domingo, 11 de maio de 2014

Ele era meu irmão



“Eu não quero morrer. Por favor, não me deixe morrer”, me disse ele segurando a minha mão. Eu lhe disse que não iria deixar. Disse que iria ficar tudo bem. Que aquilo tudo iria passar e que, no futuro, iríamos rir feito idiotas em uma mesa de bar quando relembrássemos da cena melodramática daquele dia.

Eu não falei a verdade.
Não ficou tudo bem.
Aquilo tudo não passou.
Nós nunca rimos feito idiotas em uma mesa de bar.

Eu não processei bem aquele acontecimento. Confesso, até hoje não consegui compreender bem as coisas. Foi tão rápido. Eu não esperava. Ele não esperava. Ninguém esperava. Quando a morte de alguém querido ocorre, nunca parece ser verdade. É sempre um engano, sempre irreal. Para mim, ainda não parece ser real. Sinto como se, a qualquer momento, ele vai cruzar a porta, sempre sorrindo, e virá me dar um abraço.

Morrer não parece ser uma coisa de todo mal. Eu morro todas as noites, toda vez em que durmo. A diferença é que eu esqueço que morri, e acabo acordando para uma nova microvida de algumas horas.

O que fica é quem sofre.
Esse, o que fica, morre um pouco junto com aquele que se foi por inteiro.
Mas ele continua vivo.

Foi muito difícil para mim. Tudo depois que ele partiu foi muito difícil para mim. A começar pelos meus pais. Eles não aceitaram a morte. Todas as coisas que haviam sido dele foram mantidas no lugar em que as deixou. Aquela ainda era a casa dele. O seu lugar na mesa de jantar estava ali, reservado, intacto. A casa permaneceu em um luto constante. Não havia mais sorrisos. Não havia mais música. As palavras eram ditas em tom baixo, quase sussurradas. Falava-se pouco, aliás.

Por duas vezes eu tentei quebrar aquele silêncio, aquele estado de prostração ali estabelecido. Não consegui. Resolvi deixar estar.

Nos anos que se seguiram, eu procurava ficar a maior parte do dia fora daquele ambiente. Quando não estava na escola ou no trabalho, dava um jeito de arrumar algo para fazer na rua. Quando não arrumava, saía para caminhar sem nenhum plano. 

Aquela foi a minha provação adolescente.

Ele era meu irmão.

A doença progrediu rápido. Após a internação, em dez dias, ele estava morto. Eu não estava em casa quando ele se sentiu mal e teve de ser levado ao hospital. Um funcionário da escola entrou na sala de aula e me deu um bilhete dobrado em quatro partes. “Seu irmão não está bem. O levamos ao Pronto Socorro.” Até hoje não sei quem mandou aquele bilhete. Não importa. Fechei o caderno, peguei minha mochila e saí da sala. Não fiquei muito preocupado. Não haveria de ser nada demais. Um mal estar, talvez. Ele tinha uma ótima saúde. Parecia ter, ao menos. Nunca reclamava de nada. Nem gripe pegava. No máximo, um ou outro resfriado.

Após quinze minutos de caminhada e três lances de escada, eu estava, ofegante, em pé, à porta da sala, em frente à cadeira na qual ele, sentado, sorria ao me ver chegar.

Ele não parecia estar doente. Eu não senti  a dor que ele sentiu. Eu nunca senti  a dor que ele ainda iria sentir.

Passamos toda a tarde juntos. Eu só saí daquela sala em três oportunidades, duas para ir ao banheiro e uma para comprar água e lanches para nós dois. Minha mãe também estava lá. Meu pai não pôde sair do trabalho e iria dar uma passada mais tarde, para ver como ele estava. Até o início da noite, nenhum médico foi ver o meu irmão. Quando eu e minha mãe tivemos de ir embora, após sermos enxotados por uma enfermeira alta e magra com grandes olheiras e um mau humor de quem vinha tendo um péssimo dia até ali, ele nos disse para irmos tranquilos. Disse que já se sentia melhor, mais disposto e que, na manhã do dia seguinte, já estaria tomando café da manhã em casa, conosco. Pediu torradas e suco de laranja.

