Ela é sempre a mesma, mas, a cada
novo dia em que acorda, ela é outra.
Outro dia pela manhã cedo, ela
abriu os olhos, deu um longo e silencioso bocejo, ergueu-se da cama, ficou em
pé e se viu uma palhaça, dessas de circo. Saiu fazendo estripulias e assim permaneceu
durante todo o dia. Espirrou água no rosto de amigos, deu cambalhotas no
corredor da escola e, sempre que pôde, falou com voz alta e estridente “hey,
amiguinhos!!”. Ela estava impossível.
Noutra ocasião, acordou e era uma
bailarina. Passou a manhã, a tarde e a noite dando saltos e giros, rodopios e
rebuscados passos de dança. Foi dormir com os pés doendo e a cabeça nas nuvens.
Houve uma vez em que era uma atriz. Foi
um dia difícil aquele. Uma hora era um drama só. Em seguida, ela ria, falava
bobagens, caminhava engraçado, era pura comédia. Disso para um suspense de
tirar o fôlego, era um pulo.
Era sempre assim. A cada amanhecer, uma nova pessoa se mostrava
para ela no espelho.
Teve um dia, em especial, em que ela levantou, ainda de
pijama, calçou as pantufas, tomou um demorado banho, penteou os cabelos, trocou
de roupa, arrumou a mochila colorida, passou na cozinha, pegou algumas coisas
de comer, encheu seu cantil com água, abriu a porta e saiu.
Ela era uma
andarilha. Uma desbravadora. Uma caminhante. Sem direção e sem propósitos.
Somente andar. Era um domingo.
Não deixou nenhum recado. Não avisou ninguém. Não disse a que
horas voltava.
Era dona de si mesma. Tinha o tempo em suas mãos. Tinha o
mundo aos seus pés.
Ela tinha os cabelos amarrados às costas em um rabo de
cavalo que chacoalhava de um lado para o outro, acompanhando os seus passos
despreocupados.
Ela conversou com muitas pessoas. Queria ouvir as histórias
da gente da rua, mendigos, ambulantes, catadores, prostitutas, beberrões,
vagabundos que passavam o dia zanzando sem ter o que fazer.
Conheceu um músico no Centro da cidade. Era um rapaz jovem,
com barba espessa e negra, olhos faiscantes e cabelo ondulado e comprido, logo
abaixo dos ombros. Ela o ouviu tocar e cantar. Era uma música que ela não conhecia,
mas gostou muito. Ela não lhe deu dinheiro, mas lhe deu atenção, a qual ele
retribuiu com entusiasmo, afinal, uma boa conversa vale mais do que alguns
trocados. Falaram sobre a canção, sobre a rua, sobre as pessoas ao redor, sobre
sentimentos e sobre mais algumas trivialidades. Deram risadas juntos. Sorriram
um para o outro. Ela se apaixonou. Mas sabia que não podia se apaixonar. Sabia
que, no dia seguinte, não seria mais essa garota que se apaixonou pelo jovem
cantador das ruas. Lutou contra si e contra sua paixão repentina. Foi uma luta
árdua. Aquela que se apaixonara era pura emoção, puro instinto. Mas era preciso
resistir. Amanhã, muito provavelmente ele não teria nenhum interesse por aquele
rapaz. Ela sabia disso. Suas variações de personalidade eram muito bruscas. Não
podia arriscar.
Foi com uma lágrima correndo no rosto que ela se despediu
com um abraço e seguiu sua jornada do dia.
Andou por onde nunca antes houvera andado. Espantou-se com
quanta coisa nova havia para ver. Quanta coisa nova. Era um velho mundo novo,
uma cidade que sempre esteve ao alcance de suas mãos, mas que ela nunca tocara.
Tantos prédios, tantas árvores, tantas ruas, tanto céu,
tanta gente, tanta vida.
Na praça, senhores de cabelos brancos disputavam acirradas
partidas de damas e dominó. Ela admirava quem dava a si mesmo um belo tempo de
um ensolarado dia como aquele para se divertir em uma partida sem objetivo
algum a não ser a distração gratuita e leve.
Homens carregavam sacos de algum grão nas costas no porto.
Ela nunca havia parado para prestar atenção neles. Não sabia que trabalhavam
aos domingos. Eles suavam sob o sol forte. O rosto vincado pelo esforço. As
costas arqueadas pelo cansaço.
Seguiu.
Seus pés doíam um pouco. Não havia escolhido os tênis mais
confortáveis para a caminhada. Paciência.
Entrou em um bar. Pediu um café. “Bem forte!” Sorveu
enquanto olhava uma mulher sentada em uma mesa no canto. Ela parecia exausta,
aquela mulher. Carregava uma mochila batida e uma criança. A criança estava em
silêncio, mas parecia ter chorado muito há pouco tempo. A mãe também parecia
ter chorado recentemente. As duas dividiam uma fatia de pão tostado com
manteiga. Permaneceu por algum tempo observando a mulher e a criança. Tentou
imaginar o que ocorrera com elas, porque haviam chorado, para onde iriam.
Imaginou algumas coisas e pensou em ir perguntar às duas. Desistiu. A
imaginação, na maior parte das vezes, é mais digerível do que a realidade. Ela
levantou e saiu, sem não antes deixar pago dois copos de café com leite e duas
torradas reforçadas. Havia feito a sua boa ação do dia.
