“Eu não quero morrer. Por favor, não me deixe morrer”, me
disse ele segurando a minha mão. Eu lhe disse que não iria deixar. Disse que
iria ficar tudo bem. Que aquilo tudo iria passar e que, no futuro, iríamos rir
feito idiotas em uma mesa de bar quando relembrássemos da cena melodramática
daquele dia.
Eu não falei a verdade.
Não ficou tudo bem.
Aquilo tudo não passou.
Nós nunca rimos feito idiotas em uma mesa de bar.
Eu não processei bem aquele acontecimento. Confesso, até
hoje não consegui compreender bem as coisas. Foi tão rápido. Eu não esperava.
Ele não esperava. Ninguém esperava. Quando a morte de alguém querido ocorre,
nunca parece ser verdade. É sempre um engano, sempre irreal. Para mim, ainda
não parece ser real. Sinto como se, a qualquer momento, ele vai cruzar a porta,
sempre sorrindo, e virá me dar um abraço.
Morrer não parece ser uma coisa de todo mal. Eu morro
todas as noites, toda vez em que durmo. A diferença é que eu esqueço que morri,
e acabo acordando para uma nova microvida de algumas horas.
O que fica é quem sofre.
Esse, o que fica, morre um pouco junto com aquele que se
foi por inteiro.
Mas ele continua vivo.
Foi muito difícil para mim. Tudo depois que ele partiu
foi muito difícil para mim. A começar pelos meus pais. Eles não aceitaram a
morte. Todas as coisas que haviam sido dele foram mantidas no lugar em que as
deixou. Aquela ainda era a casa dele. O seu lugar na mesa de jantar estava ali,
reservado, intacto. A casa permaneceu em um luto constante. Não havia mais
sorrisos. Não havia mais música. As palavras eram ditas em tom baixo, quase
sussurradas. Falava-se pouco, aliás.
Por duas vezes eu tentei quebrar aquele silêncio, aquele
estado de prostração ali estabelecido. Não consegui. Resolvi deixar estar.
Nos anos que se seguiram, eu procurava ficar a maior
parte do dia fora daquele ambiente. Quando não estava na escola ou no trabalho, dava um
jeito de arrumar algo para fazer na rua. Quando não arrumava, saía para
caminhar sem nenhum plano.
Aquela foi a minha provação adolescente.
Ele era meu irmão.
A doença progrediu rápido. Após a internação, em dez
dias, ele estava morto. Eu não estava em casa quando ele se sentiu mal e teve
de ser levado ao hospital. Um funcionário da escola entrou na sala de aula e me
deu um bilhete dobrado em quatro partes. “Seu irmão não está bem. O levamos ao
Pronto Socorro.” Até hoje não sei quem mandou aquele bilhete. Não importa.
Fechei o caderno, peguei minha mochila e saí da sala. Não fiquei muito
preocupado. Não haveria de ser nada demais. Um mal estar, talvez. Ele tinha uma
ótima saúde. Parecia ter, ao menos. Nunca reclamava de nada. Nem gripe pegava.
No máximo, um ou outro resfriado.
Após quinze minutos de caminhada e três lances de escada,
eu estava, ofegante, em pé, à porta da sala, em frente à cadeira na qual ele,
sentado, sorria ao me ver chegar.
Ele não parecia estar doente. Eu não senti a dor que ele sentiu. Eu nunca senti a dor que ele ainda iria sentir.
Passamos toda a tarde juntos. Eu só saí daquela sala em
três oportunidades, duas para ir ao banheiro e uma para comprar água e lanches
para nós dois. Minha mãe também estava lá. Meu pai não pôde sair do trabalho e
iria dar uma passada mais tarde, para ver como ele estava. Até o início da
noite, nenhum médico foi ver o meu irmão. Quando eu e minha mãe tivemos de ir
embora, após sermos enxotados por uma enfermeira alta e magra com grandes
olheiras e um mau humor de quem vinha tendo um péssimo dia até ali, ele nos
disse para irmos tranquilos. Disse que já se sentia melhor, mais disposto e que,
na manhã do dia seguinte, já estaria tomando café da manhã em casa, conosco.
Pediu torradas e suco de laranja.