No caminho de volta para casa, minha mãe se manteve em silêncio. Estava cansada. Ao lado dela, eu pensei em como nós somos frágeis.  Meu irmão não tinha absolutamente nada há algumas poucas horas. Agora, estava em uma sala de hospital, tomando soro na veia e achando que iria voltar para casa na manhã seguinte. Ele sequer imaginava que nunca mais iria voltar para casa. Ninguém imaginava isso.

Meu pai chegou em casa à noite com uma expressão preocupada no rosto. Os vincos na testa estavam bem marcados. Isso sempre acontecia quando algo o deixava apreensivo. Falou pouco. Disse que estivera no hospital e que o meu irmão estava dormindo. Não quis acordá-lo. Ele permanecia sentado na cadeira. Ainda não tinha sido liberado nenhum leito para o qual pudesse ser transferido.

Eu tinha 16 anos. Meu irmão tinha 12.

Era bem tarde quando eu consegui dormir naquela noite. Às 6h do dia seguinte, tinha de estar em pé. Meus olhos já estavam abertos antes de o despertador tocar. Dormi pouco e mal. Levantei-me, tomei banho e sorvi o café quente que me deixou bem desperto. Peguei minha mochila e saí. Fez um amanhecer frio naquele dia. Era o começo do outono.

Eu não dei a mínima para matérias que tive na aula. Não consegui prestar atenção nos professores. Não me concentrei. Ouvia a voz do meu irmão ao meu ouvido. Mal soou o sinal do fim do turno da manhã, e eu já cruzava o portão da frente da escola, carregando nas mãos dois sanduíches com requeijão, presunto e queijo. Ele adorava sanduíche de pão francês com requeijão, presunto e queijo. Eu também.

Nós não éramos muito parecidos. Ele sempre foi um prodígio. As melhores notas na escola. Sempre foi o mais racional, enquanto eu era puro instinto. Com oito anos de idade, me dava conselhos quando da minha primeira paixão. Tinha uma educação e fineza no trato sem igual para um menino com aquela idade. Era o orgulho de minha mãe. Ela sempre sorria quando falava dele para as amigas ou vizinhas. Eu também me orgulhava. Eu enxergava nele aquele que eu nunca poderia ser.

Fui diretamente à sala na qual ele estava no dia anterior e não o achei lá. Ele havia sido transferido. Um leito havia vagado. Quando, finalmente, localizei o quarto, o encontrei deitado de lado, encolhido, pernas arqueadas. Seus olhos estavam prostrados. Ele tinha olheiras profundas de quem dormira pouco. Aproximei-me.  Ele pareceu não me notar. Com a mão direita, tirei o cabelo de sua testa. Ele suava. Sentei-me na cama. Fiquei em silêncio. Não sabia o que dizer. Não sabia o que ele queria ouvir. Fiquei ali por mais de três horas. Segurei sua mão. Estava quente. Ele tinha febre.

Minha mãe chegou por volta das 17h. Havia trabalhado o dia todo. Estava exausta. Trouxe alguns biscoitos e suco. Ela ficou conosco até perto das 22h. Despediu-se dele com um longo beijo na testa. Eu ganhei um abraço. Passei aquela noite ao lado do meu irmão. Dormi sentado em uma cadeira junto à cama. Não dormi muito, mas o suficiente para conseguir me manter desperto depois do amanhecer. Acordei por diversas vezes na madrugada. Conferia como ele estava, se dormia bem, e tentava voltar a pegar no sono.
Por volta das 6h15min, fui acordado pela correria no interior do quarto. De pronto, vi ao menos quatro pessoas vestidas de banco ao redor da cama onde jazia meu irmão. Empurrei um deles, tentei chegar mais perto, mas fui puxado com rispidez por um enfermeiro alto e corpulento. Meu irmão se retorcia sobre o leito e eles tentavam segurá-lo para aplicar algum tipo de medicamento. Eles ficaram ali por poucos instantes. A cena toda não durou mais do que dois ou três minutos. Quatro, quem sabe. Ao fim, meu irmão estava imóvel. Parecia dormir. Uma auxiliar de enfermagem baixinha e risonha, com a qual eu fizera amizade e que me trouxe pão com geleia na noite anterior, disse-me que a febre havia aumentado muito, passado dos 42 graus e que meu irmão tivera uma convulsão. Perguntei se isso era normal. Ela não soube ou não quis me precisar. Disse somente que o que ele tinha era mais sério do que pensava a equipe médica. Despediu-se me dando dois tapinhas no ombro e dizendo para eu ter fé.

