terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Tamires queria voar


Desde muito pequena, Tamires dava sinais de que era uma menina diferente das outras.

Ela sempre se sentia no lugar errado, na hora errada, com as pessoas erradas. Era isso e era sempre assim.

Era tudo muito estranho. Sentia-se deslocada, como se fosse a protagonista da história de outra pessoa. As coisas não faziam sentido. Não se encaixavam. Uma valsa descompassada.

Palavras vazias sem contexto.

Recortes de histórias pueris.

Retratos de gente sem rosto.

Ela, porém, não se queixava. Tentava se adaptar. Na medida do possível, levava uma vida normal. Mas ela não era normal. Ela era diferente. Diferente aos olhos dos outros e diferente aos seus próprios olhos. Ela era um ponto de exclamação.

Ser menina não é fácil. Não é naturalmente fácil. Por isso que elas são mais fortes. O mundo cobra mais, elas respondem na mesma moeda. Tamires tinha uma personalidade inflamável. Era lago tranquilo quando calma e em paz. Era mar revolto quando provocada. Podia ser brisa, podia ser furacão.

Era uma força da natureza.

Doce e indócil. Raio e trovão.

Na escola, ela sempre fora uma ótima aluna. Dedicada, atenciosa, educada. As boas notas nas provas e nos boletins escolares eram o resultado de uma combinação de sua rapidez de raciocínio, sua curiosidade e desejo de sempre querer saber mais sobre tudo, e de sua constante insatisfação e inconformidade com o básico.

Não gostava da planície. Preferia os altos e baixos.

Ela sempre pensava um passo adiante. Sempre vislumbrava o próximo movimento. Teria sido uma brilhante enxadrista se tivesse se interessado pelo jogo. Mas ela nunca foi uma entusiasta de jogos. Suas vitórias vinham em cada descoberta, em cada aprendizado, em cada porta que se abria em seu cérebro e que fazia com que novos lugares pudessem ser conhecidos.

Ela era uma exploradora. Sua imaginação a desafiava.

Campos de plácidas vidas, de vivas cores.

Nuvens de algodão doce, estrelas de neon.

Tamires não tinha muitos amigos. A bem da verdade, eles eram bem poucos. Ela despertava uma reação paradoxal nas pessoas. Atração e repulsa andavam lado a lado. De vez em quando, tocavam as mãos. Nesses instantes, era puro frisson. Tamires era magnética.

Ela era o caos.

Um turbilhão.

Uma tempestade.

Um grito de horror.

Um riso incontido.

Pois bem. Apesar de ainda na infância já se sentir uma estranha onde quer que estivesse, com quem quer que fosse, foi na transição da adolescência para a idade adulta que o sentimento de não pertencimento se apossou de Tamires por completo. Ela não era daquele lugar. Não era de lugar algum.

Tamires floresceu. Um lírio em meio ao deserto.

Enquanto todos os que a rodeavam buscavam sensações – frugais, banais, viscerais, lancinantes –, ela buscava sentimentos – intensos, profundos, duradouros, plenos.

Vivia paixões. Estava permanentemente apaixonada. Amores platônicos, imaginados, imaginários. Assim eram os seus preferidos. Tivera relacionamentos, daqueles clássicos de adolescentes. Amor? Talvez tenha amado, não sabia ao certo. Sempre se achou muito mais madura do que qualquer pessoa da sua idade, principalmente meninos. Preferia se perder nas histórias de seus livros a buscar alegria rasa e banal em um copo de cerveja ou em uma noitada de risos vazios, abraços vazios, gritos vazios, beijos vazios. Não fugia ou se escondia de seus problemas. Enfrentava-os, não sem derramar algumas lágrimas. Nunca foi atraída por festas, nunca gostou de agitação. Tinha em suas coisas, seu quarto, seus pensamentos malucos e suas ideias mirabolantes o seu casulo.

Música alta e saltos sobre a cama.

Ela era uma inconformada. Uma incompreendida. Uma incompreendida inconformada. Difícil de entender, ainda mais difícil de explicar.

Inexplicável. Incompreensível.

Entretanto, ela era uma menina do seu tempo. Suscetível às influências da cultura local. Suscetível ao ambiente que a rodeava. Vivia em uma cidade de tamanho médio. Nem pequena nem grande. Isso já a incomodava. Não gostava do meio termo, da imparcialidade. Ela sempre tinha um lado. Era entusiasta dos extremos!

Gostava dos sorrisos enormes, das gargalhadas. Quando chorava, as lágrimas escorriam por sua face em profusão. E ela chorava com frequência. Nunca teve problemas com isso. Nunca teve problemas em se expor.

Era crua. Era bruta. Era joia incomum. Onda quebrando na praia. Gota de chuva explodindo na terra.

Medos? Tinha muitos. Todos eles, talvez. Tinha medo de barata, medo de ficar sozinha em noites silenciosas. Tinha medo de morrer, mas não de viver. Fazia isso com excelência de uma serelepe criança. E era assim, com impulsiva força vital, que enfrentava os seus temores. Não há glória em não sentir medo. Isso não é coragem. Tamires segurava o medo com suas mãos, segurava-o com força, fazia dele parte de si mesma. Ela era os seus medos.

Passava uma falsa imagem de fragilidade. Fisicamente, era pequena. Aos olhos de quem a via e não a conhecia (como eu a conhecia), ela parecia poder se quebrar ao primeiro toque, ao primeiro abraço.

