sábado, 5 de dezembro de 2015

Quando o Amor encontrou a Felicidade em um beco sem saída qualquer




Quando o Amor encontrou a Felicidade em um beco sem saída qualquer, fazia um calor dos diabos. Era uma daquelas noites de verão em que o ar entra pesado em seus pulmões e atravessa seu sistema respiratório como lava incandescente. Você inspira e sente ele te queimando por dentro.

Há algum tempo, eles já vinham caminhando paralelamente. Quase que lado a lado. Trocavam olhares lascivos, mas hesitavam em se tocar, hesitavam em falar um com o outro.

Entretanto, naquela noite quente, naquele beco sem saída qualquer, eles sem encontraram. Não havia como evitar. Os caminhos foram afunilando. Estavam cada vez mais perto. Os ponteiros no relógio da torre do antigo prédio corriam. O sino da catedral dobrava.

A primeira reação após o primeiro contato foi de estranhamento. Nunca haviam estado juntos antes. Viam-se, ao longe, mas, sempre que tentavam se aproximar, algo acontecia, algum tipo de força alheia às suas vontades agia sobre eles, os empurrava para outra direção, tomava o controle de seus movimentos, os incitava a se afastarem.

O primeiro a chegar foi o Amor. Na verdade, foi um ressurgimento. Ele já aparecera em algumas ocasiões anteriores. Permanecera por algum tempo, ganhara espaço, tomara conta de tudo, e, depois, fora embora. Deixara um vazio em todas as vezes que desaparecera sem dizer por que.

Agora, ele havia voltado. Descaradamente. Como se não existisse um passado. Simplesmente bateu à porta em um dia de verão. E, com pura inocência apaixonada, sua vítima recorrente voltou a convidá-lo a entrar, a sentar à mesa, a acompanhá-lo em suas tarefas diárias, a ir com ele aonde quer que fosse. Amava. Mais uma vez.

A Felicidade, sim, foi uma novidade. Nunca haviam se encontrado. Nem um esbarrão sequer em uma rua movimentada. Pensou que a havia visto uma vez, mas não tinha certeza. Podia ter se enganado. Provavelmente tinha se enganado.

Ele sempre acreditara que uma coisa levaria à outra. Não eram dependentes, mas abririam caminhos. Achava que era possível ser feliz sem amar e que era possível amar sem ser feliz. Realmente achava. Entretanto, tinha a convicção de que o Amor poderia ser um atalho para a Felicidade.

Depois do encontro inicial, decidiram, de comum acordo, que deveriam passar o maior tempo possível juntos para se conhecerem melhor e, assim, estreitarem a relação.

Como já era de casa, o Amor não fez cerimônias. Chegou bagunçando tudo, trocando as coisas de lugar, remexendo em baús velhos cheios de lembranças do passado. Era sempre assim. Cada vez que ele aparecia, seus dias viravam de cabeça para baixo. Sabia que iria acontecer de novo. Era como o efeito colateral de um remédio, talvez o único remédio, que poderia salvá-lo.

A primeira semana de convivência conjunta foi extremamente prazerosa para ambos. Aproximaram-se. As afinidades afloraram. Eram carne e unha. Completavam as frases um do outro. Sentiam-se afinados, em perfeita sintonia.

Com o passar dos dias, porém, pequenas arestas começaram a surgir naquela relação tão lisa, tão uniforme. A convivência sob o mesmo teto exigia um desprendimento, uma certa dose de sacrifício que não tinham certeza se estavam dispostos a fazer.

O Amor, com sua aparente doçura e compreensão, agia em busca de tudo aquilo que lhe fizesse bem. Ele era egoísta. Era parte de seu instinto. O egoísmo o fazia existir. Buscar sempre o melhor para si mesmo, esse era o seu lema. Na grande maioria das vezes, isso fazia bem ao outro também, mas era apenas uma consequência.

A Felicidade, por sua vez, em plena satisfação, não conseguia compreender os motivos que levavam seu parceiro a procurar suprir suas necessidades independentemente de isso importar ou não aos que conviviam a seu redor. Por quê? De que servia ser amor, se não era compartilhado?

As rusgas, inicialmente, foram vistas por ele como algo normal. Inevitáveis, até certo ponto. Tinha de administrar a situação, contemporizar os desentendimentos. Sentia-se extremamente bem nas horas que ambos, Amor e Felicidade, dividiam momentos de harmonia. Os atritos valiam a pena.