Saiu caminhando a esmo. Não tinha pressa. A vida não tinha
pressa. Seguia serena.
Deu de comer aos pombos no largo, sentiu os cheiros das
bancas do mercado.
Passou pela rua dos sebos. Cruzou a ponte de pedra. Andou e
andou. Chegou ao parque.
Sentou-se na grama à sombra de um Ipê. Bebeu água, soltou os
cabelos e deitou-se. Ficou ali. Depois, contando a amigos por onde andara, não
soube precisar por quanto tempo, mas ficou ali até principiar o anoitecer.
Estava feliz como nunca havia estado.
Não viu o sol se pôr no lago, mas viu casais jovens trocando
carícias ao saírem das aulas na faculdade.
Levantou-se, pegou sua mochila, olhou ao redor e tomou o
caminho de casa.
Era uma noite linda aquela. Tudo era lindo naquela noite. O
céu estava lindo, brilhante. O ar estava lindo, leve. As ruas estavam
lindas, movimentadas, cheias de gente, vivas.
Ela estava linda.
Seguiu atenta. Olhava tudo. Estava elétrica, mas, ao mesmo
tempo, sentia-se serena de um modo único. Passos, quadras, ruas, avenidas,
bairros, pessoas. Pessoas novas, pessoas velhas, pessoas alegres, pessoas nem tão alegres. Pessoas.
Já estava bem perto de casa, podia ver a movimentação de
amigos e parentes no pátio da frente. Todos preocupados com ela. Não tiveram
notícia alguma durante todo o dia. Ela achou aquilo engraçado. Nunca deram
muita bola para ela e, agora, pareciam formigas que tiveram seu formigueiro
pisoteado por um garoto. Sorriu para si mesma e, ao mesmo tempo, imaginou toda
a chateação que viria a seguir, perguntas, reprimendas, falação... enfim, sabia
que não seria bom, mas sabia também que era inevitável. Tinha de voltar para
casa. Amanhã, iria achar tudo isso que fez durante esse dia uma grande loucura
sem sentido. Caminhou um pouco mais e, agora, já podia ouvir as vozes. Era
isso. Havia chegado a hora de dar fim àquela jornada.
Deu três passos.
Parou.
De súbito, parou.
Como um relâmpago em noite de tempestade, um pensamento
cruzou a sua mente.
Sim!
Era isso!
Estava tudo tão claro.
Largou a mochila no chão, girou nos calcanhares, deu meia
volta e saiu correndo com uma determinação de um campeão olímpico.
Correu e correu e correu. Ela tinha pressa. Precisava
correr. E mais rápido, mais rápido, mais rápido. O tempo corria ao seu lado. Os
dois disputavam, um contra o outro. Ela não podia se dar ao luxo de se sentir
cansada. Não podia parar, nem por um segundo. Ela corria. Tinha de chegar.
Tinha de conseguir. Era preciso.
As pessoas olhavam para ela e não entendiam. Por que aquela
menina corria tanto? Para onde ela ia? Qual o motivo da pressa?
Ônibus passavam ao seu lado, ela chegou a pensar, mas não
podia, não naquele dia. Aquele dia era das ruas. Seguiu correndo. Os olhos bem
abertos. Como um guepardo atrás de sua presa. Corria.
Pensamentos, imagens surgiam frente aos seus olhos. Tudo o
que havia visto durante o dia. Pensou na mãe com a criança, nos trabalhadores
no cais, no casalzinho do parque.
Corria. Estava perto. Torcia para que não fosse
tarde demais. Não haveria de ser tarde demais. Tinha de conseguir.
Correu e correu e correu e correu ainda mais. Faltavam
metros. Dobrou a esquina.
Encontrou o músico recolhendo seu banquinho e se preparando
para ir embora. Parou em frente dele. Finalmente havia parado de correr. Arfava. Ele
estava curvado, olhando para o chão. Em um primeiro momento, não a viu. Só
percebeu sua presença ao sentir sua respiração ofegante e forte. Ergueu-se e
ficou surpreso ao vê-la. Realmente não esperava por isso. Achava que nunca mais
iria encontrá-la. Aquela era uma cidade grande.
Olhou para ela e disse um “olha só quem cruza, mais uma vez,
o meu caminho! A que devo a honra?”
Ela sorriu. Ela sorriu e chorou. Ao mesmo tempo.
Sem pestanejar nem um momento sequer, deu um salto e
pendurou-se no pescoço dele. Estava esfuziante. Sentia-se em outra dimensão.
Uma coisa cósmica, sei lá, não sei explicar bem. Nem ela sabe.
Sem compreender direito o que se passava, mas sabendo
exatamente o significado de tudo aquilo, restou a ele abraçá-la também. E ele o
fez com força.
Estavam juntos. Eram um só, unidos, em uma rua no Centro da
cidade.
Ela escolheu viver essa paixão.
Amanhã?...
Bom, amanhã, seria outro dia. Quem sabe, ela não seria uma
artista de rua também. Quem sabe, não seria uma criança? Ou um sopro de vento?
Quem sabe?
Saíram caminhando. Para onde, não sei. O braço esquerdo dele
enlaçava a cintura dela e o braço direito dela, a dele.
O banquinho ficou lá. No meio da rua. Eles levavam consigo
tudo o que precisavam para aquela noite.
Amanhã?
Que o amanhã venha fresco, novo. Que seja só mais um dia mágico. Isso basta. Para ela.