No caminho de volta para casa, minha mãe se manteve em
silêncio. Estava cansada. Ao lado dela, eu pensei em como nós somos frágeis. Meu irmão não tinha absolutamente nada há
algumas poucas horas. Agora, estava em uma sala de hospital, tomando soro na
veia e achando que iria voltar para casa na manhã seguinte. Ele sequer
imaginava que nunca mais iria voltar para casa. Ninguém imaginava isso.
Meu pai chegou em casa à noite com uma expressão
preocupada no rosto. Os vincos na testa estavam bem marcados. Isso sempre
acontecia quando algo o deixava apreensivo. Falou pouco. Disse que estivera no
hospital e que o meu irmão estava dormindo. Não quis acordá-lo. Ele permanecia
sentado na cadeira. Ainda não tinha sido liberado nenhum leito para o qual
pudesse ser transferido.
Eu tinha 16 anos. Meu irmão tinha 12.
Era bem tarde quando eu consegui dormir naquela noite. Às
6h do dia seguinte, tinha de estar em pé. Meus olhos já estavam abertos antes
de o despertador tocar. Dormi pouco e
mal. Levantei-me, tomei banho e sorvi o café quente que me deixou bem
desperto. Peguei minha mochila e saí. Fez
um amanhecer frio naquele dia. Era o
começo do outono.
Eu não dei a mínima para matérias que tive na aula. Não
consegui prestar atenção nos professores. Não me concentrei. Ouvia a voz do meu irmão ao meu ouvido. Mal
soou o sinal do fim do turno da manhã, e eu já cruzava o portão da frente da
escola, carregando nas mãos dois sanduíches com requeijão, presunto e queijo.
Ele adorava sanduíche de pão francês com requeijão, presunto e queijo. Eu
também.
Nós não éramos muito parecidos. Ele sempre foi um prodígio. As melhores notas
na escola. Sempre foi o mais racional, enquanto eu era puro instinto. Com oito
anos de idade, me dava conselhos quando da minha primeira paixão. Tinha uma
educação e fineza no trato sem igual para um menino com aquela idade. Era o orgulho
de minha mãe. Ela sempre sorria quando falava dele para as amigas ou
vizinhas. Eu também me orgulhava. Eu
enxergava nele aquele que eu nunca poderia ser.
Fui diretamente à sala na qual ele estava no dia anterior
e não o achei lá. Ele havia sido transferido. Um leito havia vagado. Quando,
finalmente, localizei o quarto, o encontrei deitado de lado, encolhido, pernas
arqueadas. Seus olhos estavam prostrados. Ele tinha olheiras profundas de quem
dormira pouco. Aproximei-me. Ele pareceu
não me notar. Com a mão direita, tirei o cabelo de sua testa. Ele suava.
Sentei-me na cama. Fiquei em silêncio. Não sabia o que dizer. Não sabia o que
ele queria ouvir. Fiquei ali por mais de três horas. Segurei sua mão. Estava
quente. Ele tinha febre.
Minha mãe chegou por volta das 17h. Havia trabalhado o
dia todo. Estava exausta. Trouxe alguns biscoitos e suco. Ela ficou conosco até
perto das 22h. Despediu-se dele com um longo beijo na testa. Eu ganhei um
abraço. Passei aquela noite ao lado do meu irmão. Dormi sentado em uma cadeira
junto à cama. Não dormi muito, mas o suficiente para conseguir me manter
desperto depois do amanhecer. Acordei por diversas vezes na madrugada. Conferia
como ele estava, se dormia bem, e tentava voltar a pegar no sono.
Por volta das 6h15min, fui acordado pela correria no
interior do quarto. De pronto, vi ao menos quatro pessoas vestidas de banco ao
redor da cama onde jazia meu irmão. Empurrei um deles, tentei chegar mais
perto, mas fui puxado com rispidez por um enfermeiro alto e corpulento. Meu
irmão se retorcia sobre o leito e eles tentavam segurá-lo para aplicar algum
tipo de medicamento. Eles ficaram ali por poucos instantes. A cena toda não
durou mais do que dois ou três minutos. Quatro, quem sabe. Ao fim, meu irmão
estava imóvel. Parecia dormir. Uma auxiliar de enfermagem baixinha e risonha,
com a qual eu fizera amizade e que me trouxe pão com geleia na noite anterior,
disse-me que a febre havia aumentado muito, passado dos 42 graus e que meu
irmão tivera uma convulsão. Perguntei se isso era normal. Ela não soube ou não
quis me precisar. Disse somente que o que ele tinha era mais sério do que
pensava a equipe médica. Despediu-se me dando dois tapinhas no ombro e dizendo
para eu ter fé.
