segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Quando eles encontraram o meu corpo suspenso



Quando eles encontraram o meu corpo suspenso pelo pescoço por uma corda com laço duplo amarrada em um galho de uma goiabeira nos fundos de nossa casa no sítio, os sentimentos que tomaram a todos foram os mais diversos.

Ninguém esperava. Não havia passado pela cabeça de nenhum deles que algo como aquilo pudesse acontecer. Não comigo. Nunca comigo.

Todos sofreram. Cada um do seu jeito.

Minha mãe não se conformou. Não se conforma até hoje. Ela ainda chora todos os dias pela manhã, cedo, quando vai abrir as janelas do meu antigo quarto para deixar a luz do sol entrar. Ela não acreditava. Não achava que era real. Não podia ter sido eu. Eu não faria isso comigo. Eu não faria isso com ela. Não poderia ter feito. Ela ainda procura motivos. Não os encontrou. Nunca vai os encontrar. Eu sei.

Meu pai chorou muito nos dois dias posteriores. Depois, nunca mais. Ele sentia a minha falta tanto quanto ela, mas deixou de ser aquele que era antes da tragédia familiar. Tornou-se uma rocha. Junto com as lágrimas que caíram nas primeiras 48 horas, escorreram por sua face todos os seus sentimentos. Feito tempestade que chega rápida e intensa, que lava tudo, não deixa nada como antes, e se vai.

Minha irmã mais nova não pareceu se importar tanto. Ela sequer chorou. Nenhuma lágrima. Mas isso não quer dizer que não estava sofrendo. Ela estava. O que acontece é que ela era como eu. Sempre tive dificuldades em expressar meus sentimentos. Guardava-os para mim. Remoía-os. Ficava com eles até que secassem. Isso me fazia mal. Isso, de alguma forma, me levou a fazer o que fiz. Ela era assim também. Por isso não chorou. Mas sofria. Eu sei que sofria.

Meu cachorro, o Napo, ficou meio tristonho durante umas duas semanas. Na terceira, se engraçou com uma cadelinha vira-latas que apareceu no sítio. Acho que se esqueceu de mim. Hoje é pai de cinco bebês caninos. Ele não dá muita bola para eles. Prefere correr atrás de carros e motocicletas. Faz isso com uma sanha assassina nos olhos. Era um baixinho invocado e tanto, assim como o Bonaparte que lhe inspirou o nome. Sinto falta dele.

Eu não planejei aquilo. Não do jeito que se pensaria que uma coisa dessas poderia ser planejada. Uma sucessão de fatos me levou a tomar tal atitude. Ainda mais do que isso, uma sucessão de sentimentos me levou a tal ponto.

Comecei pelo fim de meus dias. Volto agora aos momentos que antecederam o meu passamento.

Eu acordei bem cedo naquele dia. Muito cedo. Não eram seis horas da manhã e já estava desperto. 

Ainda estava escuro, não havia amanhecido. Era estranho ver aquela casa em silêncio. Não tinha lembrança alguma dela daquele jeito. Era sempre muito barulho, sempre muitas vozes, discussões, gritos. Estava tudo calmo naquela manhã.  Sentado à mesa na cozinha, eu tomava uma xícara de café quente. Estava em paz.

Fazia frio. Lá fora, uma névoa úmida cobria tudo o que os olhos podiam ver. Eu tentava não pensar em nada. Fracassei. Só pensava nisso.

Ao longe, bem ao longe, um cão ladrava incessantemente. Meus pais dormiam, assim como minha irmã.

Fiquei por quase uma hora sentado naquela cadeira. Minhas costas doíam quando me levantei. Depois de tomar um banho rápido, fui ao meu quarto, onde peguei umas roupas aleatoriamente e joguei-as na velha mochila rasgada e com o zíper estragado. Antes de sair, peguei um pacote de bolacha que achei no fundo do armário da cozinha. Não tinha muito dinheiro para o almoço ou para algum lanche à tarde. Precisava garantir um mínimo que fosse.

Cheguei à estação rodoviária quando o sol começava a surgir. Havia passagens de sobra para a cidade onde ficava o sítio. Ninguém em sã consciência ia passar o final de semana naquele lugar.

Era um sábado.

Eu não acordei naquele dia pensando em ir para o sítio. Foi repentino, impulsivo. Tive vontade de ir e fui. Simples assim. Senti que tinha de me distanciar de tudo. Eu precisava exumar a mim mesmo.

Recostei a cabeça na janela e fui o caminho todo ouvindo Neil Young nos fones de ouvido. Eu era o único garoto de 17 anos de idade que conhecia que ouvia Neil Young. Na verdade, olhando agora, à distância, eu não me conhecia tão bem assim.

Pouco mais de uma hora depois, já estava caminhando no estradinha de terra batida em direção à nossa casa. Eucaliptos margeavam o estreito caminho. Eu ia chutando uma lata velha de ervilhas em conserva e assoviando alguma canção qualquer enquanto não enxergava surgir à frente a ponta do telhado de nossa casa. Eram inconfundíveis telhas portuguesas de barro. Estavam sempre muito limpas. Meu pai fazia questão de deixá-las reluzindo. Eram um dos seus orgulhos idiotas.

