quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Ele era um colecionador de palavras

Era um colecionador de palavras. Ficava furioso quando diziam para ele que aquilo era loucura, que bastava comprar um dicionário, um bom dicionário, que estariam todas ali, as palavras, em ordem alfabética, inclusive.

Colecionava palavras. Para ele, a quantidade não era o mais importante. Um colecionador de carros não busca todos os modelos do mundo, e sim aqueles que o atraem especialmente, os raros, os únicos. Assim era ele com as palavras. Coletava apenas as especiais, as que o emocionavam.

Não era um minerador em busca de pedras preciosas. Não corria atrás das peças de sua coleção. Estava, sim, sempre atento para, quando uma delas cruzasse o seu caminho, capturá-la.

A semana de trabalho vinha sendo bastante normal, quase monótona. Foi quando encontrou um “soçobrar” em uma página de jornal de quinta-feira que sentiu que nem tudo estava perdido. Fazia bastante tempo que procurava, em vão, por um “soçobrar”. Guardou aquele com muito cuidado.

Colecionar palavras era um hobby bem desafiador. Exigia muito dele. Exigia tempo, pesquisa, trabalho, conhecimento. Exigia desprendimento, dinheiro, persistência. Os outros viam nele um louco. Ele se enxergava como um visionário. Um homem que entendia a importância e, mais do que isso, a necessidade daquele esforço.

Sua coleção não era organizada por ordem alfabética ou classificação gramatical. Em seu pequeno apartamento de um quarto localizado em uma região suburbana ao Leste da cidade, todas as paredes estavam cobertas por pequenos pedaços de papel. Folhas de caderno, papel pardo, papelão, papel higiênico, guardanapo, tíquetes do metrô, nota do supermercado. Qualquer tipo de papel que estivesse à mão quando encontrasse uma palavra que fizesse seus olhos míopes brilharem.

Coletando há muito tempo e sem mais espaço para fixar suas conquistas, passou a presentear as pessoas as quais gostava com itens de sua compilação. Há alguns dias, desfez-se de um “amor”. Já não fazia mais sentido para ele. Estava ocupando um espaço importante e que estava lhe fazendo falta. O encontro com aquele “amor” lhe fizera muito feliz. Chegara até a pensar que seria o seu único, que não precisaria de mais nenhum, que havia encontrado o “amor” perfeito, o “amor” da sua vida. Enganara-se, obviamente, mas, quem nunca se enganou com um ”amor”?

Manteve consigo, porém, todas as suas “paixões”, em todos os seus tipos. Sempre fora muito apegado àquelas “paixões”. A todas elas. Lembrava perfeitamente de como as conquistara. Uma por uma. Lembrava o lugar, lembrava o horário, lembrava a ocasião. A mais recente delas, fora na parada de ônibus. Esperava o coletivo chegar placidamente quando ela surgiu, flanando, e se postou ao seu lado. Percebeu na hora que aquela seria uma de suas “paixões”. Ele sempre sabia, já no primeiro instante.

O segredo de suas descobertas estava em manter os olhos atentos e o coração aberto. Rasgou seus “preconceitos” e os substituiu por “particularidades”. Interessou-se mais por “semelhanças” do que por “diferenças”.  Buscou “proximidades” onde antes havia “distâncias”.

Não tinha pressa, tampouco objetivos. Não levava consigo uma lista de palavras que gostaria de ter em sua coleção. A vida o levaria a elas. Um “crisântemo” no parque a caminho do trabalho, uma “singularidade” em meio ao caos urbano do centro da cidade, um “preâmbulo” em uma página de um livro qualquer.

Em não raras vezes, se via prostrado em frente aos seus tesouros. Imaginava quantas histórias eles poderiam contar. Suas próprias histórias. As histórias das palavras. Por onde andaram. Em que bocas estiveram. Por que foram ditas. Que emoções despertaram. Nessas horas, questionava se o que fazia era correto, se era justo manter aquelas palavras aprisionadas em suas paredes. Palavras que guardavam em si uma série de significados, mas que permaneciam em perturbador silêncio enclausurado.

Poderia libertá-las. Janela aberta, palavras ao vento. Que elas encontrassem os seus caminhos. Não tinha coragem, porém, de ver sua vida se desfazer diante de si. Algumas pessoas guardavam fotografias para relembrar de momentos importantes. Ele guardava palavras. Cada uma delas remetia seus pensamentos a um lugar, a uma pessoa, a um acontecimento. Eram as memórias de sua vida. As únicas memórias de sua vida. Orgânicas. Pulsantes. Coladas em paredes. Sobrepostas. Desorganizadas. Caóticas. Aleatórias. Memórias de sua vida.

Dedicou seus dias aos “encontros”. Experimentou o “efêmero”, mas preferiu o “agridoce” sabor da “constância”.

Por muito tempo, imaginou como seria vislumbrar o “infinito”. Perdeu as “esperanças”, mas sempre manteve a “fé”.

Nunca teve a “felicidade” em suas mãos.

Encontrou uma violenta “morte” quando já não acreditava mais no “futuro”.

Deixou a “gratidão” sobre a mesa da cozinha. Não teve tempo de colar seu último achado junto com os outros.