Não gostei daquilo. As pessoas costumam apelar para a fé
somente quando a solução dos problemas está fora do seu alcance. Eu não fui à
escola naquele dia. Meu irmão teve mais duas convulsões durante a tarde e duas
outras na madrugada. Na manhã seguinte, ele foi levado para a UTI. Eles não
sabiam o que ele tinha. Eu não entendia o que estava acontecendo.
A partir daí, eu não pude ficar ao seu lado o tempo todo.
Ainda assim, corria para o hospital logo após as aulas. Na maior parte das
vezes, saía na hora do recreio. Eu
ficava na sala de espera até perto da meia noite, quando passava o último
ônibus que me levaria para casa. Durante aqueles dias, conheci os hábitos do
local. O almoço era servido aos pacientes dos quartos por volta das 11h20min.
Às 14h30min, um médico passava para dar uma olhada neles, fazer anotações no
prontuário e dar instruções para a equipe de enfermagem. Os médicos falavam
pouco. A maioria apenas dava explicações vagas quando os parentes perguntavam o
que o familiar internado tinha, se era grave, qual o tratamento, quando ele
iria ganhar alta. Eu não gostava muito deles. Pareciam se sentir superiores.
Não demonstravam interesse profundo na situação das pessoas as quais tratavam.
A exceção era uma médica.
Era jovem. Residente, talvez. Tinha o cabelo negro liso
preso em um rabo de cavalo. Fazia o turno da noite. Eu a via chegar por volta
das 19h30min. Usava roupa esportiva. Acho que vinha direto da academia. Depois
de cerca de 20, 25 minutos, ela reaparecia, já vestida de branco, com o
estetoscópio no pescoço e os óculos de armação de acrílico preto no rosto.
Nossa, ela era muito diferente dos outros. Doutora Anne.
Ela sentava ao meu
lado e queria saber de mim, perguntava como eu estava, se sentia fome, se
precisava de alguma coisa. Eu não costumava me queixar. Mas ela mostrava
interesse, e isso me fazia sentir especial.
Anne me deixava entrar na UTI uma vez por noite, dois
minutos no máximo. Ela me dava instruções, dizia para eu não mexer em nada, e
saía. Éramos somente eu e o meu irmão. E
as outras pessoas na sala, claro, mas eu não ligava para elas. Eu ficava em pé
ao lado da cama e conversava com ele. Na verdade, não era uma conversa, era um
monólogo. Ele não respondia. Mas eu sempre esperava que ele viesse a fazer
isso. Era um tipo de esperança maluca que eu alimentava. Fazia-me bem pensar
que ele me ouvia e que iria me responder uma hora ou outra.
Ele estava mais magro. A alimentação líquida via sonda o
fez perder uns quantos quilos, não pude precisar. A partir do quinto dia, meu
pai não apareceu mais no hospital. Minha mãe me disse que ele não se sentia bem
vendo o filho naquela situação. Não acreditei muito na justificativa, mas podia
ser verdade.
Em nossa casa, evitava-se falar sobre meu irmão. Acho
que, de alguma forma, com o passar dos dias, todos foram se dando conta de que
teríamos de nos preparar para o pior. Minha mãe fazia o possível para tentar se
mostrar forte. Esboçava alguns sorrisos discretos nas conversas com os
vizinhos, tentava manter a rotina dos lides da casa. Ela não sabia, mas eu a via
chorar pela manhã, quando ela entrava no quarto dele para despertá-lo e não o
encontrava lá. Ela sentava na cama e tomava nas mãos o porta-retratos que
ficava na escrivaninha. Permanecia ali por pouco tempo, uns cinco, seis
minutos, no máximo. Era o suficiente para lágrimas brotarem em profusão dos
seus olhos.
