sábado, 20 de maio de 2017

O assassino acordou antes do amanhecer




Faltavam sete minutos para as cinco horas da manhã quando ele despertou. Sabia que iria matar naquela noite. Seus dedos formigavam.

Uma garganta cortada. Um corpo na areia à beira do lago.

Não fazia aquilo por mal. Sentia uma espécie de compulsão. Algumas pessoas precisam de sua hora de exercícios logo após o amanhecer, outras não conseguem dormir sem uma dose de uísque puro. Ele precisava matar.

Não sentia remorso, pois não entendia fazer algo errado. Era um hábito que adquirira e que, agora, depois de tantos anos, não se via mais em condições de abandonar.

Cedo naquela manhã, enquanto tomava uma batida de banana com leite e comia torradas lambuzadas com mel, lia o jornal com a habitual tranquilidade. Tinha interesse especial pela sessão de quadrinhos e pelas páginas de esportes. Gostava muito de tênis e até arriscava alguns saques, rebatidas e voleios nos finais de semana sempre que podia. Lhe fascinava a elegância dos movimentos, o girar dos quadris a cada backhand, o bailar das pernas em cada subida à rede, os saltos acrobáticos quando de um smash. Era o balé na quadra que o encantava e não o jogo em si. Não se importava muito com quem ganhasse ou perdesse, desde que lhe apresentassem um espetáculo para os sentidos. Naquele dia, havia uma boa foto vertical de um tenista que ele não conhecia muito bem, mas que tinha um nome cheio de consoantes e, estranhamente, exibia largas costas de nadador, algo pouco típico em um atleta das quadras. Como de praxe, recortou a imagem e a colocou em seu álbum, junto com todas as outras.

Vestiu-se, conferiu o penteado no espelho, perfumou-se e saiu. Trabalhava em um banco. Atendia as pessoas. Era o responsável pela autorização de empréstimos e pela concessão de linhas de crédito imobiliário. Passava o dia ouvindo histórias tristes de gente que precisava muito do dinheiro para pagar a cirurgia de um parente qualquer e histórias fofas de gente que sonhava em comprar uma casa e iniciar uma vida nova em seu próprio cantinho.

Ele se emocionava com cada drama que ouvia. Assassinos também têm coração.

Levava em um estojo dentro da mochila uma faca de açougueiro curta, com a lâmina curvada e cuidadosamente polida. Achara a faca quando tinha 13 anos de idade, no fundo de um baú com coisas que haviam pertencido ao seu avô materno. O velho, Carmelo, era um imigrante italiano da Toscana que veio ganhar a vida como açougueiro na América. As histórias familiares diziam que ele era muito bom no que fazia. Tinha mãos firmes e precisas, e um corte rápido e limpo.

Ele gostava daquelas histórias. Sentia não ter conhecido o avô. Parecia ter sido um homem de princípios. Um chefe de família rígido, rude, iletrado, mas um homem digno, autodidata em seu ofício e, acima de tudo, consciente da importância daquilo que fazia. O que seria do mundo sem os açougueiros? Preferia nem pensar nisso. Seu avô havia sido um açougueiro famoso na comunidade e ele tinha orgulho.

De Carmelo, herdara a faca de lâmina curta e curva, o modo de gesticular com as mãos e a habilidade no corte da carne.

Aquele dia de trabalho foi bastante agitado para ele. Pela manhã, atendera cinco pessoas. Todas elas precisavam de dinheiro emprestado. Uma mãe de meia idade que queria comprar um computador novo para os filhos; um homem beirando os 40 que necessitava quitar dívidas de jogo; um senhor com seus oitenta e tantos que tinha de pagar os custos do enterro de sua esposa; um jovem na casa dos 20 que estava ansioso para comprar o anel de noivado para sua amada; e uma moça beirando os 18 que não tinha dinheiro para pagar a fiança do namorado. Concedeu o dinheiro a todos, menos à moça da fiança, pois ela era menor de idade. À tarde, encaminhou três contratos de financiamento imobiliário que lhe tomaram muito tempo e um pouco de bom humor. Ainda assim, mesmo cansado, mostrava-se um rapaz simpático e educado com todos. Mantinha a fala rápida e o olhar interessado que tanto encantavam os clientes do banco. Por isso, era o funcionário queridinho do gerente.

Fazia sol quando o expediente acabou. Saiu do trabalho e foi dar uma caminhada pelo parque central. Gostava de olhar o movimento de fim de tarde. Observar os tipos que frequentavam o lugar. Começava a escurecer quando resolveu ir a um pub que ficava a algumas poucas quadras dali. Por quase três horas, bebeu cerveja escura sentado junto ao balcão.

Olhava o entra e sai buscando compreender o que levava as pessoas àquele lugar sujo, escuro e impregnado com cheiro de vômito de dezenas, quem sabe centenas, de bêbados que despejaram ali mesmo, no chão do salão, o que levavam em seus estômagos já cansados de serem tão maltratados.

