. Foram 14 meses de uma longa travessia que exigiu muita persistência e luta, como a do Mar Vermelho. Hoje concluímos mais uma etapa deste projeto, cujo êxito e viabilidade foi possível graças à colaboração de todos”, disse o prefeito. No local serão construídas 181 novas unidades habitacionais. O loteamento terá creche, cozinha comunitária, praça e unidade de triagem de resíduos recicláveis. No momento estão sendo realizadas as obras de infraestrutura (muros de contenção, redes de água e de esgotos cloacal e pluvial e estação de tratamento de esgotos). O valor do contrato é R$ 5.998.738,60, sendo 68,40% com recursos da prefeitura e 31,60% financiados pela Caixa Econômica Federal.


- http://jcrs.uol.com.br/site/noticia.php?codn=20912&codp=104&codni=3


Foto de Fredy Vieira/JC

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Das coisas que eu preciso

Pela primeira vez em anos fiquei 10 dias sem acessar a internet, sem ouvir rádio AM, sem parar para ver noticiários na TV e, somente de vez em quando, comprando jornal para ler. Foi sem dúvida uma experiência bem interessante. Valeria um estudo antropológico (ou uma monografia como diria um certo professor). Ao final do período, já em Porto Alegre, pensei sobre a situação e cheguei à conclusão de que sou deveras dependente de informação. Passei por crise de abstinência de informação. Apesar dos pesares, acho que foi bom. Foi quase como um rehab.
O jornalismo é tão apaixonante que faz com que nos esqueçamos de nós mesmos. Pelo menos comigo é assim. Os dias de folga clarearam um pouco as ideias. Comecei falando sobre isso para tratar de uma questão relacionada. Em momentos solos de avaliações, reavaliações, pensamentos confusos, ideias novas (praticamente todas descartadas) e observações na beira do mar (que, aliás, é um lugar bem adequado para isso), percebi que eu seria uma pessoa bem melhor se tivesse algumas coisas que hoje não tenho e se agisse de forma diferente da que ajo hoje em determinadas situações.
Senão vejamos. Definitivamente, meu limiar de paciência tem de diminuir. Não que ache ruim ser paciente, dificilmente se irritar com algo. Ao contrário. Entretanto, alguns momentos exigem uma atitude mais drástica, uma resposta imediata, pois, se isso não ocorrer, corre-se o risco daquele fato acontecer de novo, e de novo, e de novo, passando a ser corriqueiro e tornando-se rotina. Não sou de brigar, discutir, levantar a voz. Não gosto mesmo e quem me conhece sabe disso. Mas, às vezes, uma posição mais dura, um posicionamento claro, a exposição do pensamento completo, se faz necessário. Mantendo sempre a educação e o cavalheirismo. Sempre.
Outra coisa: cada vez mais, percebo-me consideravelmente sozinho ao estar com minha família. A distância, principalmente no que se refere a interesses e assuntos em comum tem aumentado bastante. A conexão entre nós (assim como a da Net) tem caído seguida e paulatinamente. Nessas férias, percebi de forma ainda mais clara, como sou dependente do contato social. E as relações familiares são sempre recheadas de convenções estáticas, atitudes rotineiras. Um comportamento quase que automático. Ver as pessoas se divertindo e curtindo os momentos de alegria e descanso com outras pessoas, companhias de verdade, ligadas mesmo, parceiros, duplas, companheiros, fez surgir em mim sentimentos de melancolia e até de inveja. Percebo que não lembrarei de nenhum dia dessas férias daqui a seis meses. Não houve nenhum momento realmente especial. Os momentos especiais estão intimamente relacionados a pessoas e não a lugares. Descansei bastante, recarreguei as baterias, as dores de cabeça do início da noite desapareceram. Conheci lugares bacanas e pessoas interessantes. Legal. Bom. Bom mesmo. A vida, porém, exige mais. Viver de verdade não é viver muitos momentos bons. Os extremos são o que ficam, o que marcam. Nessas férias ficou mais transparente para mim que a vida é feita de pares. Que para existir, por completo, o um precisa do outro. Cara e coroa. Bom e mau. Cão e gato. Noite e dia. Céu e Terra. Ele e ela. Sem sentimentalismos baratos, preciso de dias hoje para lembrar amanhã. Um, dois três e já: dois é par. Perdi. Jogo de novo daqui a alguns meses.