Uma semana havia se passado desde o dia da
internação. A essa altura, meu pai já
não escondia de ninguém que não acreditava que iria ver seu filho novamente em
casa. Quando minha mãe o repreendia, dizendo que o pessimismo não ajudava em
nada, ele retrucava vociferando que não adiantava se iludir, que aquele era um
caminho sem volta, que precisávamos estar cientes de que ele iria nos deixar.
Nos últimos três dias de vida do meu irmão, eu não fui ao
colégio. Acordava por volta das 6h, tomava uma ducha rápida, colocava duas
fatias grossas de goiabada em um pão francês e partia em direção ao hospital.
Eu preferia ficar lá a ficar em casa, ou em qualquer outro lugar. Ele estava
lá. Ele precisava de mim. Eu precisava dele. Além disso, ao menos lá havia
alguém que se preocupava comigo também. Em como eu me sentia. Eu contava as
horas para vê-la cruzando os corredores com seus tênis de corrida. Ela sempre
sorria para mim quando passava. Eu retribuía o sorriso. Apesar de tudo, eu me
sentia protegido, me sentia seguro. Ela não iria me deixar sozinho.
Eu chegava perto das 8h15min no hospital. Já tinha feito
amizade com a segurança da portaria e eles me deixavam subir para o terceiro
andar, onde ficava a UTI, sem problemas. Eu ficava a maior parte do tempo
sentado em um banco, no corredor. Havia um espaço específico para familiares,
uma sala de espera, mas eu não gostava de lá. Era muito choro, muito movimento,
muita falação. Quando não estava ao lado dele, eu queria ficar comigo mesmo.
Enquanto estava sentado, aguardando a noite chegar para
eu poder entrar por alguns minutos na sala e ver meu irmão, eu ficava sabendo
sobre diversos outros pacientes da UTI. Na maioria das vezes, descobria as coisas por meio das conversas da
equipe médica. Entre eles, médicos, enfermeiros e auxiliares, não havia rodeios
na hora de falar sobre um dos doentes. Sobre o jovem que perdeu o controle da
motocicleta e colidiu em um poste, o médico chefe da unidade foi taxativo: “só
sai daqui em um caixão”. No caso da mulher que foi atropelada por um ônibus ao
atravessar uma via, o diagnóstico era um pouco mais animador: “essa aí nunca
mais vai andar de novo”, cochichou uma das enfermeiras para uma auxiliar. Eu
não sei como aquele jovem saiu do hospital, tampouco se a mulher atropelada
voltou a andar. Espero que ambos estejam por ai, ele respirando, e ela fazendo
caminhadas pelo parque ao entardecer.
Nunca os ouvi falarem algo sobre o meu irmão. Talvez se
policiassem em razão de eu estar sempre por ali, talvez não houvesse nada a ser
dito. Eram umas 3h30min quando eu fui acordado por uma correria. Levantei de um
salto e tentei espiar pela porta entreaberta da sala da UTI. Quatro pessoas vestidas de branco cercavam o
meu irmão. Pude identificar uma delas. Era Anne. Eles falavam todos ao mesmo
tempo. Não pude compreender nada. Somente frases soltas. “Muito sangue”,
“precisamos conter agora”, “anda rápido”, “fecha aquela porta”. Foi quando Anne
veio fazer isso que pude perceber que a situação era grave. Por um instante,
seus olhos cruzaram com os meus. Foi apenas um instante, mas eu senti que havia
algo de muito errado acontecendo. Ela chorava.
Não dormi no resto da madrugada. Levou quase duas horas
para que tudo se acalmasse. Ele havia tido uma hemorragia interna. Os médicos
suaram, mas conseguiram contê-la. Muito sangue havia sido perdido. Agora, ele
dormia. Estava sedado. Procurei Anne em todo o andar para saber mais detalhes,
mas não a encontrei. Fui à sala da enfermagem e perguntei sobre o que havia se
passado, mas elas me disseram que o médico iria conversar com a minha mãe sobre
o assunto. Disseram para eu ir dormir. Idiotas. Tive raiva delas. Meu irmão
sofrendo em uma cama de UTI e elas me mandando ir dormir. A raiva não durou
muito. Sabia que elas não tinham culpa de nada. Ninguém tinha.
