domingo, 14 de dezembro de 2014

Gota de sangue sobre um nome riscado em uma página de jornal


Sentado na antiga cadeira estilo Luis XV que havia comprado em um antiquário há cerca de um mês, ele olhava para a pistola que tinha em mãos. Tudo seria tão mais fácil se pressionasse o cano da arma contra a têmpora e puxasse o gatilho.

O apartamento estava uma bagunça. Janelas fechadas, penumbra, cheiro de mofo. Garrafas jogadas pelo chão, contas vencidas sobre mesa da cozinha. A vida havia lhe abandonado. Agora, ele pensava se devia deixá-la ir também. Há tempos já não se davam bem. Não se entendiam. Tinham suas próprias prioridades. Não carregava mágoas. Tiveram seus bons momentos. Era hora de se despedirem. Cada um para o seu lado. Um adeus. Um aceno distante.

Não tinha sido difícil conseguir a arma. Bastava dar alguns telefonemas, conhecer as pessoas certas, ter dinheiro em mãos. Voilá! Sem perguntas, sem nomes. Um negócio de cavalheiros. Há pouco mais de seis meses, fizera um empréstimo com um facilitador financeiro urbano, ou um agiota, como queira. Um profissional famoso na cidade, também conhecido como Lambari. A alcunha havia sido dada em razão de todos saberem que o velhote magro, de movimentos ágeis e precisos, e de poucos cabelos, era peixe pequeno no esquema de empréstimo de dinheiro a juros altíssimos. Era só um testa de ferro. Os tubarões sequer passavam perto daquela parte da cidade em que atuava. Ele nunca havia feito uso de tais serviços. Sabia que era um poço sem fundo. Um caminho sem volta. Mas, desta vez, o perigo era real. Dívidas de jogo, cobradores furiosos e sem escrúpulos. Precisava estar preparado para se defender, se fosse preciso. Com o dinheiro, comprou a arma. Contraiu uma nova dívida para se defender de quem iria atrás dele cobrar dívidas antigas. Ele não pensava muito no que fazia. Apenas fazia.

Não sabia atirar. Nunca havia feito um disparo na vida. Mal sabia manejar a pistola que jazia dentro da gaveta do armário de roupas, sob as cuecas e meias. Aliás, sempre tivera aversão a armas de fogo. Era um pacifista convicto. Acreditava na força da palavra como meio para se resolver tudo. Agora, porém, ele estava ali, sozinho em meio à sua decadência, com uma pistola automática nas mãos, tentando criar coragem para dar fim a tudo aquilo que lhe perturbava, que lhe causava dor.

Aquele fatídico dia amanhecera nublado. Não era possível ver nem uma pequena nesga de azul no céu plúmbeo. Ele acordara com uma ressaca colossal. Havia passado boa parte da madrugada bebendo whisky vagabundo, fumando cigarros baratos, jogando pôquer à dinheiro e flertando com garotas sem esperança. Mais um dia normal.

Abriu a geladeira para ver o que tinha lá dentro e que poderia saciar sua fome. Pouca coisa. Uma caixa de leite pela metade, duas fatias de pizza de calabresa, uma jarra de água e alguns tomates estragados. Pegou a caixa de leite. Esvaziou-a no liquidificador e jogou dentro dele duas bananas pra lá de maduras que jaziam na fruteira ao lado do botijão de gás vazio. Bebeu dois copos da batida. Já se sentia melhor. Com as mãos unidas em concha, jogou água no rosto marcado por uma vida errática de excessos. Pegou as chaves e saiu.

Caminhava com dificuldade. Arrastava-se. Sentia na boca uma mistura pastosa de banana, fumaça e álcool. Na banca do fim da rua, pegou o jornal do dia. Ainda antes de dobrar a esquina em direção ao porto velho, comprou dois maços de cigarro de um ambulante.

Não tinha ideia de como seria o seu dia. Não cultivava planos. Fazia o que tinha de fazer e esperava para ver no que ia dar. Assim, tudo ficava muito mais fácil. Sem projeções. Sem complicações desnecessárias.