Tive de pular o portão de arame e madeira, pois esqueci de pegar a chave do cadeado. Sorte que lembrava perfeitamente do lugar secreto nem tão secreto onde ficavam as chaves extras das portas da casa: embaixo da única pedra ao redor do poço artesiano que tinha uma cor diferente. Estavam lá.

Tudo estava do mesmo jeito de sempre. Irritantemente do mesmo jeito de sempre. Todas as coisas em seus devidos lugares. A obviedade da ordem me dava asco.

Tirei os tênis, a camiseta e a calça. Vesti um velho calção que achei no quarto dos filhos (a casa tinha três quartos: um dos meus pais, um dos filhos e um para as visitas. Não importa que não recebêssemos visita alguma há anos. Meus irmãos e eu sempre tínhamos de ficar no mesmo quarto apertado quando íamos ao sítio. Maldito método), e sai para dar uma volta no campo.

Havia chovido na madrugada e o que se via a perder de vista era barro, muito barro. Eu gostava de sentir a terra molhada entrar por entre os dedos do pé. Era uma sensação única. O tipo de coisa impossível de se sentir na cidade. Não da mesma forma.

Nas parcas casinhas de madeira que lindavam a rua, casais idosos sorviam o mate enquanto a fumaça saía fumegante das chaminés, indicando que os fogões à lenha estavam à toda. Bolo de milho aqui, amendoim torrado ali.

Quanto mais eu caminhava em direção às partes altas da cidade, menos gente eu via e mais eu me sentia fazendo parte de algo maior. Difícil de explicar. Era um tipo de conexão. Algo cósmico, sei lá.

Aquilo tudo me renovava. Era como um sopro de vida entrando por minhas narinas e preenchendo meus alvéolos de tal forma que eu me sentia cheio de vida.

Lá em cima do morro, pastagens cobriam de verde todo o chão. A água das chuvas escorria para as partes baixas e o barro não tinha vez naquele lugar. Pouca gente costumava ir até o alto do morro. Aquela era uma cidade de pessoas velhas. Os jovens saíam de casa cedo para estudar, trabalhar ou simplesmente desbravar o mundo. Só voltavam, quando voltavam, para viverem sua última década, no máximo, de vida. Ir ao topo daquele morro exigia algum esforço físico que já não estavam mais dispostos a fazer. Ou tentar fazer.

Melhor para mim. Não seria incomodado por ninguém. Nunca fui incomodado no topo daquele morro. Lá, eu podia fazer o que quisesse. Lá, eu podia ser quem eu quisesse, inclusive eu mesmo.

No céu, o sol já reinava com altivez. Deitado na relva, com as mãos cruzadas sobre o peito, eu tentava esvaziar a minha cabeça. Naquele local, eu não precisava fazer uso de substâncias psicoativas para abrir a minha mente e experimentar sensações novas. Ali, eu podia ter aquela indolência de quem não tem nada a perder, nada a ganhar, de quem não deseja nada, apenas ser, apenas estar. Esse era eu, sozinho no morro em uma manhã de sábado.

Por um tempo que não consigo precisar quanto foi, senti-me como se estivesse flutuando. Era àquilo que a cultura oriental chamava de meditação. Não pensar em nada. Atingir um estado tal de tranquilidade até o ponto em que todo o externo deixe de existir. Fazer sua energia circular em um fluxo constante pelo seu corpo. É só você com você. Nada mais.

Voltei ao estado anterior de consciência, levantei-me e iniciei a caminhada morro abaixo em direção à minha casa. Estava leve. Flanava.

Almocei folhas verdes e batatas colhidas da horta que ficava na parte da frente do terreno, passando o portão. Cozi as batatas e as comi com manteiga, pimenta do reino e orégano. Estava uma delícia. Para beber, guaraná, daqueles que vem em garrafa de cerveja e que a gente só encontra em vendinhas de cidades do interior. A geladeira estava cheia daquelas garrafas. Minha irmã adorava guaraná. Eu também.

Após o almoço, tirei uma sesta. Coloquei um colchonete no chão da área onde ficava a mesa que sediava os jogos de canastra da família e me estirei. Costas retas, piso duro. A coluna doeu um pouco, no começo, mas, depois, se adaptou. Nosso corpo sempre se adapta, mesmo quando nosso espírito grita em desespero pelo novo.

Dormi por uma boa hora e meia. Foi um sono revigorante. É engraçado como uma noite inteira de sono na cidade grande não consegue ter o efeito que uma hora e meia em uma cidadezinha perdida no interior tem. Não sei identificar a razão da diferença. Talvez seja o ar mais puro, talvez seja o farfalhar constante das folhas das árvores no pomar, talvez sejam os mais variados cantos de pássaros que ajam como calmante. Talvez sejamos nós mesmos. Talvez seja apenas eu.