Minha mãe chegou bem cedo no hospital. Uma ligação a
tinha avisado sobre os acontecimentos da madrugada. Não fui eu quem ligou. Essa
ideia nem passou pela minha cabeça. Pouco depois das 9h, ela conseguiu falar
com um médico. “Só a senhora, por favor”, disse ele, meneando a cabeça em minha
direção. Eu fiquei sentado no banco. Eles foram para uma sala reservada.
Quando voltou, uns 20 minutos depois, ela tinha os olhos
inchados de quem chorou muito. Sentou-se ao meu lado, em silêncio. Abraçou-me e
chorou novamente. Eu tentei demonstrar força. “Não chore, não desabe, ela
precisa de você agora.” Não adiantou nada. Eu também chorei. Nossas lágrimas se
misturaram. Nossa dor se fez uma só.
Eu não perguntei a ela o que o médico tinha lhe dito. Já
não importava mais. Boa parte daquele dia eu passei caminhando no parque, que
ficava quase ao lado do hospital. Consegui até dormir por quase uma hora na
sombra de uma frondosa árvore. No resto do tempo, eu pensei em como tudo
ficaria depois de ele partir. Como seria? Eu vivi quatro anos da minha vida sem
ele. Não conseguia imaginar como seria viver o resto dela da mesma forma.
Naquela noite, eles não me deixaram entrar para vê-lo. Não
me deram justificativas plausíveis. Apenas disseram que ele não poderia receber
visitas. Não discuti, não quis criar caso. Estava muito cansado para isso. Eu
não sabia que aquela seria a última noite do meu irmão.
Eu acordei bem cedo naquele dia. Perguntei a uma auxiliar
se havia alguma novidade em relação ao estado dele. Ela disse que não, e eu fui
para casa. Tomei um bom banho quente, seguido pelo melhor café da manhã dos
últimos dias. Preparei o meu sanduíche da noite. Olhei rapidamente as notícias
no jornal que meu pai havia deixado sobre o sofá da sala. Mais do mesmo. Antes
de sair, dei uma passada no quarto dele. Estava tudo lá. Era como se ele apenas
tivesse saído para jogar taco com os amigos, como sempre fazia nos sábados pela
manhã. O quarto era de uma organização ímpar. Ele tinha muito cuidado com as
coisas, todas elas estavam em seus devidos lugares. Nenhum sapato jogado em
qualquer lugar, nenhum caderno fora da mochila ou da gaveta do material
escolar. Nem poeira sobre os móveis tinha, pois, em sua ausência, minha mãe
fazia uma rápida, mas cuidadosa, limpeza diária. Sobre a escrivaninha,
repousava seu caderno de desenhos. Ele desenhava muito bem. Tinha um talento
nato. Um traço fino, detalhado, firme. O caderno estava aberto. Na página, uma
gravura inacabada de algum tipo de criatura mitológica. Acho que era um dragão,
mas não tenho certeza. Ao lado do caderno, o estojo com os diversos lápis de
desenho. Meu pai lhe deu o kit quando ele fez 10 anos. Era o seu tesouro
pessoal. Pensei em levar o caderno e os lápis para o hospital. Deixar ao lado
da cama para, quando ele acordasse daquele doloroso pesadelo, pudesse terminar o
desenho. Pensei um pouco mais e preferi deixar como estava. Seria um motivo
para ele retornar àquele quarto. Ele precisava concluir aquele desenho.
Almocei com minha mãe naquele dia. Percebi um certo conformismo
nela. Não gostei daquilo, mas não disse nada. Discutir não iria melhorar as
coisas. Depois disso, ela foi para casa. Eu, para o hospital. O dia estava
nublado, bem cinza, e uma brisa gelada corria pelas ruas daquela parte da
cidade. Eu sentia frio, mas não o bastante para me fazer ir em casa buscar um
agasalho. As horas passaram com vagar. Sentado no banco do corredor, eu li em
uma revista deixada por alguém um artigo sobre como ganhar peso rapidamente e
mantendo a saúde. Meu irmão tinha emagrecido muito. Também ouvi música para
tentar me distrair. Desta vez, não havia esquecido em casa o mp3 player e os
fones. Além disso, o time pelo qual torcíamos jogava no início da noite e eu
queria poder dar a notícia do resultado da partida para ele. Não me importava
se ele respondesse ou não. Eu sabia que ele estaria me ouvindo e que ficaria
feliz com uma vitória.