Todos ao seu redor percebiam o quanto ele estava mudado. O sorriso largo, que há muito estava sumido, reaparecera. Comprara roupas novas, voltara a participar de confraternizações sociais, recuperara a autoestima. Alguns creditavam sua Felicidade ao Amor que havia reencontrado. Outros achavam que estava feliz, e, por isso, amava. Ele não se importava com os motivos. A vida estava sendo generosa. Era grato por isso.

O tempo – e suas circunstâncias –, porém, trouxe a reboque a rotina e, junto com ela, vieram as dúvidas, as indagações, as incertezas. As brigas passaram a ser mais comuns. Ficavam dias sem se falar. O Amor, orgulhoso, exigia toda a atenção. Tudo deveria girar ao redor dele, afinal, era um velho conhecido. A novata, por sua vez, tentava ser o mais simpática possível. Buscava agradar a todos, e isso não era falsidade de sua parte. Ela realmente ficava realizada ao fazer os outros se sentirem bem. A Felicidade era puro altruísmo e ficava pasma ao perceber que o Amor também não o era.

Cego de Amor e em torpor diante de tamanha Felicidade, ele não conseguia enxergar o que se passava consigo. Dominado pelo sentimento e pelo estado, deixava-se levar por ambos, agindo conforme os interesses de cada um. Sem perceber que se tornara um fantoche de si mesmo, ficara à mercê de um embate que, independentemente do resultado, não teria vencedores.

Os amigos se afastaram, cansados de tentar alertá-lo da situação em que se encontrava. A família insistia em fazê-lo ver o que se passava, mas ele não queria sequer ouvir coisa alguma de quem via problemas na sua vida. Simplesmente seguia. Seus desejos o controlavam.

Com o raciocínio prejudicado, seu isolamento dos círculos sociais se intensificou. Não tardou para que a perturbação custasse seu emprego. Ele sabia que havia muita coisa errada, mas não queria se desfazer de suas conquistas. Batalhara muito por aquele Amor. Buscara a Felicidade durante toda a sua existência. Não iria desistir assim, tão facilmente. Vivia o seu sonho. Um sonho atribulado, cheio de idas e vindas, altos e baixos. Um sonho diferente do que havia sonhado, mas que, ainda assim, era um sonho, o seu sonho. Amar e ser feliz. Não queria e não precisava de mais nada.

Foi em uma noite de chuva quente que seu castelo sobre as nuvens começou a ruir. Chegou em casa após passar o dia na rua procurando emprego, e a encontrou sentada no sofá da sala. As pernas cruzadas e um copo de uísque com gelo na mão. A conversa foi rápida. Ela pegou a bolsa e saiu sem lhe dar um abraço de despedida.

Mais uma vez, o Amor se fora. Assim como nas outras, partiu e levou consigo uma parte dele. A Felicidade, sua parceira das melhores horas da vida, não resistiu àquela perda. Ela tentou, ela realmente se esforçou, mas não resistiu.

Nos meses que se seguiram ao ocorrido, ele buscou conforto em prazeres fugazes. Tentou esquecer os bons momentos para, assim, não sofrer com a falta deles. Em vão, procurou em outros corpos, em outras bocas, sensações que pudessem aplacar a dor da ausência.

Em seus momentos consigo mesmo, esquadrinhava o passado atrás de lembranças que lhe mostrassem quais haviam sido seus erros. Encontrara muitos, mas nenhum que achasse importante o suficiente para motivar o rompimento. Talvez estivesse enganado, interpretara erradamente as situações que se passaram entre eles. Em seu íntimo, porém, sabia que não era o culpado. Dedicara-se intensamente àquela relação. Dera tudo de si. Fizera sacrifícios. Nada disso fora suficiente.

Anos depois, ele ainda guardava em si as marcas daqueles dias de sua vida. Custava a compreender o que se passara. Fora tudo tão rápido, tudo tão intenso, tão visceral. Concluíra que fora enganado. Não era amor, era medo, com toques de insegurança e requintes de sadismo. A Felicidade, que fizera de sua vida um misto de êxtase e serenidade, meio loucura, meio sonho, se foi sem avisar. A morte em vida, a dor que não doía, o fim sem final. Tudo havia sido obra de sua imaginação doentia.

Sempre acreditara que nunca iria encontrar a Felicidade se não vivesse o Amor final. Perfeito, tranquilo, parceiro, leal, para toda a vida. Desistiu de obter o que sempre desejara. A mentira que construíra para iludir a si mesmo o havia enganado. Criara realidades paralelas, mas esquecera que paralelas não se cruzam.


Dia desses, viu, de longe, do outro lado da rua, seu antigo Amor passar. Sorriu. Feliz aquele que vivera um real amor de mentira.