Não tinha perspectivas. Vagava pelas ruas sem direção. Era um vagabundo. Um vadio. Agia conforme seus instintos. Ia para onde eles o levavam. Naquele dia, decidira que iria dar uma volta nos arredores do porto velho. Gostava de lá. Gostava dos prédios históricos caindo aos pedaços, do cheiro de peixe podre. Gostava da gente com sandálias de couro puído. As faces vincadas pelo tempo e tostadas pelo sol litorâneo.  Gostava do sal que dava a tudo um aspecto de corroída aspereza. Aquele sal o havia forjado. Ele era assim. Oxidado pelo tempo. Era apenas o resquício de quem um dia fora.

Sempre que precisava de uns trocados, ajudava a descarregar algum pequeno pesqueiro que ainda insistia em vender seu trabalho de um dia inteiro para comerciantes decadentes que sobreviviam pagando muito pouco pelo pescado na origem e vendendo o produto abaixo do preço dos mercados das redondezas. O serviço pagava uma mixaria, mas o suficiente para poder comprar seus cigarros. Além disso, desviava pacotes de sardinhas, que levava para casa e comia fritas na banha de porco que ganhava de um amigo de infância, que, por sua vez, a desviava do açougue no qual trabalhava.

Sustentava-se com o dinheiro ganho nas mesas de pôquer e truco. Era bom com as cartas e ainda melhor sem elas. Blefava com singular maestria. Além disso, tinha o dom da bravata. Provocava os adversários ao extremo, tirava-os do sério, fazia com que eles se desconcentrassem, fazia com que a raiva tomasse o lugar da razão. A raiva não é uma boa companheira nas mesas de jogo. Dispersa, tira o foco, cria valentões. E, assim, na base do blefe e da bravata, ele ganhava sua vida. De vez em quando, também ganhava alguns socos, uma garrafada, algumas ameaças de morte, mas nada que o fizesse achar que deveria mudar de hábito. Achava aquilo tudo muito divertido. Talvez um dia fosse surrado até a morte, ou baleado pelas costas em uma viela escura qualquer. Enfim, os riscos existiam, sabia disso. Mas, entre arranjar um emprego e virar um operário padrão, e ganhar seu dinheiro jogando cartas, bebendo whiskies baratos e galanteando garotas sem pudores, ele preferia, de longe, a segunda opção.

Depois de um dia de bebidas em copos alheios, tragadas em cigarros alheios e escarradas em calçadas alheias, resolvera curtir a noite na companhia de amigos que não sabiam qual era o seu nome. O Nautilus Drink Bar não estava muito movimentado. Por algum motivo desconhecido, o dono do lugar, um velhote de sessenta e tantos anos, que tinha um sotaque castelhano e se dizia chileno, mas que todos sabiam que era do Chuí mesmo, era leitor de Verne. Sabia de cor diversas passagens de Vinte Mil Léguas Submarinas. Tinha até um quê de Capitão Nemo, a barba comprida e espessa, os trejeitos de comandante, nariz adunco e olhar furioso.

Recostou-se no balcão e pediu uma bebida. Fazia calor e o pequeno lugar não tinha um ventilador sequer. As gotas de suor escorrendo pelas costas em profusão. O cabelo sujo grudado na testa. As envelhecidas mãos por sobre o tampo de madeira que já fora parte de um pesqueiro local. Sua cabeça doía, seus pés ardiam de bolhas causadas pelos sapatos batidos.

Não tinha mais esperanças. As havia perdido todas. Uma a uma. Ficaram pelo caminho. Deixou um rastro delas para trás. Agora estava ali, no balcão de um bar, à espera de alguém que estivesse disposto a jogar cartas por um dinheiro que ele não tinha.
 O relógio ensebado que ficava sobre a chapa onde se aqueciam os pães das torradas marcava cinco para a meia noite quando ele se levantou um pouco tonto, escorando-se no balcão e nos bancos, e saiu porta afora.

Era uma noite quente aquela. Não havia nem mesmo a constante brisa que vinha do mar e trazia junto aquele gosto de peixe seco salgado que entrava pela garganta e entranhava no corpo. Ele estava sozinho. Caminhava a esmo no cais abandonado. Velhos barcos adernados, canoas com água pela metade, redes de nylon rasgadas jogadas pelo chão, cestos com escamas e tripas em decomposição.