Talvez, essa tenha sido uma das razões para ter construído uma fortaleza ao redor de si. Não a única razão. Tampouco a mais importante. Sentia-se sozinha. Sentia-se principalmente sozinha quando estava rodeada de pessoas. Em família, nas ruas, na faculdade, no trabalho. Nada em comum. Uma intrusa em terras hostis. Sendo assim, nada mais natural do que se proteger, se manter acuada.

Essa muralha que a mantinha a uma distância segura de tudo aquilo que poderia machucá-la, aborrecê-la ou magoá-la, por outro lado, alimentava a sua furiosa vontade de ser livre. Perdida no mundo em que vivia, criou o seu próprio. Seu mundinho particular. Lá, ela poderia ser quem quisesse, inclusive ela própria. Lá, não havia julgamentos, preconceitos ou inveja. Tudo era tão harmonioso e sincero naquele mundinho particular. Tudo era tão belo, tão singelo.

Campos de flores multicoloridas. Rios e lagos de águas límpidas. Montes nevados e vales verdejantes. Uma casinha de madeira simples, no meio da mata, longe de tudo. E um amor. Ela não precisava de mais nada.

Tamires era uma das pessoas raras. De uma espécie única. Para alguns, excêntrica. Para outros, arrogante. Uma vez eu li em um dicionário que excêntrico é aquele que está afastado do centro. Combinava com ela. Combinava direitinho.

Gostava do silêncio. Quietinha, sentindo a respiração. Ouvindo o coração bater. Estar consigo mesma. Sentir-se plena.

Era uma força interior. Uma chama latente. Era uma águia selvagem, um corcel indômito. Precisava se libertar. Precisava tomar o tempo em suas mãos. Precisava sentir o mundo girando sob seus pés.

Era um domingo. Ela havia acordado mais tarde do que de costume. Brincava com Princesa, sua cadela de estimação, quando percebera algo estranho em si mesma. Havia alguma coisa de diferente. Era algo físico, mas era mais do que isso. Seu espírito parecia inquieto. Seu coração pulsava em um ritmo frenético.  Estava arrepiada. Não conseguindo, porém, descobrir o que era, tratou de deixar para lá. Não havia de ser nada demais. Tentou esquecer.

Almoçou com a família e se recolheu ao quarto. Foi ali que, pela segunda vez no dia, sentiu que havia algo errado. Alguma coisa a incomodava, um desconforto, mas ela não tinha a menor ideia do que poderia ser. Deitou-se na cama, catou um livro na estante e começou a leitura. Percorreu as páginas por não mais do que meia hora. Era um bom livro, mas não a fez ingressar na história, não a fez querer estar lá, junto com os personagens, ser um deles. História bem escrita, mas sem vida. Sentiu as pálpebras pesarem sobre os seus olhos. Deixou o livro sobre o criado mudo e recostou-se. Dormia.

Então, se viu no alto de uma montanha. Ventava forte. Um ar limpo e fresco adentrava em seus pulmões e os enchia de pura vida. No horizonte, montes, vales, rios e lagos. Cores múltiplas. Uma pintura. Estava em casa. Seus olhos marejaram. Chorou.

Quando despertou daquele sonho, sabia exatamente o que havia de estranho, sabia o que estava diferente. Quando despertou daquele sonho, sabia o que precisava fazer. Não tinha mais dúvidas. Estava claro, límpido como um céu de primavera.

Levantou-se e saiu correndo em disparada.

Sem nada nas mãos. Os olhos, bem abertos, faiscavam. Não tinha ideia de para onde estava indo. Apenas estava indo. O mais rápido que podia. Nada importava além de si e da vontade insana de seguir em frente. Não pensava em nada.

Enquanto corria, sentia, mais uma vez, aquela sensação estranha. Estava elétrica. Algo estava prestes a acontecer. Algo muito grande estava prestes a acontecer. Sentia isso em sua pele.

E, então, correu ainda mais rapidamente. Seus pés quase não tocavam o asfalto. Ela flanava. Estava descalça.

Suas costas formigavam. Seu sangue fervilhava em suas artérias.

Sentia que toda a sua vida fora uma preparação para aquele momento. Todas as dificuldades, todas as barreiras, todas as conquistas. Todas as emoções. Toda a dor. Tudo. Tudo fora um processo de maturação. E eis que, agora, ela estava pronta. Havia chegado a hora. Tudo se conectava, todos os fatos, todos os momentos, os dissabores e as alegrias, todos formavam uma teia perfeita de eventos que a levaram até ali.

Cada vez mais rápido. Cada vez mais rápido. Mais rápido. Mais rápido. Mais rápido.

Mais rápido.

Tamires vivia no mundo da lua. Aquele era o seu mundo. Os olhos, sempre voltados para o alto. O pensamento, nas nuvens. Era lá que ela queria estar.

Nunca gostou de ter os pés no chão. Aquilo lhe limitava. A natureza havia lhe desafiado. Aquela era a sua provação.

Ultrapassar os limites, cruzar os céus.

Braços para o alto, mãos espalmadas.

Seus sonhos eram o seu impulso. Seu espírito, suas asas.  

Tamires queria voar.

Um risco no azul, por entre as nuvens, um ponto no céu.

Tamires era pássaro, era estrela, era raio. Tamires era energia pura.

Tudo era pequeno demais para ela aqui em baixo. Tudo muito restrito. Tudo muito mesquinho. Ela queria mais. Precisava de mais.

Foi em um domingo à tarde que ela se libertou.

Agora, está exatamente onde deveria estar.

Pode ser vista rasgando o céu nos dias de ventania.

Pode ser sentida nas noites quentes de verão.


Livre.