Era geralmente em lugares como aquele que ele escolhia suas vítimas. Não era uma escolha aleatória. Tinha dias em que demorava muito e só lá para o fim da madrugada, início da manhã, encontrava o que procurava. Ele não se via com um caçador. Ao contrário, enxergava-se como um penhasco que atraia os desesperados. Sentia que o senhor destino mexia seus pauzinhos e colocava em seu caminho as pessoas certas, aquelas que procuravam força ou esperavam a última gota transbordar a sua vida cheia de tristezas e derrotas. Apenas fazia aquilo que eles próprios não tinham coragem suficiente para fazer. Assumia o fardo do trabalho sujo. Carregava o peso de cada vida que ceifara.

Não se sentia mal por isso. Prestava favores a pessoas que não haviam lhe pedido ajuda, mas que precisavam dela. Ao menos, era assim que pensava. Era um trabalho como qualquer outro. A diferença é que ele não era contratado por ninguém e não cobrava pelos serviços prestados.

Naquele dia, fazia pouco mais de meia hora que estava bebericando e observando cada um que entrava no bar, quando viu cruzar a porta uma jovem de cabelos negros e olheiras profundas sob os olhos.

Ela vestia uma jaqueta de couro sobre uma camiseta de banda de rock. Ele não conseguiu identificar qual era a banda com a iluminação fraca do lugar. Calças jeans surradas e tênis de solado baixo. Ela estava sozinha e se sentou em uma poltrona mofada que ficava num canto. Ninguém sentava naquela poltrona. Ela era velha, fedia e ficava quase ao lado da porta do banheiro. Apenas uma pessoa que já não tinha mais nada a perder, que desistira de sua vaidade, que não cultivava perspectivas, se sentaria naquela poltrona.

Era esse tipo de pessoa que lhe atraía. De certa forma, acreditava que cumpria uma missão. Aquelas pessoas das quais arrancava a vida lhe encontravam. De um modo ou de outro, acabavam lhe encontrando. Ele não procurava ninguém. Nunca havia procurado. Era um instrumento pelo qual algum tipo de força maior agia. Respondia a um chamado que não sabia de onde via, mas que ouvia em seu íntimo.

Sentado em seu banco alto em frente ao balcão, observava a moça atentamente. Não olhava fixamente para ela. Sua análise não podia ser ostensiva a ponto de a deixar desconfortável e fazer com que ela fosse embora antes de ele ter um diagnóstico completo e totalmente confiável.

Tinha de se aproximar sem ser notado. Encostar nela sem sair do lugar. Sentir o que ela sentia sem saber o seu nome. Para isso, necessitava da combinação perfeita entre tempo e espaço. Precisava se conectar com a garota. Vibrar na mesma frequência que ela. Sentir em seu peito o bater do coração que batia no peito dela. Só depois disso, apenas após encontrar-se envolto da energia emanada por ela, poderia saber se estava correto em sua impressão inicial. Às vezes, ficava por horas tentando encontrar o ponto certo de equilíbrio e, ainda assim, não chegava nem perto. Em outras ocasiões, porém, bastavam cinco minutos para ter certeza de que aquela era a pessoa que estava destinada a ele.

Nunca se arrependera de um assassinato. Nunca perdera o sono por ter matado.

Ela bebia em silêncio um uísque sem gelo. Por vezes, ele tinha a impressão de que ela também o observava furtivamente. Ela era de uma discrição total. Gestos contidos, expressão plácida. À distância, ele tentava desvendar o mistério que ela representava. Era diferente de todos os outros alvos. Não dava sinais, ocultava as pistas. Dificultava seu trabalho ao extremo. Ele gostava disso.

Sentia-se desafiado. Ela atiçava nele um desejo de conquista que era mais curiosidade do que posse. A cada minuto que passava, tinha mais certeza de que era ela. Fora colocada em seu caminho para que ele pudesse provar para si mesmo que estava desenvolvendo seus instintos, que podia ir além do óbvio, podia encontrar o inseto embaixo da pedra.

Ela era um ponto de interrogação em meio à penumbra e ele não encontrava a resposta. Nem chegava perto. Olhava mais e mais para ela. Colocava sua missão em risco, mas não conseguia fingir indiferença diante de tamanho magnetismo.

No estojo dentro da mochila colocada aos seus pés, a faca de açougueiro de lâmina curta e curva de seu Carmelo pulsava. Seus dedos formigantes tamborilavam no balcão velho de madeira. A respiração rápida.

Ela parecia impassível. Não demonstrava reação alguma. Agora, fumava um cigarro. Despreocupada. Não estava nem aí para o mundo. Não havia um mundo. Não fora daquele bar, não longe daquela mesa. Seu olhar, ora mirava o copo baixo que ela mexia para fazer o uísque balançar, ora apontava para o ventilador de teto que girava lentamente e não fazia vento algum, mas dava um certo ar blasé ao lugar.