Sentado na beira das docas desativadas, sentia a água escura chocar-se contra seus pés. Não pensava em nada. Sua cabeça fervilhava, mas ele não pensava em nada. Flashes de imagens cruzavam à frente dos seus olhos. Memórias perdidas surgiam como relâmpagos errantes. Seus pais, a velha casa em estilo português onde crescera, o corpo de seu irmão cercado de flores, um beijo.

Em meio ao turbilhão de sensações, tentava organizar seu caos interior. Estava confuso. Por um instante, uma ideia passou por sua cabeça. E se ele deixasse de existir? E se sumisse? Ou se morresse? Alguém sentiria a sua falta? Alguém choraria? Alguém levaria flores no seu túmulo? Ou será que dançariam sobre ele? Tentou pensar em nomes, em pessoas que, talvez, pudessem perceber a sua ausência. Não tinha família. Nenhum amigo de verdade. Talvez os vizinhos, mas ele nem os cumprimentava pela manhã. Alguma amante? Não, não. A maioria delas sequer perguntava o seu nome. Quem sabe o dono na banca da esquina?  Bem possível. Não tinha um dia em que deixava de comprar o jornal pela manhã, logo cedo, quando voltava para casa cambaleando após mais uma noite de jogatina. Sim, o dono da banca provavelmente notaria o seu sumiço. Estava convencido disso. Sorriu. Ele gostava do dono da banca da esquina. O homem não fazia perguntas. Apenas pegava as moedas e lhe entregava o jornal. Teve vezes em que nem cobrou pelo produto. Era um cliente antigo, fiel. Normal que, um dia ou outro, as cartas não lhe favorecessem. Essas coisas acontecem. Solitário no cais, ergueu a mão direita e, como se segurasse uma fina taça de cristal, fez um brinde ao seu amigo, o dono da banca de revistas. Era um bom homem aquele.

Em um instante, sentiu algo tocar seus tornozelos submersos na água turva. Pensou ter visto a silhueta de um peixe, talvez uma sardinha perdida. Possivelmente era uma alga, ou uma sacola de plástico. Sentiu sede. Levantou-se e caminhou até o Mercado do Peixe, que, na verdade, não tinha nada de mercado. Era só um lugar com umas pias e onde, nos finais de tarde, pescadores artesanais vendiam o que tinham conseguido trazer do mar durante o dia. Abriu a torneira e pôs a cabeça embaixo, sorvendo goles de água quente e salobra. Um cheiro forte de pescado entrou por suas narinas e tomou conta de seu corpo. Vomitou. Achou estranho. Aquela era a primeira vez que vomitava em razão do cheiro de peixe. Nascera naquele lugar, crescera nele. Estava mais do que acostumado com os odores. Agora, como um rapazote imberbe da capital que viera visitar os avós nas férias, sentia nojo, seu estômago revirava. Estava envergonhado. Não se reconhecia. Era um rascunho de si mesmo. Grafite sobre o papel.

Ergueu-se como pôde e começou a caminhar. Precisava se recompor. Nem bêbado estava. Talvez tivesse sido o sanduíche de atum que comera à tarde que lhe fizesse mal. Sabia que não era isso, mas buscava uma explicação a todo custo, como quem busca a sorte no truco em uma rodada às cegas. Sabia que a chance de obtê-la era mínima, mas o desespero e, ainda mais, a desesperança, já não sussurrava ao seu ouvido como outrora. Agora, ambos gritavam desafinadamente.

Foi quando as primeiras gotas da chuva quente de verão explodiram em sua face que a triste ideia cruzou a sua mente pela primeira vez naquela madrugada. Não se apegou a ela. Passou feito um raio.

Seguiu por entre as vielas estreitas calçadas com pedra. A essa hora, restavam pelas ruas apenas os homens sem casa, as mulheres sem sonhos. Gente que não tinha para onde ir e que não queria ficar onde todos os outros se conformavam em estar. Gente cansada.  Os olhos caídos, as mãos nos bolsos, o cigarro pendendo do canto da boca. Fracassados. Achava que todos eram uns fracassados. Ele não. Ele não era um fracassado. Estava ali por escolha própria. Sempre fora um marginal. Vivia à margem. Corria paralelamente à linha guia. Gostava disso. Gostava de se sentir livre. Sem rédeas para lhe conter. Sabia, porém, que a liberdade cobrava seu preço. E ele pagava com juros altos.

