Quando o Amor encontrou a Felicidade em um beco sem saída
qualquer, fazia um calor dos diabos. Era uma daquelas noites de verão em que o
ar entra pesado em seus pulmões e atravessa seu sistema respiratório como lava
incandescente. Você inspira e sente ele te queimando por dentro.
Há algum tempo, eles já vinham caminhando paralelamente.
Quase que lado a lado. Trocavam olhares lascivos, mas hesitavam em se tocar,
hesitavam em falar um com o outro.
Entretanto, naquela noite quente, naquele beco sem saída
qualquer, eles sem encontraram. Não havia como evitar. Os caminhos foram
afunilando. Estavam cada vez mais perto. Os ponteiros no relógio da torre do
antigo prédio corriam. O sino da catedral dobrava.
A primeira reação após o primeiro contato foi de
estranhamento. Nunca haviam estado juntos antes. Viam-se, ao longe, mas, sempre
que tentavam se aproximar, algo acontecia, algum tipo de força alheia às suas
vontades agia sobre eles, os empurrava para outra direção, tomava o controle de
seus movimentos, os incitava a se afastarem.
O primeiro a chegar foi o Amor. Na verdade, foi um
ressurgimento. Ele já aparecera em algumas ocasiões anteriores. Permanecera por
algum tempo, ganhara espaço, tomara conta de tudo, e, depois, fora embora.
Deixara um vazio em todas as vezes que desaparecera sem dizer por que.
Agora, ele havia voltado. Descaradamente. Como se não
existisse um passado. Simplesmente bateu à porta em um dia de verão. E, com pura
inocência apaixonada, sua vítima recorrente voltou a convidá-lo a entrar, a
sentar à mesa, a acompanhá-lo em suas tarefas diárias, a ir com ele aonde quer
que fosse. Amava. Mais uma vez.
A Felicidade, sim, foi uma novidade. Nunca haviam se
encontrado. Nem um esbarrão sequer em uma rua movimentada. Pensou que a havia
visto uma vez, mas não tinha certeza. Podia ter se enganado. Provavelmente
tinha se enganado.
Ele sempre acreditara que uma coisa levaria à outra. Não
eram dependentes, mas abririam caminhos. Achava que era possível ser feliz sem
amar e que era possível amar sem ser feliz. Realmente achava. Entretanto, tinha
a convicção de que o Amor poderia ser um atalho para a Felicidade.
Depois do encontro inicial, decidiram, de comum acordo, que
deveriam passar o maior tempo possível juntos para se conhecerem melhor e,
assim, estreitarem a relação.
Como já era de casa, o Amor não fez cerimônias. Chegou
bagunçando tudo, trocando as coisas de lugar, remexendo em baús velhos cheios
de lembranças do passado. Era sempre assim. Cada vez que ele aparecia, seus dias
viravam de cabeça para baixo. Sabia que iria acontecer de novo. Era como o
efeito colateral de um remédio, talvez o único remédio, que poderia salvá-lo.
A primeira semana de convivência conjunta foi extremamente
prazerosa para ambos. Aproximaram-se. As afinidades afloraram. Eram carne e
unha. Completavam as frases um do outro. Sentiam-se afinados, em perfeita
sintonia.
Com o passar dos dias, porém, pequenas arestas começaram a
surgir naquela relação tão lisa, tão uniforme. A convivência sob o mesmo teto
exigia um desprendimento, uma certa dose de sacrifício que não tinham certeza
se estavam dispostos a fazer.
O Amor, com sua aparente doçura e compreensão, agia em busca
de tudo aquilo que lhe fizesse bem. Ele era egoísta. Era parte de seu instinto.
O egoísmo o fazia existir. Buscar sempre o melhor para si mesmo, esse era o seu
lema. Na grande maioria das vezes, isso fazia bem ao outro também, mas era
apenas uma consequência.
A Felicidade, por sua vez, em plena satisfação, não
conseguia compreender os motivos que levavam seu parceiro a procurar suprir
suas necessidades independentemente de isso importar ou não aos que conviviam a
seu redor. Por quê? De que servia ser amor, se não era compartilhado?
As rusgas, inicialmente, foram vistas por ele como algo
normal. Inevitáveis, até certo ponto. Tinha de administrar a situação,
contemporizar os desentendimentos. Sentia-se extremamente bem nas horas que
ambos, Amor e Felicidade, dividiam momentos de harmonia. Os atritos valiam a
pena.
