sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Um dia cinza



Era um dia frio. Não era um dia excepcionalmente frio, mas era um dia frio, assim como a maior parte dos dias nessa época do ano. O inverno do ano anterior havia sido um dos mais rigorosos das últimas duas décadas. Assim, as temperaturas pouco abaixo de zero grau não pareciam deixar o dia tão frio. Mas era um dia frio. A presença do sol só podia ser notada pelo fato de não ser noite e de as luzes nos postes nas ruas estarem apagadas. De resto, era impossível ver qualquer pequena parte dele. Nem um raio sequer. Não havia sombras. Nuvens escuras cobriam todo o céu que se podia enxergar. Os diferentes e acentuados tons de cinza formavam uma bela pintura por sobre as cabeças que, em sua maioria, estavam cobertas por chapéus que as protegiam de uma possível queda repentina de flocos de neve e impediam que os cabelos balançassem a cada rajada de vento.

O tempo se esvaiu rápido naquele dia. As horas escorreram por entre os dedos e a ausência das vivas cores impedia os olhos de perceberem que a manhã já não era manhã e que a tarde já não era tarde e que a noite já estava logo ali, espreitando.

Cinza.

Era um dia cinza. Era um dia cinza no céu e era um dia cinza na terra. As pessoas estavam cinza. Vestidas de cinza. As faces eram cinza. Os homens caminhavam com rapidez, olhando para o chão cinza, com suas pastas cinza em uma das mãos e um jornal cinza na outra. As mulheres carregavam suas compras cinza e empurravam carrinhos de bebê cinza, ambos, o carrinho e o bebê. Também elas olhavam para o chão.

Era uma época de poucas palavras aquela. Pelo menos entre as pessoas. Elas ouviam muitas palavras. Elas eram forçadas a acreditar e, em sua maioria, acreditavam, em palavras. Mas falavam pouco. Aquela era uma época de pessoas cansadas. Era uma época de pessoas cansadas não pelo que estava ocorrendo, mas pela perspectiva do que estava por vir. Era uma perspectiva triste. As pessoas viam se repetindo no futuro as coisas que aconteceram no passado. As pessoas não gostavam de ver isso. Mas elas não tinham muitas dúvidas de que veriam tudo acontecer novamente, só que em uma intensidade e escala maior. Muito maior. A dúvida que elas tinham era somente uma: quando? Elas sabiam o “porquê” e o “como”. Só não sabiam, exatamente, “quando”.

O dia estava frio e cinza.

Um homem e uma mulher caminhavam em uma estação de trem.

Eles caminhavam com passos rápidos, queriam que aquilo acabasse logo. Levavam no cenho uma expressão que misturava um pouco de medo, uma pitada de desgosto, uma dose de cansaço, algumas gotas de complacência, uma porção de resignação e um sutil resquício de esperança. Muito sutil. Quase imperceptível.

Ela carregava uma mala cinza na mão esquerda. Ele carregava outra, também na mão esquerda.

As duas malas eram dela.

Caminhavam lado a lado, ele à direita dela. Os passos pareciam ter sido ensaiados. A sincronia era perfeita. As pernas direitas se projetavam à frente, enquanto as esquerdas permaneciam no mesmo lugar. Assim seguiram, fazendo uma macilenta coreografia.
Uma rajada de vento fez algumas folhas e bilhetes descartados dançarem no chão úmido. Isso trouxe lembranças à cabeça dele. Lembrou de como em uma noite quente do último verão as estrelas tomaram conta do céu. E de como ele levantou de onde estava sentado e convidou-a para dançar. “Cada passo, uma estrela”, foi o que disse, baixinho, no ouvido dela. Dançaram ao ritmo das nuvens. E, dessa forma, ficaram por muitos minutos, aventurando-se nas constelações. Começaram por Auriga, seguiram para Perseu, passaram lepidamente por Andrômeda, e então Peixes, e Áries, e Touro e, por fim, Órion. Até que ela parou e ele perguntou, sem dizer uma palavra, o que havia acontecido. “Mais noites virão, o universo é infinito. Vamos sonhar agora”, foi o que ela disse. E, então, ambos deitaram sobre a relva, deram-se as mãos, fecharam os olhos. E sonharam.

As lembranças se foram e ele voltou à estação. Olhou para a esquerda, a viu, e passou a mala da mão esquerda para a direita.

E ele segurou a mão dela.

Ela seguiu andando.

Ambos, porém, quase que ao mesmo tempo, mudaram a velocidade com que os passos eram dados. Eles foram ficando mais lentos, mais arrastados. Até que as pernas fizessem somente pequenos movimentos para frente. Agora, avançavam devagar.

