Era um colecionador de palavras. Ficava furioso quando
diziam para ele que aquilo era loucura, que bastava comprar um dicionário, um
bom dicionário, que estariam todas ali, as palavras, em ordem alfabética,
inclusive.
Colecionava palavras. Para ele, a quantidade não era o mais
importante. Um colecionador de carros não busca todos os modelos do mundo, e
sim aqueles que o atraem especialmente, os raros, os únicos. Assim era ele com
as palavras. Coletava apenas as especiais, as que o emocionavam.
Não era um minerador em busca de pedras preciosas. Não
corria atrás das peças de sua coleção. Estava, sim, sempre atento para, quando
uma delas cruzasse o seu caminho, capturá-la.
A semana de trabalho vinha sendo bastante normal, quase
monótona. Foi quando encontrou um “soçobrar” em uma página de jornal de
quinta-feira que sentiu que nem tudo estava perdido. Fazia bastante tempo que
procurava, em vão, por um “soçobrar”. Guardou aquele com muito cuidado.
Colecionar palavras era um hobby bem desafiador. Exigia
muito dele. Exigia tempo, pesquisa, trabalho, conhecimento. Exigia
desprendimento, dinheiro, persistência. Os outros viam nele um louco. Ele se
enxergava como um visionário. Um homem que entendia a importância e, mais do
que isso, a necessidade daquele esforço.
Sua coleção não era organizada por ordem alfabética ou
classificação gramatical. Em seu pequeno apartamento de um quarto localizado em
uma região suburbana ao Leste da cidade, todas as paredes estavam cobertas por
pequenos pedaços de papel. Folhas de caderno, papel pardo, papelão, papel
higiênico, guardanapo, tíquetes do metrô, nota do supermercado. Qualquer tipo
de papel que estivesse à mão quando encontrasse uma palavra que fizesse seus
olhos míopes brilharem.
Coletando há muito tempo e sem mais espaço para fixar suas
conquistas, passou a presentear as pessoas as quais gostava com itens de sua compilação.
Há alguns dias, desfez-se de um “amor”. Já não fazia mais sentido para ele.
Estava ocupando um espaço importante e que estava lhe fazendo falta. O encontro
com aquele “amor” lhe fizera muito feliz. Chegara até a pensar que seria o seu
único, que não precisaria de mais nenhum, que havia encontrado o “amor”
perfeito, o “amor” da sua vida. Enganara-se, obviamente, mas, quem nunca se enganou
com um ”amor”?
Manteve consigo, porém, todas as suas “paixões”, em todos os
seus tipos. Sempre fora muito apegado àquelas “paixões”. A todas elas. Lembrava
perfeitamente de como as conquistara. Uma por uma. Lembrava o lugar, lembrava o
horário, lembrava a ocasião. A mais recente delas, fora na parada de ônibus.
Esperava o coletivo chegar placidamente quando ela surgiu, flanando, e se postou
ao seu lado. Percebeu na hora que aquela seria uma de suas “paixões”. Ele
sempre sabia, já no primeiro instante.
O segredo de suas descobertas estava em manter os olhos
atentos e o coração aberto. Rasgou seus “preconceitos” e os substituiu por
“particularidades”. Interessou-se mais por “semelhanças” do que por
“diferenças”. Buscou “proximidades” onde
antes havia “distâncias”.
Não tinha pressa, tampouco objetivos. Não levava consigo uma
lista de palavras que gostaria de ter em sua coleção. A vida o levaria a elas. Um
“crisântemo” no parque a caminho do trabalho, uma “singularidade” em meio ao caos
urbano do centro da cidade, um “preâmbulo” em uma página de um livro qualquer.
Em não raras vezes, se via prostrado em frente aos seus
tesouros. Imaginava quantas histórias eles poderiam contar. Suas próprias
histórias. As histórias das palavras. Por onde andaram. Em que bocas estiveram.
Por que foram ditas. Que emoções despertaram. Nessas horas, questionava se o
que fazia era correto, se era justo manter aquelas palavras aprisionadas em
suas paredes. Palavras que guardavam em si uma série de significados, mas que
permaneciam em perturbador silêncio enclausurado.
Poderia libertá-las. Janela aberta, palavras ao vento. Que
elas encontrassem os seus caminhos. Não tinha coragem, porém, de ver sua vida
se desfazer diante de si. Algumas pessoas guardavam fotografias para relembrar
de momentos importantes. Ele guardava palavras. Cada uma delas remetia seus
pensamentos a um lugar, a uma pessoa, a um acontecimento. Eram as memórias de
sua vida. As únicas memórias de sua vida. Orgânicas. Pulsantes. Coladas em
paredes. Sobrepostas. Desorganizadas. Caóticas. Aleatórias. Memórias de sua
vida.
Dedicou seus dias aos “encontros”. Experimentou o “efêmero”,
mas preferiu o “agridoce” sabor da “constância”.
Por muito tempo, imaginou como seria vislumbrar o “infinito”.
Perdeu as “esperanças”, mas sempre manteve a “fé”.
Nunca teve a “felicidade” em suas mãos.
Encontrou uma violenta “morte” quando já não acreditava mais
no “futuro”.
Deixou a “gratidão” sobre a mesa
da cozinha. Não teve tempo de colar seu último achado junto com os outros.
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