Diante do ineditismo da situação, ele começou a duvidar de si mesmo, da sua capacidade, do seu dom. Teria perdido seus poderes? Não, não era isso. Ela o levava ao limite, o fazia seguir por caminhos desconhecidos. Pensou em mudar sua estratégia. Levantar, se aproximar, pedir licença, puxar uma cadeira, sentar junto e puxar papo. Nunca fizera isso. Nunca pensara em fazer isso. Mas, nunca, também, se vira em um cenário como aquele. Não sabia o que fazer. Admitiu para si mesmo que não sabia o que fazer. Depois de tantos anos naquilo, via-se como um iniciante. Tateava no escuro.

Já tinha perdido a noção do tempo quando percebeu que ela se levantara, deixara algumas notas de dinheiro sobre a mesa e já cruzava a porta em direção à rua. Levantou-se de um salto e deu passou rápidos rumo à saída quando ouviu seu nome gritado pelo atendente do balcão. O homem gritou três vezes até ele ouvir. Voltou, pagou a conta, e saiu correndo. Na calçada, percorreu com os olhos a rua já vazia àquela hora da noite. Ela não estava lá. Ela não estava em lugar algum.

A tinha perdido. Pela primeira vez, tinha perdido um de seus alvos. Não poderia seguir adiante sem fazer o que tinha de ser feito. Ainda sob o efeito da adrenalina secretada em seu corpo, tinha os sentidos aguçados como os de um caçador no meio de uma floresta fechada. Sentiu no ar o cheiro de cigarro barato, o mesmo tipo que ela tragava no bar. Seguiu a passos rápidos a trilha de fumaça até que ela desapareceu. Havia caminhado uns dois quilômetros, mais ou menos. Entrou em um boteco, um muquifo onde vagabundos da noite bebiam cerveja barata e falavam banalidades à espera do amanhecer enquanto esqueciam de suas vidinhas ordinárias. Perguntou ao homem no caixa se ele havia visto uma mulher com as características dela. O homem disse que sim, que uma moça igual àquela que ele descrevera havia estado ali há alguns minutos, comprara chicletes e partira. Ele agradeceu com um aperto caloroso de mão – que carregava consigo uma nota de vinte pratas – e saiu ao encalço dela.

Caminhou por pouco mais de 10 metros, e viu no chão uma embalagem. Abaixou-se e a pegou, percebendo que se tratava do doce que ela tinha comprado no bar. Havia deixado uma pista. Conscientemente ou não, ela havia deixado uma pista para ele seguir. E ele seguiu. Uma a uma. Uma bagana de cigarro. O chiclete já mascado e cuspido no chão. Uma pegada na terra molhada pelo sereno da madrugada. Outra bagana.

Quando deu por si, estava perto da Usina. Àquela hora, o movimento nas ruas era bem fraco. Alguns poucos transeuntes caminhando solitários, um casal trocando intimidades na praça, um mendigo revirando as cestas de lixo, três jovens fumando um baseado sentados sob uma árvore.

Ao longe, em meio à penumbra, conseguiu visualizar uma silhueta. Apenas um vulto, mas teve certeza de que ela era. Sentiu a energia de novo. Apertou o passo. Não poderia perdê-la mais uma vez. Atravessou a avenida em disparada. Não gostava do que estava fazendo. Sempre fora discreto em suas abordagens. Nunca despertou suspeitas. Nenhuma. Agora, estava correndo em desespero pelas ruas atrás de seu alvo.

À beira do lago, procurava na areia pegadas que pudessem indicar para onde ela teria ido. Na escuridão, precisava sentir a sua presença mais do que vê-la. E foi assim que, de repente, um ar quente de respiração bafejou sua nuca. Por não mais do que apenas um instante, ficou estático, sem nenhum movimento, sem pensar em nada. Não precisou olhar nos seus olhos, sentir o seu cheiro, para saber que era ela. Não precisou se virar para compreender o que acontecia ali. Finalmente entendia o que aquele sentimento pela manhã, o que aquele encontro no bar, o que aquela perseguição pela noite significavam.

Havia sido um tolo presunçoso. Achara que era único. Percebia, agora, porém, que fora uma marionete em um jogo do qual não tinha noção de que estava participando. Não cumpria uma missão, ao menos não uma missão pessoal. Não era um enviado de uma força superior.

Lembrou de Carmelo. O avô que chegara àquela terra sem nada e que se fez homem à base de seu trabalho. A habilidade com as facas herdada do velho. Talvez conseguisse, se fosse rápido o bastante...

Levou a mão na mochila, mas não teve tempo sequer de tocá-la. A mão esquerda em seu ombro, o movimento preciso da lâmina rasgando a garganta

No chão, enquanto se engasgava com o próprio sangue, olhou para ela. Não enxergou remorso ou pena ou qualquer tipo de sentimento em seu olhar frio.

...

Era esse tipo de pessoa que a atraía. De certa forma, acreditava que cumpria uma missão. Era um instrumento nas mãos de algo maior. Respondia a um chamado.

Faltavam doze minutos para as três horas da manhã quando deitou-se para dormir. Sobre a cômoda ao lado da cama, a navalha que havia sido de seu pai, que fora barbeiro.