Chovia.
Sentado no sofá da sala, que dava de frente para a grande
janela na qual as gotas grossas explodiam em fúria, ele olhava para a rua
enquanto pensava. Entre os dedos médio e indicador da mão esquerda, um cigarro
barato qualquer. Com a mão direita, segurava um copo com conhaque. Na mesinha
ao lado do sofá, o aparelho de telefone e, sobre as teclas, um pedaço de papel
com bordas irregulares trazia escrito um número. Em seu colo, o retrato em
preto em branco de um amor.
Ele queria tomar o aparelho nas mãos, pressionar as teclas
certas, esperar o telefone chamar, uma, duas, três, quatro, cinco – não
esperaria mais de cinco chamados – e ouvir a voz dela. Mas ele sabia que, no
momento em que fizesse isso, estaria reabrindo uma porta que já havia sido
fechada há muito tempo. Estaria revirando baús velhos, remexendo caixas que já
acumulavam poeira.
Feridas haviam cicatrizado. O tempo os afastara e a
distância soube acalmar a tempestade, aparar as arestas. Ele sentia, porém,
dentro de si, uma força que o impulsionava de volta àquele passado que pensara
já ter esquecido.
Depois do fim daquilo que por muito tempo acreditou ser o
amor de sua vida, passou a ver com desconfiança qualquer relacionamento entre
duas pessoas. Não enxergava verdade.
Esforçava-se, mas não enxergava. Tornou-se um cético.
Nos últimos anos, sua vida entrara nos eixos. Todo o
encantamento, toda a paixão, todo o amor, todas as decepções, todas as brigas,
toda a tristeza. Tudo havia ido embora. Eram parte de uma história que não
queria esquecer para não repetir os mesmos erros, mas que preferia não lembrar
a todo o momento, para não revivê-la.
Estava bem. Não tinha dias excepcionais, mas também não havia
muito do que se queixar. Levara um bom tempo para se desapegar, carregou
consigo uma soma incontável de mágoas e traumas, mas, agora, estava bem. Até
deixar de tomar os remédios que tomava desde que ela havia partido ele deixara.
Não contava, porém, que, em uma agradável manhã de
segunda-feira, uma carta chegaria em sua caixa de correio. Era uma carta. Quem
envia cartas nos dias de hoje? Ele, com certeza, não. Sequer recordava a última
vez que havia postado uma. Ouviu dizer que muitas pessoas ainda faziam uso do
papel e da caneta, da cola e do selo. Não acreditava que essas pessoas eram
muitas, mas também não pensava nisso com frequência. Naquela agradável manhã de
segunda-feira, entretanto, uma carta repousava em sua caixa de correio e ele
não conseguia esconder o misto de surpresa e êxtase que lhe tomava.
Uma carta! Tomou-a nas mãos e, de súbito, um frisson apossou-se
de seu corpo. A mesma sensação que sentira no dia em que a viu pela primeira
vez, e que sentira novamente quando a beijou pela primeira vez, e que sentira outra
vez quando se amaram pela primeira vez. A mesma sensação de quando a viu
cruzando a porta de sua casa pela última vez.
O envelope em branco, sem remetente, aumentou ainda mais o enigma.
Aquilo havia sido deixado ali pela pessoa que o escrevera. Era alguém que fazia
questão de entregar pessoalmente, mas que não quis o fazer em mãos. Mais
mistério, mais mistério.
Cruzou o portão, olhou para ver se via alguém suspeito na
rua, mas não enxergou ninguém. Era uma viela bem tranquila aquela, sem condomínios,
com casinhas humildes, jardins modestos. Deu meia volta e entrou em casa.
Na cozinha, preparou um chá preto fumegante e se acomodou
junto à mesa. Com o envelope, ainda fechado, à sua frente, tamborilava no vidro
com a ponta dos dedos da mão direita. Esperava o momento certo para abri-lo. O
seu momento certo.
Depois que ela se fora, tornou-se um homem metódico. Gostava
de seguir certos ritos. Pela manhã, ao acordar, espreguiçava-se e fazia alguns
alongamentos ainda na cama. Colocava, primeiramente, o pé direito no chão e,
depois, calçava seus chinelos acolchoados de pelúcia. No banheiro, espirrava
água fria no rosto, desejava um bom dia para si mesmo ao espelho e saltitava
por alguns poucos segundos. Pronto. Estava desperto. O dia havia começado.