Lembrou-se de sua infância. Nunca tivera vida fácil. O comportamento exemplar, as boas notas, o respeito aos professores faziam dele um rebelde em um ambiente escolar em permanente tensão. Sentia-se sempre como se tivesse um alvo pintado às costas. Foi assim, entre uma sessão de espancamento gratuito e outra, entre uma fuga desesperada e uma súplica por piedade, que ele forjou sua instável personalidade.

Era um produto do sistema. Um subproduto do sistema. O sistema o mastigara, quando jovem, e o cuspira fora. Já não tinha mais sabor de nada. Era o resto, a sobra.

Levava uma vida normal. Trabalhava oito horas por dia na biblioteca na faculdade Letras da universidade local. Era um rapaz culto, um leitor voraz. Se quisesse, poderia trabalhar como guia da biblioteca. Às vezes, até se imaginava caminhando pelos corredores, entre as estantes altas, indicando com as mãos algumas obras e falando sobre elas e seus autores por muitos minutos. Sentia-se bem quando estava naquele lugar. Sentia-se protegido. Alimentava, porém, um desejo que lhe consumia as forças. Seu coração nunca estivera dentro daquela biblioteca. Foi aí que veio a rejeição. Uma paixão não correspondida. Seu coração, despedaçado.

Quando não pôde suportar a dor que lhe comprimia o peito, largou tudo. Deixou o emprego, os costumes, nunca mais fez contato com a família. A rua passou a ser o seu escritório. Batia ponto lá diariamente. Abandonou o apartamento que seus pais haviam lhe cedido e passou a viver em pequenos quartos de hotéis de quinta categoria. Consigo, levava apenas algumas peças de roupa, um par de sapatos, duas gravatas, e uma mala cheia de livros amarelados.

Na rua, se sentia em casa. E era na rua que estava agora, perambulando. A essa altura, já não enxergava direito as coisas ao seu redor. Tinha os olhos embaçados. Não adiantava esfregá-los. Era como uma pasta grudenta que teimava em não sair. Enxergar mal não era um problema para ele. Conhecia aquela zona em detalhes. Todas as ruas, todas as avenidas, todos os prédios em ruínas, toda a gente sem esperanças. Ainda assim, tropeçou em uma pedra do calçamento que estava fora de lugar. Caiu. Seu corpo chocou-se no chão com um barulho seco. Com muita dificuldade, ergueu-se. Tinha os joelhos esfolados, as mãos arranhadas. Sangue gotejava de seu rosto. Havia perdido dois dentes. Não sentia dor. Estava entorpecido.

Já não tinha mais dinheiro consigo. Nem uma moeda sequer. Precisava beber. A sobriedade o perturbava. Não gostava disso. Ainda tinha cigarros, mas a nicotina, por si só, já não lhe saciava. Necessitava sentir o álcool em sua corrente sanguínea. Era o álcool que alimentava o fogo dentro de si. O cigarro só o acendia.

Trôpego, seguia. Ouviu, ao longe, um som de piano. Não conseguiu, de pronto, identificar a melodia. Estava disperso demais. Precisava se concentrar para identificar as notas. Dava passos lentos, descoordenados. Dobrou uma esquina e ouviu a música ainda mais alta (seria Vivaldi?). Ele sabia de onde vinha o som. Somente um bar naquela região tinha um piano. Aproximou-se da fachada. Encostou a testa no vidro. Pôs o jornal na cintura, como se fosse um revólver, e, com as mãos paralelas às têmporas, olhou para dentro. O cenário não era muito diverso do visto em todos os outros bares decadentes do porto velho. Homens fumando charutos vagabundos, bebendo cachaça barata e cuspindo pelo chão. Havia apenas uma mulher no recinto. Cabelos longos e negros feito a madrugada lá fora. Senta, às sós, em uma mesa, ela ouvia a música e bebericava um drink que ele, da rua, não conseguia identificar qual era. Possivelmente, alguma coisa com vodka. Talvez um Martini.