Todos ao seu redor percebiam o quanto ele estava mudado. O
sorriso largo, que há muito estava sumido, reaparecera. Comprara roupas novas,
voltara a participar de confraternizações sociais, recuperara a autoestima. Alguns
creditavam sua Felicidade ao Amor que havia reencontrado. Outros achavam que
estava feliz, e, por isso, amava. Ele não se importava com os motivos. A vida
estava sendo generosa. Era grato por isso.
O tempo – e suas circunstâncias –, porém, trouxe a reboque a
rotina e, junto com ela, vieram as dúvidas, as indagações, as incertezas. As
brigas passaram a ser mais comuns. Ficavam dias sem se falar. O Amor,
orgulhoso, exigia toda a atenção. Tudo deveria girar ao redor dele, afinal, era
um velho conhecido. A novata, por sua vez, tentava ser o mais simpática
possível. Buscava agradar a todos, e isso não era falsidade de sua parte. Ela
realmente ficava realizada ao fazer os outros se sentirem bem. A Felicidade era
puro altruísmo e ficava pasma ao perceber que o Amor também não o era.
Cego de Amor e em torpor diante de tamanha Felicidade, ele
não conseguia enxergar o que se passava consigo. Dominado pelo sentimento e
pelo estado, deixava-se levar por ambos, agindo conforme os interesses de cada um.
Sem perceber que se tornara um fantoche de si mesmo, ficara à mercê de um
embate que, independentemente do resultado, não teria vencedores.
Os amigos se afastaram, cansados de tentar alertá-lo da
situação em que se encontrava. A família insistia em fazê-lo ver o que se
passava, mas ele não queria sequer ouvir coisa alguma de quem via problemas na
sua vida. Simplesmente seguia. Seus desejos o controlavam.
Com o raciocínio prejudicado, seu isolamento dos círculos sociais
se intensificou. Não tardou para que a perturbação custasse seu emprego. Ele
sabia que havia muita coisa errada, mas não queria se desfazer de suas
conquistas. Batalhara muito por aquele Amor. Buscara a Felicidade durante toda
a sua existência. Não iria desistir assim, tão facilmente. Vivia o seu sonho.
Um sonho atribulado, cheio de idas e vindas, altos e baixos. Um sonho diferente
do que havia sonhado, mas que, ainda assim, era um sonho, o seu sonho. Amar e
ser feliz. Não queria e não precisava de mais nada.
Foi em uma noite de chuva quente que seu castelo sobre as
nuvens começou a ruir. Chegou em casa após passar o dia na rua procurando
emprego, e a encontrou sentada no sofá da sala. As pernas cruzadas e um copo de
uísque com gelo na mão. A conversa foi rápida. Ela pegou a bolsa e saiu sem lhe
dar um abraço de despedida.
Mais uma vez, o Amor se fora. Assim como nas outras, partiu
e levou consigo uma parte dele. A Felicidade, sua parceira das melhores horas
da vida, não resistiu àquela perda. Ela tentou, ela realmente se esforçou, mas
não resistiu.
Nos meses que se seguiram ao ocorrido, ele buscou conforto
em prazeres fugazes. Tentou esquecer os bons momentos para, assim, não sofrer
com a falta deles. Em vão, procurou em outros corpos, em outras bocas,
sensações que pudessem aplacar a dor da ausência.
Em seus momentos consigo mesmo, esquadrinhava o passado
atrás de lembranças que lhe mostrassem quais haviam sido seus erros. Encontrara
muitos, mas nenhum que achasse importante o suficiente para motivar o
rompimento. Talvez estivesse enganado, interpretara erradamente as situações
que se passaram entre eles. Em seu íntimo, porém, sabia que não era o culpado.
Dedicara-se intensamente àquela relação. Dera tudo de si. Fizera sacrifícios.
Nada disso fora suficiente.
Anos depois, ele ainda guardava em si as marcas daqueles
dias de sua vida. Custava a compreender o que se passara. Fora tudo tão rápido,
tudo tão intenso, tão visceral. Concluíra que fora enganado. Não era amor, era
medo, com toques de insegurança e requintes de sadismo. A Felicidade, que
fizera de sua vida um misto de êxtase e serenidade, meio loucura, meio sonho,
se foi sem avisar. A morte em vida, a dor que não doía, o fim sem final. Tudo
havia sido obra de sua imaginação doentia.
Sempre acreditara que nunca iria encontrar a Felicidade se
não vivesse o Amor final. Perfeito, tranquilo, parceiro, leal, para toda a
vida. Desistiu de obter o que sempre desejara. A mentira que construíra para
iludir a si mesmo o havia enganado. Criara realidades paralelas, mas esquecera que
paralelas não se cruzam.
Dia desses, viu, de longe, do outro lado da rua, seu antigo
Amor passar. Sorriu. Feliz aquele que vivera um real amor de mentira.
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