O relógio de ponteiros na parede, ao lado da sala de
enfermagem, mostrava 20h quando um médico foi chamado com urgência na UTI. Eu
fiquei de pé. Anne apontou no fim do corredor. Ela caminhava um trote rápido.
Quase corria. Ao passar por mim, agarrou minha mão direita com força, soltou-a
e entrou na sala. Passaram-se 10 minutos e mais um médico entrou, acompanhado
de um enfermeiro e uma auxiliar.
Era o meu irmão. Eu sabia que era ele. Eu sentia que era
ele.
Do lado de fora, eu não conseguia parar quieto. Andava de
um lado para outro. Perdi a conta das vezes em que fui ao bebedor molhar a
garganta. Eu sentia frio, mas suava de tensão e nervosismo. Eu queria entrar
naquela sala, ver o que estava acontecendo. Era isso que eu queria. Mas a porta
estava trancada. Eu sei, pois tentei entrar.
Foram cerca de duas horas de intensa dúvida. Foi
torturante. Telefonei para a minha casa, mas ninguém atendeu. Eu estava
só. Assim como meu irmão.
A porta se abriu. Toda a equipe saiu com expressões
desanimadoras. Anne foi a última a deixar a sala. Ela tirou a máscara branca do
rosto, enxugou o suor da testa e veio em minha direção. Com a mão no meu ombro,
disse para eu sentar no banco. Eu obedeci.
Foi uma conversa rápida. Ela sabia que prolongar a
explicação tornaria aquilo ainda mais doloroso. Ela foi direta. Meu irmão não
tinha mais muito tempo de vida. Algumas poucas horas, talvez. Ou poucos
minutos, quem sabe. As hemorragias se espalharam pelo corpo, eles não
conseguiram estancá-las. Os pulmões estavam comprometidos. Eles fizeram o que
podia ser feito. Ela me garantiu que ele já não sentia mais dor, que a única
medicação que podiam lhe dar eram analgésicos. Morfina, no caso. Eu não chorei
desta vez. Não sei por qual razão, mas não chorei. Anne disse que eu poderia
entrar na sala da UTI, se quisesse. Ela foi sincera comigo. Falou que,
provavelmente, seria a última oportunidade para vê-lo vivo. A sedação tinha
sido diminuída. Ele estava desperto. Fiquei de pé. Ela me deu um abraço
apertado. Disse para eu ser forte. Eu disse que seria.
Ele não parecia desperto. Os olhos fechados. A máscara de
oxigênio sobre a boca e o nariz. Eu me aproximei sem fazer barulho. Cheguei ao
lado da cama e segurei a sua mão. Ele apertou a minha. Com força. Senti seus
ossos.
Ele tinha hematomas nos braços. Eu disse o seu nome e ele
abriu os olhos. Bem devagar. Sorriu um sorriso puro ao me ver. Uma lágrima
correu pela sua face pálida. Foi então, que, com a voz combalida de quem estava
cansado de lutar, ele me disse:
“Eu não quero morrer. Por favor, não me deixe morrer.”
Não contive o choro. Não consegui. Eu não fui forte como
havia prometido para Anne.
Eu disse que não o iria deixar morrer. Disse que iria
ficar tudo bem. Que aquilo tudo iria passar e que, no futuro, iríamos rir feito
idiotas em uma mesa de bar quando relembrássemos da cena melodramática daquele
dia.
Eu não falei a verdade.
Não ficou tudo bem.
Aquilo tudo não passou.
Ainda dói quando recordo daqueles dias. Já faz mais de 20
anos, mas ainda dói. Muito. Cerca de quarenta minutos depois da minha falsa
promessa, ele morreu.
Nós nunca rimos feito idiotas em uma mesa de bar.
A última coisa que eu lhe disse foi uma mentira.