Não gostei daquilo. As pessoas costumam apelar para a fé somente quando a solução dos problemas está fora do seu alcance. Eu não fui à escola naquele dia. Meu irmão teve mais duas convulsões durante a tarde e duas outras na madrugada. Na manhã seguinte, ele foi levado para a UTI. Eles não sabiam o que ele tinha. Eu não entendia o que estava acontecendo.

A partir daí, eu não pude ficar ao seu lado o tempo todo. Ainda assim, corria para o hospital logo após as aulas. Na maior parte das vezes, saía na hora do recreio. Eu ficava na sala de espera até perto da meia noite, quando passava o último ônibus que me levaria para casa. Durante aqueles dias, conheci os hábitos do local. O almoço era servido aos pacientes dos quartos por volta das 11h20min. Às 14h30min, um médico passava para dar uma olhada neles, fazer anotações no prontuário e dar instruções para a equipe de enfermagem. Os médicos falavam pouco. A maioria apenas dava explicações vagas quando os parentes perguntavam o que o familiar internado tinha, se era grave, qual o tratamento, quando ele iria ganhar alta. Eu não gostava muito deles. Pareciam se sentir superiores. Não demonstravam interesse profundo na situação das pessoas as quais tratavam. A exceção era uma médica.

Era jovem. Residente, talvez. Tinha o cabelo negro liso preso em um rabo de cavalo. Fazia o turno da noite. Eu a via chegar por volta das 19h30min. Usava roupa esportiva. Acho que vinha direto da academia. Depois de cerca de 20, 25 minutos, ela reaparecia, já vestida de branco, com o estetoscópio no pescoço e os óculos de armação de acrílico preto no rosto. Nossa, ela era muito diferente dos outros. Doutora Anne. 

Ela sentava ao meu lado e queria saber de mim, perguntava como eu estava, se sentia fome, se precisava de alguma coisa. Eu não costumava me queixar. Mas ela mostrava interesse, e isso me fazia sentir especial.
Anne me deixava entrar na UTI uma vez por noite, dois minutos no máximo. Ela me dava instruções, dizia para eu não mexer em nada, e saía. Éramos somente eu e o meu irmão. E as outras pessoas na sala, claro, mas eu não ligava para elas. Eu ficava em pé ao lado da cama e conversava com ele. Na verdade, não era uma conversa, era um monólogo. Ele não respondia. Mas eu sempre esperava que ele viesse a fazer isso. Era um tipo de esperança maluca que eu alimentava. Fazia-me bem pensar que ele me ouvia e que iria me responder uma hora ou outra.

Ele estava mais magro. A alimentação líquida via sonda o fez perder uns quantos quilos, não pude precisar. A partir do quinto dia, meu pai não apareceu mais no hospital. Minha mãe me disse que ele não se sentia bem vendo o filho naquela situação. Não acreditei muito na justificativa, mas podia ser verdade.

Em nossa casa, evitava-se falar sobre meu irmão. Acho que, de alguma forma, com o passar dos dias, todos foram se dando conta de que teríamos de nos preparar para o pior. Minha mãe fazia o possível para tentar se mostrar forte. Esboçava alguns sorrisos discretos nas conversas com os vizinhos, tentava manter a rotina dos lides da casa. Ela não sabia, mas eu a via chorar pela manhã, quando ela entrava no quarto dele para despertá-lo e não o encontrava lá. Ela sentava na cama e tomava nas mãos o porta-retratos que ficava na escrivaninha. Permanecia ali por pouco tempo, uns cinco, seis minutos, no máximo. Era o suficiente para lágrimas brotarem em profusão dos seus olhos.

