Sentado na antiga cadeira estilo Luis XV que havia comprado em um antiquário há cerca de um mês, ele olhava para a pistola que tinha em mãos. Tudo seria tão mais fácil se pressionasse o cano da arma contra a têmpora e puxasse o gatilho.
O apartamento estava uma bagunça. Janelas fechadas, penumbra,
cheiro de mofo. Garrafas jogadas pelo chão, contas vencidas sobre mesa da
cozinha. A vida havia lhe abandonado. Agora, ele pensava se devia deixá-la ir
também. Há tempos já não se davam bem. Não se entendiam. Tinham suas próprias
prioridades. Não carregava mágoas. Tiveram seus bons momentos. Era hora de se
despedirem. Cada um para o seu lado. Um adeus. Um aceno distante.
Não tinha sido difícil conseguir a arma. Bastava dar alguns
telefonemas, conhecer as pessoas certas, ter dinheiro em mãos. Voilá! Sem perguntas, sem nomes. Um
negócio de cavalheiros. Há pouco mais de seis meses, fizera um empréstimo com
um facilitador financeiro urbano, ou um agiota, como queira. Um profissional
famoso na cidade, também conhecido como Lambari. A alcunha havia sido dada em
razão de todos saberem que o velhote magro, de movimentos ágeis e precisos, e
de poucos cabelos, era peixe pequeno no esquema de empréstimo de dinheiro a
juros altíssimos. Era só um testa de ferro. Os tubarões sequer passavam perto
daquela parte da cidade em que atuava. Ele nunca havia feito uso de tais
serviços. Sabia que era um poço sem fundo. Um caminho sem volta. Mas, desta
vez, o perigo era real. Dívidas de jogo, cobradores furiosos e sem escrúpulos.
Precisava estar preparado para se defender, se fosse preciso. Com o dinheiro,
comprou a arma. Contraiu uma nova dívida para se defender de quem iria atrás
dele cobrar dívidas antigas. Ele não pensava muito no que fazia. Apenas fazia.
Não sabia atirar. Nunca havia feito um disparo na vida. Mal
sabia manejar a pistola que jazia dentro da gaveta do armário de roupas, sob as
cuecas e meias. Aliás, sempre tivera aversão a armas de fogo. Era um pacifista
convicto. Acreditava na força da palavra como meio para se resolver tudo.
Agora, porém, ele estava ali, sozinho em meio à sua decadência, com uma pistola
automática nas mãos, tentando criar coragem para dar fim a tudo aquilo que lhe
perturbava, que lhe causava dor.
Aquele fatídico dia amanhecera nublado. Não era possível ver
nem uma pequena nesga de azul no céu plúmbeo. Ele acordara com uma ressaca
colossal. Havia passado boa parte da madrugada bebendo whisky vagabundo,
fumando cigarros baratos, jogando pôquer à dinheiro e flertando com garotas sem
esperança. Mais um dia normal.
Abriu a geladeira para ver o que tinha lá dentro e que
poderia saciar sua fome. Pouca coisa. Uma caixa de leite pela metade, duas
fatias de pizza de calabresa, uma jarra de água e alguns tomates estragados. Pegou
a caixa de leite. Esvaziou-a no liquidificador e jogou dentro dele duas bananas
pra lá de maduras que jaziam na fruteira ao lado do botijão de gás vazio. Bebeu
dois copos da batida. Já se sentia melhor. Com as mãos unidas em concha, jogou
água no rosto marcado por uma vida errática de excessos. Pegou as chaves e
saiu.
Caminhava com dificuldade. Arrastava-se. Sentia na boca uma
mistura pastosa de banana, fumaça e álcool. Na banca do fim da rua, pegou o
jornal do dia. Ainda antes de dobrar a esquina em direção ao porto velho,
comprou dois maços de cigarro de um ambulante.
Não tinha ideia de como seria o seu dia. Não cultivava
planos. Fazia o que tinha de fazer e esperava para ver no que ia dar. Assim,
tudo ficava muito mais fácil. Sem projeções. Sem complicações desnecessárias.