Tirei a tarde para caminhar. Caminhar por onde eu quisesse. Sem ruas para me dizer quais caminhos tomar, sem calçadas para me forçarem a seguir por um espaço determinado. Tudo é tão diferente quando a gente não se sente e não está, de fato, delimitado.


Zigue-zague.

Sobe e desce.

Vai e vem.

Desde que me conhecia por gente, aquela cidade era a mesma em minhas memórias. Nada mudara. Quando criança, passávamos as férias naquela casa no sítio. Eu costumava sair pelas ruas pedalando minha bicicleta. Eu zunia feito um caça supersônico, ressoava feito um trovão. Atrás de mim, um rastro de poeira esvoaçante. Caí muitos tombos, perdi muito sangue. Ainda tinha as cicatrizes nos joelhos. A bicicleta aro 20 estava jogada no galpão, pneus furados e toda enferrujada. Devia a ela uma parte do que me tornei. Aquela bicicleta mais do que me divertiu. Ela me ensinou. Aprendi com ela que cada tombo sofrido era um tombo a menos que eu ia cair. As quedas me tornavam um ciclista melhor, me davam mais controle sobre a bicicleta e me incitavam a ir além, a testar meus limites, a cruzar as fronteiras da prudência e do medo. Devia muito àquela bicicleta e fiquei triste em ver o seu estado. Já de volta à casa, tirei-a de lá e a limpei cuidadosamente. Com um pedaço de lixa gasta que achei dentro de uma caixa de papelão, tirei as ferrugens, que eram superficiais. Costurei um rasgo no selim, ajustei os cabos dos freios. Fiz o que pude para fazê-la voltar à vida. Só não consegui recuperar os pneus e a pintura. Paciência.

Aquilo me fez bem. Era como se eu tivesse recuperado uma parte da minha história que estava esquecida. Era como retirar a poeira de sobre um livro velho.

Sentei-me ao pé da goiabeira e fiquei ali por um bom tempo. Descansando do trabalho na bicicleta e tentando deixar meus pensamentos livres. Ao lado da minha perna direita, uma carreira de formigas carregando grãos e pequenos pedaços de folhas seguia em fila. Provavelmente se dirigiam ao seu formigueiro. 

Pensei em como aquele senso coletivo era uma coisa incrível. As formigas não cumpriam ordens. Elas formavam uma equipe na qual cada uma delas sabia de sua responsabilidade para com o todo. Individualmente, eram insignificantes. Se eu esmagasse uma com o dedo naquele instante, não faria diferença alguma para as outras ou para o formigueiro. Elas, como indivíduos, faziam parte de um organismo maior. Era como se fossem células de um corpo humano. Todos os dias morrem diversas, que são substituídas por outras. O sistema segue funcionando. Juntas, elas são uma máquina que funciona quase à perfeição.

E foi aí que eu pensei em qual era o meu papel, como indivíduo, no todo que me rodeava. Eu não era um operário. A pele de minhas mãos era fina e clara. Eu não produzia. Nem intelectualmente eu produzia.  Vivia mais para mim mesmo do que para o todo. Talvez eu fosse um fardo. Ou um grande bebê. Quem sabe, futuramente, me tornasse uma figura notável, um homem das artes, um mago das letras. No momento, porém, eu dava despesas, atrapalhava, e não contribuía com nada. Meus pares ainda apostavam em mim. Acho que nutriam alguma esperança de que, de uma hora para outra, brotasse um espírito empreendedor ou acendesse a chama de inspiração e inciativa que me levaria a grandes feitos.

Eles me davam mais crédito do que eu mesmo o fazia.

Eu não tinha perspectivas. Sentia-me como uma engrenagem que teimava em girar em um ritmo diferente das outras que compunham uma grande máquina. Vibrava em outra sintonia. Mais cadenciadamente. Sem tanta pressa.

Eu queria escapar. Queria distância de tudo. Se pudesse, passaria todos os dias de minha vida no alto daquele morro. Ao meu redor, as pessoas que amo, meu cachorro, alguns livros. Nada mais.

Eu não queria ter de fazer escolhas que iriam afetar todo o resto de minha vida. Eu tinha 17 anos. A ideia do “para sempre” me assustava. Não queria nada para sempre. Não aos 17 anos. Aos 17 anos, o “para sempre” parece uma eternidade.

O cerco estava se fechando. As paredes se movendo em direção a mim. O tempo diminuía. Eu sufocava.

Eu não sentia raiva. Não odiava ninguém. Meu coração estava livre de dor. Não havia mágoa.

Foi com consciência total de minha escolha e dos efeitos dela e domínio completo dos meus atos que eu fiz o que fiz. Não estava bêbado, nem drogado, tampouco deprimido.

Sentia-me pleno. Minha alma era puro amor. Precisava me desapegar. Precisava evoluir. Eu queria mais. Eu sabia que podia mais.

Tinha de cortar as cordas que me prendiam.

Sem lágrimas. Sem carta de adeus.

Eu estava exatamente onde queria estar.

Enfim, sentia-me livre.


Em paz.

E feliz.

Como nunca antes havia sido.