Uma semana havia se passado desde o dia da internação. A essa altura, meu pai já não escondia de ninguém que não acreditava que iria ver seu filho novamente em casa. Quando minha mãe o repreendia, dizendo que o pessimismo não ajudava em nada, ele retrucava vociferando que não adiantava se iludir, que aquele era um caminho sem volta, que precisávamos estar cientes de que ele iria nos deixar.

Nos últimos três dias de vida do meu irmão, eu não fui ao colégio. Acordava por volta das 6h, tomava uma ducha rápida, colocava duas fatias grossas de goiabada em um pão francês e partia em direção ao hospital. Eu preferia ficar lá a ficar em casa, ou em qualquer outro lugar. Ele estava lá. Ele precisava de mim. Eu precisava dele. Além disso, ao menos lá havia alguém que se preocupava comigo também. Em como eu me sentia. Eu contava as horas para vê-la cruzando os corredores com seus tênis de corrida. Ela sempre sorria para mim quando passava. Eu retribuía o sorriso. Apesar de tudo, eu me sentia protegido, me sentia seguro. Ela não iria me deixar sozinho.

Eu chegava perto das 8h15min no hospital. Já tinha feito amizade com a segurança da portaria e eles me deixavam subir para o terceiro andar, onde ficava a UTI, sem problemas. Eu ficava a maior parte do tempo sentado em um banco, no corredor. Havia um espaço específico para familiares, uma sala de espera, mas eu não gostava de lá. Era muito choro, muito movimento, muita falação. Quando não estava ao lado dele, eu queria ficar comigo mesmo.

Enquanto estava sentado, aguardando a noite chegar para eu poder entrar por alguns minutos na sala e ver meu irmão, eu ficava sabendo sobre diversos outros pacientes da UTI. Na maioria das vezes, descobria as coisas por meio das conversas da equipe médica. Entre eles, médicos, enfermeiros e auxiliares, não havia rodeios na hora de falar sobre um dos doentes. Sobre o jovem que perdeu o controle da motocicleta e colidiu em um poste, o médico chefe da unidade foi taxativo: “só sai daqui em um caixão”. No caso da mulher que foi atropelada por um ônibus ao atravessar uma via, o diagnóstico era um pouco mais animador: “essa aí nunca mais vai andar de novo”, cochichou uma das enfermeiras para uma auxiliar. Eu não sei como aquele jovem saiu do hospital, tampouco se a mulher atropelada voltou a andar. Espero que ambos estejam por ai, ele respirando, e ela fazendo caminhadas pelo parque ao entardecer.

Nunca os ouvi falarem algo sobre o meu irmão. Talvez se policiassem em razão de eu estar sempre por ali, talvez não houvesse nada a ser dito. Eram umas 3h30min quando eu fui acordado por uma correria. Levantei de um salto e tentei espiar pela porta entreaberta da sala da UTI. Quatro pessoas vestidas de branco cercavam o meu irmão. Pude identificar uma delas. Era Anne. Eles falavam todos ao mesmo tempo. Não pude compreender nada. Somente frases soltas. “Muito sangue”, “precisamos conter agora”, “anda rápido”, “fecha aquela porta”. Foi quando Anne veio fazer isso que pude perceber que a situação era grave. Por um instante, seus olhos cruzaram com os meus. Foi apenas um instante, mas eu senti que havia algo de muito errado acontecendo. Ela chorava.

Não dormi no resto da madrugada. Levou quase duas horas para que tudo se acalmasse. Ele havia tido uma hemorragia interna. Os médicos suaram, mas conseguiram contê-la. Muito sangue havia sido perdido. Agora, ele dormia. Estava sedado. Procurei Anne em todo o andar para saber mais detalhes, mas não a encontrei. Fui à sala da enfermagem e perguntei sobre o que havia se passado, mas elas me disseram que o médico iria conversar com a minha mãe sobre o assunto. Disseram para eu ir dormir. Idiotas. Tive raiva delas. Meu irmão sofrendo em uma cama de UTI e elas me mandando ir dormir. A raiva não durou muito. Sabia que elas não tinham culpa de nada. Ninguém tinha.