Não tinha perspectivas. Vagava pelas ruas sem direção. Era
um vagabundo. Um vadio. Agia conforme seus instintos. Ia para onde eles o
levavam. Naquele dia, decidira que iria dar uma volta nos arredores do porto
velho. Gostava de lá. Gostava dos prédios históricos caindo aos pedaços, do
cheiro de peixe podre. Gostava da gente com sandálias de couro puído. As faces
vincadas pelo tempo e tostadas pelo sol litorâneo. Gostava do sal que dava a tudo um aspecto de
corroída aspereza. Aquele sal o havia forjado. Ele era assim. Oxidado pelo
tempo. Era apenas o resquício de quem um dia fora.
Sempre que precisava de uns trocados, ajudava a descarregar
algum pequeno pesqueiro que ainda insistia em vender seu trabalho de um dia
inteiro para comerciantes decadentes que sobreviviam pagando muito pouco pelo
pescado na origem e vendendo o produto abaixo do preço dos mercados das
redondezas. O serviço pagava uma mixaria,
mas o suficiente para poder comprar seus cigarros. Além disso, desviava pacotes
de sardinhas, que levava para casa e comia fritas na banha de porco que ganhava
de um amigo de infância, que, por sua vez, a desviava do açougue no qual
trabalhava.
Sustentava-se com o dinheiro ganho nas mesas de pôquer e
truco. Era bom com as cartas e ainda melhor sem elas. Blefava com singular
maestria. Além disso, tinha o dom da bravata. Provocava os adversários ao
extremo, tirava-os do sério, fazia com que eles se desconcentrassem, fazia com
que a raiva tomasse o lugar da razão. A raiva não é uma boa companheira nas
mesas de jogo. Dispersa, tira o foco, cria valentões. E, assim, na base do
blefe e da bravata, ele ganhava sua vida. De vez em quando, também ganhava
alguns socos, uma garrafada, algumas ameaças de morte, mas nada que o fizesse
achar que deveria mudar de hábito. Achava aquilo tudo muito divertido. Talvez
um dia fosse surrado até a morte, ou baleado pelas costas em uma viela escura
qualquer. Enfim, os riscos existiam, sabia disso. Mas, entre arranjar um
emprego e virar um operário padrão, e ganhar seu dinheiro jogando cartas,
bebendo whiskies baratos e galanteando garotas sem pudores, ele preferia, de
longe, a segunda opção.
Depois de um dia de bebidas em copos alheios, tragadas em
cigarros alheios e escarradas em calçadas alheias, resolvera curtir a noite na
companhia de amigos que não sabiam qual era o seu nome. O Nautilus Drink Bar
não estava muito movimentado. Por algum motivo desconhecido, o dono do lugar,
um velhote de sessenta e tantos anos, que tinha um sotaque castelhano e se
dizia chileno, mas que todos sabiam que era do Chuí mesmo, era leitor de Verne.
Sabia de cor diversas passagens de Vinte Mil Léguas Submarinas. Tinha até um
quê de Capitão Nemo, a barba comprida e espessa, os trejeitos de comandante,
nariz adunco e olhar furioso.
Recostou-se no balcão e pediu uma bebida. Fazia calor e o
pequeno lugar não tinha um ventilador sequer. As gotas de suor escorrendo pelas
costas em profusão. O cabelo sujo grudado na testa. As envelhecidas mãos por
sobre o tampo de madeira que já fora parte de um pesqueiro local. Sua cabeça
doía, seus pés ardiam de bolhas causadas pelos sapatos batidos.
O relógio ensebado que ficava sobre a chapa onde se aqueciam os pães das torradas marcava cinco para a meia noite quando ele se levantou um pouco tonto, escorando-se no balcão e nos bancos, e saiu porta afora.
Era uma noite quente aquela. Não havia nem mesmo a constante
brisa que vinha do mar e trazia junto aquele gosto de peixe seco salgado que
entrava pela garganta e entranhava no corpo. Ele estava sozinho. Caminhava a
esmo no cais abandonado. Velhos barcos adernados, canoas com água pela metade,
redes de nylon rasgadas jogadas pelo chão, cestos com escamas e tripas em
decomposição.
Sentado na beira das docas desativadas, sentia a água escura
chocar-se contra seus pés. Não pensava em nada. Sua cabeça fervilhava, mas ele
não pensava em nada. Flashes de imagens cruzavam à frente dos seus olhos.