Os dois perceberam, quando as mãos se tocaram, que aquela poderia ser a última vez que isso iria ocorrer. Decidiram, então, aproveitar ao máximo aqueles instantes. Os braços unidos formavam um V. E eles seguiram. Caminhando lentamente, eles seguiram, como em um dos inúmeros passeios que fizeram pelo parque que ficava no meio da distância entre as suas casas. Eles entravam no parque de mãos dadas e percorriam todos os caminhos por entre as árvores. Tinham suas trilhas preferidas, aquelas que, na primavera, eram mais rodeadas de flores. Gostavam especialmente das rosas brancas. Nunca arrancaram uma sequer. Deixando as rosas brancas lá, vivas, no parque, haveria sempre um motivo para saírem juntos de novo. Findado o passeio por entre as árvores e as flores e os arbustos e os pequenos animais, eles iam pelo estreito caminho de pedras que atravessava o parque, de ponta a ponta. Caminhavam vendo o dia ir embora e a noite esconder as cores. E então o caminho acabava. Era hora de deixar o parque. Era o fim.

Era o fim.

Eles pararam.

Uma chuva fina começou a cair.

E então veio o silêncio. Um silêncio tumular. Um silêncio tão silencioso que percorria celeremente as ruas e dobrava as esquinas e desfilava ainda mais rápido nas largas avenidas e entrava nas casas sem bater à porta e ecoava nos ouvidos daqueles que não ouviam nada. Tudo isso sem ser notado.

O silêncio.

O silêncio rompe as amarras que determinam os limites do tempo. Não há tempo que dure mais do que o tempo de um silêncio. Aqueles instantes duraram e duraram e duraram e duraram. Eles já haviam se despedido, já haviam se abraçado, um abraço apertado, um abraço com tanta intensidade que já não eram duas pessoas. Os braços que, no começo, cercavam os corpos, penetraram neles. Os dois se fizeram um. Não houve dor. Só silêncio e um lamento que podia se sentir no ar. Um lamento com um odor almiscarado, que se fazia perceber a metros de distância. Aquele abraço de não mais de meio minuto durou uma eternidade.

Mas acabou.

Nada foi dito depois do abraço.

O silêncio.

Ela se virou sem ao menos olhar para ele e começou a caminhar. Eram passos decididos aqueles. Eram passos firmes. Ela parecia marchar. Que ironia, ela parecia marchar.

Ele ficou estático. Nem mesmo um leve movimento nos músculos do rosto. Ele sentiu um aperto no peito. Uma sensação que foi se espalhando por todos os seus ossos. Queria correr. Ele queria correr atrás dela, segurá-la pelo braço e dizer para ela não ir, para enfrentarem aquilo tudo juntos. Depois, ele pensou em correr até lá, segurá-la pelo braço e dizer que iria junto. Que os dois fugiriam. Que deixariam para trás o que os impedia de ficarem unidos, que encontrariam um lugar para viver e que viveriam assim, juntos, por muito e muito tempo, até que a morte chegasse e os levasse embora. Juntos. Por fim, quis correr até ela, tomá-la nos braços e beijá-la. Beijá-la como nunca a havia beijado. Os olhos estariam fechados. Ele pensou nisso. Ele quis fazer isso.

Ele não fez isso. Nada disso.

Ele ficou imóvel.

E, assim, parado, ele a viu se distanciar. E viu nesse espaço entre eles todas as histórias da sua própria vida que ele se imaginou escrevendo ao lado dela. Todas as imagens estavam no chão. Todas as palavras estavam no chão. O chão estava gelado. Ele sentiu esse frio tomar conta do seu corpo, enregelar seu sangue.

Uma lágrima caiu de seu olho esquerdo e escorregou por sua face.

O trem já estava prestes a partir, a última chamada já havia sido feita há bastante tempo.
Ela deu mais um passo. Estava em frente à porta que lhe levaria para longe do futuro que esteve presente nos seus sonhos. O futuro agora era escuro e metálico. O futuro cheirava a mofo. Ela não sabia o que estaria dentro dele e para onde ele levaria a sua vida.

Foi aí que veio o impulso. Um impulso repentino. Um impulso tão forte que fez com que aquela frieza marcial que ela, até então, estampava, se desfizesse. Ela sentiu que tinha de fazer aquilo. Se arrependeria se não o fizesse. Ela sentiu que poderia ser a última vez que o veria.

E então ela se virou. E ela olhou para ele. O rosto magro continuava sem esboçar reação. Os olhos não. Ela concentrou nos olhos todo o seu sentimento. Ela deixou que os olhos negros mostrassem a ele o que ela queria lhe dizer e o que queria fazer.

E assim ela ficou. Por poucos instantes. Alguns segundos apenas. Fitando-o.

Ele sorriu. Ele permaneceu sem se mexer. Ele apenas sorriu.

Ele olhou. Ele sabia que ela não iria voltar. Mas ele olhou. E, quando ela se virou e o viu, ele sorriu.

Ela levou esse sorriso. Ele ficou com aquele olhar.

E ela pôs a perna direita à frente e adentrou na caixa de metal.

Ele permaneceu ali. Imóvel. Em silêncio. Por algumas horas ele ficou ali. E a chuva acabou. E o céu abriu.

Juntar os cacos. Unir o resto. Contar os passos. Expôr o gesto. Cortar os laços. E ir

E ele se foi. Ele se foi pensando em como poderia ter sido e em como ainda poderia ser. Ele não tinha certeza alguma. Ele não sabia o que iria acontecer. Ele só queria deitar naquela relva e passar a noite olhando as estrelas. Vendo o bailar das nuvens no negro tablado celeste.

Assim foi o final.
Ou o início.