Minha mãe chegou bem cedo no hospital. Uma ligação a tinha avisado sobre os acontecimentos da madrugada. Não fui eu quem ligou. Essa ideia nem passou pela minha cabeça. Pouco depois das 9h, ela conseguiu falar com um médico. “Só a senhora, por favor”, disse ele, meneando a cabeça em minha direção. Eu fiquei sentado no banco. Eles foram para uma sala reservada.

Quando voltou, uns 20 minutos depois, ela tinha os olhos inchados de quem chorou muito. Sentou-se ao meu lado, em silêncio. Abraçou-me e chorou novamente. Eu tentei demonstrar força. “Não chore, não desabe, ela precisa de você agora.” Não adiantou nada. Eu também chorei. Nossas lágrimas se misturaram. Nossa dor se fez uma só.

Eu não perguntei a ela o que o médico tinha lhe dito. Já não importava mais. Boa parte daquele dia eu passei caminhando no parque, que ficava quase ao lado do hospital. Consegui até dormir por quase uma hora na sombra de uma frondosa árvore. No resto do tempo, eu pensei em como tudo ficaria depois de ele partir. Como seria? Eu vivi quatro anos da minha vida sem ele. Não conseguia imaginar como seria viver o resto dela da mesma forma.

Naquela noite, eles não me deixaram entrar para vê-lo. Não me deram justificativas plausíveis. Apenas disseram que ele não poderia receber visitas. Não discuti, não quis criar caso. Estava muito cansado para isso. Eu não sabia que aquela seria a última noite do meu irmão.

Eu acordei bem cedo naquele dia. Perguntei a uma auxiliar se havia alguma novidade em relação ao estado dele. Ela disse que não, e eu fui para casa. Tomei um bom banho quente, seguido pelo melhor café da manhã dos últimos dias. Preparei o meu sanduíche da noite. Olhei rapidamente as notícias no jornal que meu pai havia deixado sobre o sofá da sala. Mais do mesmo. Antes de sair, dei uma passada no quarto dele. Estava tudo lá. Era como se ele apenas tivesse saído para jogar taco com os amigos, como sempre fazia nos sábados pela manhã. O quarto era de uma organização ímpar. Ele tinha muito cuidado com as coisas, todas elas estavam em seus devidos lugares. Nenhum sapato jogado em qualquer lugar, nenhum caderno fora da mochila ou da gaveta do material escolar. Nem poeira sobre os móveis tinha, pois, em sua ausência, minha mãe fazia uma rápida, mas cuidadosa, limpeza diária. Sobre a escrivaninha, repousava seu caderno de desenhos. Ele desenhava muito bem. Tinha um talento nato. Um traço fino, detalhado, firme. O caderno estava aberto. Na página, uma gravura inacabada de algum tipo de criatura mitológica. Acho que era um dragão, mas não tenho certeza. Ao lado do caderno, o estojo com os diversos lápis de desenho. Meu pai lhe deu o kit quando ele fez 10 anos. Era o seu tesouro pessoal. Pensei em levar o caderno e os lápis para o hospital. Deixar ao lado da cama para, quando ele acordasse daquele doloroso pesadelo, pudesse terminar o desenho. Pensei um pouco mais e preferi deixar como estava. Seria um motivo para ele retornar àquele quarto. Ele precisava concluir aquele desenho.

Almocei com minha mãe naquele dia. Percebi um certo conformismo nela. Não gostei daquilo, mas não disse nada. Discutir não iria melhorar as coisas. Depois disso, ela foi para casa. Eu, para o hospital. O dia estava nublado, bem cinza, e uma brisa gelada corria pelas ruas daquela parte da cidade. Eu sentia frio, mas não o bastante para me fazer ir em casa buscar um agasalho. As horas passaram com vagar. Sentado no banco do corredor, eu li em uma revista deixada por alguém um artigo sobre como ganhar peso rapidamente e mantendo a saúde. Meu irmão tinha emagrecido muito. Também ouvi música para tentar me distrair. Desta vez, não havia esquecido em casa o mp3 player e os fones. Além disso, o time pelo qual torcíamos jogava no início da noite e eu queria poder dar a notícia do resultado da partida para ele. Não me importava se ele respondesse ou não. Eu sabia que ele estaria me ouvindo e que ficaria feliz com uma vitória.