Olhando para o envelope, tentava imaginar a história por
trás dele. Não apenas quem o deixara ali com o seu ainda oculto conteúdo.
Imaginava o que levara uma pessoa a fazer isso e como ela o fizera. E quando e
por que o fizera.
Ficou por quase meia hora daquele jeito. Tomando chá e
encarando o envelope sem tocá-lo. Levantou-se e circulou a mesa caminhando
lentamente. As mãos, ora nos bolsos, ora mexendo no cabelo, ora segurando o
queixo. Os braços, cruzados, às costas, na cintura.
Tinha grande atração por correspondências. Uma carta, por
exemplo. Uma carta é sempre um mistério. Uma carta não se mostra por
antecipação. Ela se insinua. Desperta a curiosidade, incita a imaginação. Mas não
se mostra.
Para ele, era um jogo. Aquela era, possivelmente, a coisa
excitante que lhe acontecia em anos.
Tomou banho, arrumou sua bolsa, pôs o envelope no bolso da
camisa, fechou o botão e saiu. Trabalhava em uma corretora de seguros.
Analisava riscos. Era um homem bastante racional. E pragmático. Precisava se
acalmar, deixar a emoção ir embora e pensar.
O dia de trabalho foi como qualquer outro. Nada demais.
Planilhas, relatórios, cálculos. Mais do mesmo. Ele era bom naquele trabalho. Detalhista,
perspicaz, e, acima de tudo, chato. É preciso ser chato para ser um bom
analista de riscos. Um analista de riscos vê problemas em tudo. E, quando não
existe um, ele cria. É o trabalho dele. Esgotar todas as possibilidades de algo
dar errado.
Durante toda a manhã e tarde, o envelope fechado jazeu
embaixo do teclado do computador. Intocado. Esperando ser violado e, assim,
revelar ao mundo ou a apenas uma pessoa todo o seu conteúdo.
Tentou a todo o custo se concentrar em suas tarefas
profissionais. Não conseguia, porém esconder de ninguém sua inquietação.
Estalava os nós dos dedos das mãos sem parar. Roía as unhas. Tirava e
recolocava os óculos. Passava álcool gel nas mãos. Coçava um cavanhaque que não
tinha. Rangia os dentes. Bebia uma caneca de café atrás da outra. Os colegas de
trabalho notaram que havia algo errado com ele. Às perguntas questionando se
estava tudo bem, respondia com um movimento rápido de cabeça para cima e para
baixo e um “tudo, tudo”. Não convenceu ninguém, mas sempre fora visto como um
sujeito bem excêntrico por todos. Nenhum dos companheiros de labuta deu muita
bola, portanto. Talvez, não tivesse conferido se o gás havia sido desligado, ou
se as torneiras estavam todas fechadas, ou se a porta da geladeira tinha sido
fechada.
Produziu pouco naquele dia. Muito pouco. Pouco mesmo. Quase
nada. Arrumou suas coisas, recolheu canetas e anotações espalhadas sobre a
mesa, colocou a bolsa a tiracolo e o envelope no bolso da camisa. Deu as costas
a todos sem se despedir. Desceu as escadas rapidamente, quase correndo, cruzou
a avenida por entre os carros sem esperar o sinal fechar para os veículos e
esperou por três longos minutos na parada pelo seu ônibus.
Durante o caminho, tentou esvaziar sua cabeça, abster-se de
pensamentos. Concentrar-se em nada. Precisava estar pleno de suas capacidades
cognitivas. Dormiu. Necessitava daquele sono. Esgotou suas energias naquele dia
de massacrante angústia à espera de uma descoberta que teimava em adiar.
Já em casa, tratou de tomar um banho quente. Acendia um
cigarro sentado ao sofá quando começou a chover. Respirou fundo e tomou o
envelope nas mãos. Rasgou a lateral com cuidado e retirou de dentro um pedaço
rasgado de uma folha de caderno. Desfez as dobras, ajeitou os óculos que
teimavam em correr para a ponta do nariz, sorveu um bom gole de conhaque e leu
as palavras ali escritas.
“Sinto saudades.”
E um número de telefone.
