sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Para todo o sempre


Lembro muito bem de quando, na primeira semana do Jardim de Infância, briguei com um colega, o Henrique, um loirinho engomado que morava no condomínio Ilhas do Sul. Brigamos por ele não me emprestar um brinquedo de uso coletivo da turma. Eu arranquei o brinquedo, um carrinho de fricção vermelho, da mão dele na marra e dei-lhe um empurrão. Ele caiu, a professora me repreendeu e ficou nisso. Lembro de quando, com mais ou menos a mesma idade, uns seis anos, eu cantava Paradise City imitando o Axl Rose e os amigos do condomínio achavam um máximo. “Se eu conseguisse fazer isso, namorava um monte de guria”, me disse uma vez o Luciano, que era uns três ou quatro anos mais velho do que eu. Lembro de quando, após brigar com minha mãe, já com uns oito anos, rasguei umas notas de dinheiro que achei dentro do armário e saí correndo porta fora pra não apanhar e toda a gurizada veio me perguntar o que tinha acontecido. Lembro muito bem de quando, na primeira série, um colega me derrubou e eu caí de testa no chão de concreto e abriu um rasgo na minha cabeça e era só sangue e eu não chorei e juntou um monte de gente ao redor do bebedor de água enquanto a professora Rosane limpava o meu rosto e então o meu irmão chegou e disse “é o meu irmão” e quando a professora mandou chamar minha mãe e quando, com medo de apanhar, pois tinha feito com que a chamassem na escola, caí no berreiro quando ela entrava pelo portão do colégio. Lembro o nome de todos os meus professores do primeiro grau. Lembro o sobrenome de quase todos os meus colegas dos meus últimos anos na Escola Estadual de Primeiro Grau Professora Violeta Magalhães. Lembro de quando meu pai chegou em casa após ter sido demitido do trabalho. Eu tinha uns 9 anos, eu acho. Lembro de quando, envergonhado, não dancei com a colega mais bonita na quarta-série, mesmo ela insistindo. Lembro do dia em que minha irmã nasceu e de como, no primeiro instante, eu não gostei muito dela, ou melhor, eu não gostei da ideia de ter uma irmã mais nova e de como eu deixaria de ser o caçula da mamãe. Lembro de todos os detalhes da minha paixão adolescente, de momentos completos, do jeito dela andar e mexer no cabelo e de olhar e de rir e da voz dela e das oportunidades que tive para falar com ela sobre isso e dos arrependimentos em sequência por não ter dito nada. Lembro de quando, na sétima série, me desesperei porque iria tirar uma nota vermelha, e consegui convencer a professora a reavaliar minhas provas e atividades e me dar um 6 e não um 4. Aquele não foi um bom bimestre escolar. Lembro de quando fiquei a um ponto da média em Química no primeiro ano do segundo grau e a professora, a Sissi, uma gorducha que tinha um fusca branco e usava uns óculos ridículos, me disse, após eu pedir pra ela avaliar melhor os exercícios que eu tinha feito: “Tu não tá mais no primeiro grau. Cresce.” E daí eu me irritei e estudei como um condenado e tirei um 10 na prova de recuperação e, após ela me entregar a prova, olhei a nota e me virei com um olhar desafiador de um adolescente de 15 anos e, mostrando a prova e apontando pra nota, disse um “cresci” e saí da sala pisando firme.
Lembro da formatura no Araújo Viana. Uma tarde de janeiro quente pra chuchu em Porto Alegre, mais de 300 estudantes de toga felizes pra caramba por saírem do Julinho e eu fiquei rasgando uma colega durante toda a cerimônia. Não funcionou. Não na hora. Lembro perfeitamente dos dias do vestibular em que passei, e de como fiquei sabendo que passei, e dos dias do trote na faculdade, e das primeiras aulas, e de quando em pé sobre cadeiras declamava poemas de Augusto dos Anjos no início das aulas de Teoria do Jornalismo e de quando aprendi a jogar truco e de quando fui carregado nos ombros pelo Schröder na Redenção após fazer um gol de bicicleta, gol esse que repeti pelo Real Envido no campeonato de futsal da Fabico e que me deixou com as costas doendo por quase uma semana. Lembro de quando saí da faculdade, desempregado e bem desiludido com a profissão e dos planos pra seguir outro caminho e de quando o Igor me disse que estava ocorrendo uma seleção no jornal e eu fiz a prova e liguei pro Ungareti pra ele ser fonte na matéria que tinha de fazer como teste e dele perguntando “isso não vai ser publicado né?”. Lembro da minha primeira matéria assinada publicada. Como foi legal. Lembro das mijadas que levei da chefa e de como eu tentava rebater e de como eu ficava brabo e de como aprendi um monte com isso (lembro de todas as frases). Lembro da primeira vez que saí de moto. Aquilo foi demais.

Lembro de muita coisa. Lembro de quase tudo. Lembro do dia em que conheci pessoas e de como as conheci e, em alguns casos, lembro até dos primeiros diálogos. Lembro de coisas que me deram muita alegria. E de coisas que me fizeram muito triste. Lembro das vezes em que pensei em fazer coisas que não deveria ter pensado em fazer. Lembro de coisas que disse e não deveria ter dito. Lembro de coisas que deveria ter dito e não disse. Não é bom lembrar disso, assim, tão cristalinamente.

Há tantas coisas que eu gostaria de esquecer. Ou pelo menos lembrar como a maioria das pessoas lembra, assim, por alto, sem detalhes, como uma pintura expressionista. Tudo seria tão mais fácil.
Amigos me dizem que isso é um dom. Que não conhecem ninguém com tão boa memória assim. Que eu devo ter orgulho da minha capacidade de lembrar do que já passou. Isso pode ser minha dádiva, e talvez seja, mas também é minha maldição. É como uma punição: “Lembrarás de todas as coisas, boas e ruins, em todos os detalhes, para todo o sempre.”
Para todo o sempre. Dia após dia, como um filme em plano sequência. Sem cortes. Até o fim.