O pianista tocava para ela. Podia sentir isso. Era nela que ele estava concentrado.  A música (sim, Vivaldi e suas quatro estações!) ecoava nas pedras portuguesas dos calçamentos. Ele estava hipnotizado. As mãos do pianista moviam-se freneticamente durante o Verão. A tensão entre o artista e a mulher de pernas longas e batom vermelho faiscante era crescente. Do lado fora, ele não conseguia se mover. Seu cérebro dizia para entrar, puxar uma cadeira, acender um cigarro. Seu corpo dizia que não, que deveria ficar exatamente onde estava, que sua presença naquele sistema iria desequilibrá-lo, que ele iria romper com a eletricidade do momento. O que será que pensava a mulher? O que fazia ali àquela hora? Desejava o pianista? Sofria? Amava?  Quando a música cessou, também findou o encanto. O pianista esvaziou seu copo de whisky, se levantou e foi ao banheiro. A mulher virou o corpo em direção ao barman e pediu mais uma dose de sua bebida. Ele saiu de seu torpor, girou nos calcanhares e retomou o seu caminho.

Aquela cena o havia afetado de alguma forma. Pela primeira vez, ele percebia beleza naquele ambiente tão hostil. Talvez seu olhar tivesse mudado. Ele não tinha certeza, mas sentia-se diferente.

Foi aí que, pela segunda vez, a triste ideia lhe tomou os pensamentos de assalto. Agora, porém, não foi um flash de luz. Não foi um arrepio. Foi arrebatador. Foi fluxo constante.

Caminhou com obstinada determinação. Já não tinha as mãos trêmulas. Já não tinha os passos arrastados. Era o mesmo, mas já era outro. De um modo que ele não entendia como, sabia muito bem o que tinha de fazer. A neblina se dissipara. Tudo estava tão límpido, cristalino.

Quando deu por si, corria. Sobre seus longos e lisos cabelos castanhos, as gotas da chuva caiam, escorrendo pelo rosto magro. Sua visão clareara. Os olhos injetados.

Dando saltos, dobrando esquinas. Via sua vida refletida em cada poça d’água. Um mosaico de imagens multicoloridas. Cada memória, cada lembrança. Estavam todas lá. Uma a uma, surgiam como furacões. O rosto dela. Palavras ao alcance das mãos. Podia tocá-las se quisesse. Mas não queira. Preferia senti-las. Ondas de emoções. Absorvia-as. As mãos dela. Retratos jogados pela rua, feito peças de um quebra-cabeça que teimam em não se encaixar. Imagem sem sentido. Música para camaleões. Seus pais na varanda dando adeus. Nenhum amigo para se despedir. A voz dela. Contrastes. Campos de flores à beira da estrada. Caminho de pétalas. Desenhos de nuvens no céu. Coelhos, dragões, unicórnios e linces. Vida além da vida. Doce saudade de um passado imaginário. O beijo dela.

Adentrou o prédio e se atirou sobre a porta. Não havia tempo para chaves. Abriu as janelas. A luz da lua. Sombras e silhuetas. Na parede, o velho relógio de ponteiros gritava. Ele não ouvia nada além de sua ofegante respiração. Caminhou em direção ao quarto.  Abriu a gaveta onde guardava meias e cuecas. Do fundo, retirou uma pistola. De volta à sala, deixou o corpo cair sobre a poltrona. Estava exausto. Permaneceu ali, imóvel. A ideia fixa. A ideia fixa.

Esticou o braço direito e pegou a caneta que usava para conferir os bilhetes de loteria. A chuva aumentou, já era um temporal.  Pedras de gelo chocavam-se colericamente contra a janela. Baixou os olhos. O relógio ainda gritava.

No jornal em suas mãos, quatro letras aleatoriamente dispostas em uma página estavam circuladas com fúria. Um nome. Sobre elas, escorriam gotas de sangue quente, de um vermelho vivo.


Tudo seria tão mais fácil se pressionasse o cano da arma contra a têmpora e puxasse o gatilho.