Só isso. Nada mais.
Em letras miúdas. Escritas a lápis, em traço leve, sutil.
“Sinto saudades.”
Nenhuma assinatura. Nenhuma indicação de quem poderia ter
escrito.
Ainda que a dúvida sobre o remetente misterioso martelasse em
sua cabeça, ele sabia muito bem que somente uma pessoa poderia ter escrito
aquilo. Tentava convencer-se de que estava enganado, de que aquilo poderia ser
obra de algum garoto da vizinhança querendo lhe pregar uma peça, mas não
conseguia ludibriar a si mesmo.
Sabia que era dela.
De quem mais haveria de ser?
Aquela simplicidade, aquele modo direto de falar tudo com
poucas palavras.
“Sinto saudades.”
Quem mais haveria de ser?
Era ela. Definitivamente, era ela.
Levou o bilhete ao rosto para tentar sentir um perfume que
não existia. Ela nunca gostara de perfumes. Tinha alergia.
Releu por incontáveis vezes as duas palavras ali escritas.
Tentava, agora, entender por qual razão ela fizera aquilo. Fora ela que o
deixara. Estavam bem. Não brigavam há meses. Nem uma discussão sequer. Estavam
afinados como nunca antes haviam estado. Tinham tido um dia muito agradável,
fizeram amor antes de dormir. Acordou pela manhã e ela já não estava mais lá.
Se foi sem lhe dizer nada. Simplesmente partiu.
Agora, como quem voltasse de férias, um pouco prolongadas,
quem sabe, ela aparecia em sua caixa de correio querendo, mais uma vez, fazer
parte de sua vida.
Por quê?
O que será que acontecera para esse repentino retorno?
Precisava compreender o que se passava. Ela poderia ter
batido à sua porta pela manhã bem cedo, ou à noite, logo depois de escurecer.
Ele estaria lá. Ela sabia disso. Sabia muito bem. Haveria um constrangimento
inicial, sem dúvida. O fim fora traumático, mas ela sabia que ele era um homem
compreensível e educado. Não iria destratá-la.
Era preciso ser racional. Ao certo, ela ficara sabendo, de
uma forma ou outra, que ela ainda a amava. Algum amigo em comum, quem sabe. Ele
não escondia de ninguém o que sentia. Sob a cama, guardava, em uma caixa de
papelão, objetos diversos que o remetiam aos dias em que viveram juntos. Bilhetes,
e-mails, desenhos, postais, cartões de embarque, fotografias dos lugares que
haviam visitado (mas nenhuma em que os dois apareciam juntos).
Eles tinham sido felizes. Completavam-se. Conheciam-se muito bem. Talvez, por isso tenha chegado ao fim. Eram tão
perfeitos um para o outro que a falta de ruídos, a ausência de oscilações, de
altos e baixos, que a permanente constância da relação acabou por levá-los a um
cenário em que não havia mais surpresas. Tornaram-se óbvios.
Com a carta nas mãos, chorou como há muito não chorava. Não
estava triste. Uma esperança já soterrada irrompeu em seu coração. Ela não o
havia esquecido.
“Sinto saudades.”
Típico dela. Sempre fora sucinta, sem rodeios. Dizia
exatamente o que sentia. Sentia saudade. Duas palavras. Para quê mais? Dissera
tudo.
Passou a semana inteira à espera de algo mais. Nada. Um mês
ficou para trás, e depois mais um, e outro, e outro, e outros mais. Assim como
ressurgiu, desaparecera. Sem deixar vestígios. Durante todos esses dias,
tentou, em vão, criar coragem para tomar o telefone em suas mãos e ligar para
ela. Não o fez.
Depois de mais um dia de apreensiva espera, de desesperadora
indecisão, chorou novamente. Sentia dentro de si
uma dor que médico algum poderia dar fim. Enxugou as lágrimas. Respirou fundo.
Uma. Duas vezes.
Foi dormir.
Antes, porém, remexeu a gaveta do criado mudo que estava ao
lado da cama, tateou a peruca, o batom, a maquiagem, jogou a câmera fotográfica
para o lado, e pegou uma folha de papel e uma caneta.
Na manhã seguinte, quem sabe, um novo envelope poderia estar
na caixa de correio.
Ela sentia saudades. Ele também.
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