O relógio de ponteiros na parede, ao lado da sala de enfermagem, mostrava 20h quando um médico foi chamado com urgência na UTI. Eu fiquei de pé. Anne apontou no fim do corredor. Ela caminhava um trote rápido. Quase corria. Ao passar por mim, agarrou minha mão direita com força, soltou-a e entrou na sala. Passaram-se 10 minutos e mais um médico entrou, acompanhado de um enfermeiro e uma auxiliar.

Era o meu irmão. Eu sabia que era ele. Eu sentia que era ele.

Do lado de fora, eu não conseguia parar quieto. Andava de um lado para outro. Perdi a conta das vezes em que fui ao bebedor molhar a garganta. Eu sentia frio, mas suava de tensão e nervosismo. Eu queria entrar naquela sala, ver o que estava acontecendo. Era isso que eu queria. Mas a porta estava trancada. Eu sei, pois tentei entrar.

Foram cerca de duas horas de intensa dúvida. Foi torturante. Telefonei para a minha casa, mas ninguém atendeu. Eu estava só. Assim como meu irmão.

A porta se abriu. Toda a equipe saiu com expressões desanimadoras. Anne foi a última a deixar a sala. Ela tirou a máscara branca do rosto, enxugou o suor da testa e veio em minha direção. Com a mão no meu ombro, disse para eu sentar no banco. Eu obedeci.

Foi uma conversa rápida. Ela sabia que prolongar a explicação tornaria aquilo ainda mais doloroso. Ela foi direta. Meu irmão não tinha mais muito tempo de vida. Algumas poucas horas, talvez. Ou poucos minutos, quem sabe. As hemorragias se espalharam pelo corpo, eles não conseguiram estancá-las. Os pulmões estavam comprometidos. Eles fizeram o que podia ser feito. Ela me garantiu que ele já não sentia mais dor, que a única medicação que podiam lhe dar eram analgésicos. Morfina, no caso. Eu não chorei desta vez. Não sei por qual razão, mas não chorei. Anne disse que eu poderia entrar na sala da UTI, se quisesse. Ela foi sincera comigo. Falou que, provavelmente, seria a última oportunidade para vê-lo vivo. A sedação tinha sido diminuída. Ele estava desperto. Fiquei de pé. Ela me deu um abraço apertado. Disse para eu ser forte. Eu disse que seria.

Ele não parecia desperto. Os olhos fechados. A máscara de oxigênio sobre a boca e o nariz. Eu me aproximei sem fazer barulho. Cheguei ao lado da cama e segurei a sua mão. Ele apertou a minha. Com força. Senti seus ossos.

Ele tinha hematomas nos braços. Eu disse o seu nome e ele abriu os olhos. Bem devagar. Sorriu um sorriso puro ao me ver. Uma lágrima correu pela sua face pálida. Foi então, que, com a voz combalida de quem estava cansado de lutar, ele me disse:

“Eu não quero morrer. Por favor, não me deixe morrer.”

Não contive o choro. Não consegui. Eu não fui forte como havia prometido para Anne.

Eu disse que não o iria deixar morrer. Disse que iria ficar tudo bem. Que aquilo tudo iria passar e que, no futuro, iríamos rir feito idiotas em uma mesa de bar quando relembrássemos da cena melodramática daquele dia.

Eu não falei a verdade.
Não ficou tudo bem.
Aquilo tudo não passou.

Ainda dói quando recordo daqueles dias. Já faz mais de 20 anos, mas ainda dói. Muito. Cerca de quarenta minutos depois da minha falsa promessa, ele morreu.

Nós nunca rimos feito idiotas em uma mesa de bar.


A última coisa que eu lhe disse foi uma mentira.