Memórias perdidas surgiam como relâmpagos errantes. Seus pais, a velha casa em
estilo português onde crescera, o corpo de seu irmão cercado de flores, um
beijo.
Em meio ao turbilhão de sensações, tentava organizar seu
caos interior. Estava confuso. Por um instante, uma ideia passou por sua
cabeça. E se ele deixasse de existir? E se sumisse? Ou se morresse? Alguém
sentiria a sua falta? Alguém choraria? Alguém levaria flores no seu túmulo? Ou
será que dançariam sobre ele? Tentou pensar em nomes, em pessoas que, talvez,
pudessem perceber a sua ausência. Não tinha família. Nenhum amigo de verdade.
Talvez os vizinhos, mas ele nem os cumprimentava pela manhã. Alguma amante?
Não, não. A maioria delas sequer perguntava o seu nome. Quem sabe o dono na
banca da esquina? Bem possível. Não
tinha um dia em que deixava de comprar o jornal pela manhã, logo cedo, quando
voltava para casa cambaleando após mais uma noite de jogatina. Sim, o dono da
banca provavelmente notaria o seu sumiço. Estava convencido disso. Sorriu. Ele
gostava do dono da banca da esquina. O homem não fazia perguntas. Apenas pegava
as moedas e lhe entregava o jornal. Teve vezes em que nem cobrou pelo produto.
Era um cliente antigo, fiel. Normal que, um dia ou outro, as cartas não lhe
favorecessem. Essas coisas acontecem. Solitário no cais, ergueu a mão direita
e, como se segurasse uma fina taça de cristal, fez um brinde ao seu amigo, o
dono da banca de revistas. Era um bom homem aquele.
Em um instante, sentiu algo tocar seus tornozelos submersos
na água turva. Pensou ter visto a silhueta de um peixe, talvez uma sardinha
perdida. Possivelmente era uma alga, ou uma sacola de plástico. Sentiu sede.
Levantou-se e caminhou até o Mercado do Peixe, que, na verdade, não tinha nada
de mercado. Era só um lugar com umas pias e onde, nos finais de tarde,
pescadores artesanais vendiam o que tinham conseguido trazer do mar durante o
dia. Abriu a torneira e pôs a cabeça embaixo, sorvendo goles de água quente e
salobra. Um cheiro forte de pescado entrou por suas narinas e tomou conta de
seu corpo. Vomitou. Achou estranho. Aquela era a primeira vez que vomitava em
razão do cheiro de peixe. Nascera naquele lugar, crescera nele. Estava mais do
que acostumado com os odores. Agora, como um rapazote imberbe da capital que
viera visitar os avós nas férias, sentia nojo, seu estômago revirava. Estava
envergonhado. Não se reconhecia. Era um rascunho de si mesmo. Grafite sobre o papel.
Ergueu-se como pôde e começou a caminhar. Precisava se
recompor. Nem bêbado estava. Talvez tivesse sido o sanduíche de atum que comera
à tarde que lhe fizesse mal. Sabia que não era isso, mas buscava uma explicação
a todo custo, como quem busca a sorte no truco em uma rodada às cegas. Sabia
que a chance de obtê-la era mínima, mas o desespero e, ainda mais, a
desesperança, já não sussurrava ao seu ouvido como outrora. Agora, ambos
gritavam desafinadamente.
Foi quando as primeiras gotas da chuva quente de verão
explodiram em sua face que a triste ideia cruzou a sua mente pela primeira vez
naquela madrugada. Não se apegou a ela. Passou feito um raio.
Seguiu por entre as vielas estreitas calçadas com pedra. A
essa hora, restavam pelas ruas apenas os homens sem casa, as mulheres sem
sonhos. Gente que não tinha para onde ir e que não queria ficar onde todos os
outros se conformavam em estar. Gente cansada.
Os olhos caídos, as mãos nos bolsos, o cigarro pendendo do canto da
boca. Fracassados. Achava que todos eram uns fracassados. Ele não. Ele não era
um fracassado. Estava ali por escolha própria. Sempre fora um marginal. Vivia à
margem. Corria paralelamente à linha guia. Gostava disso. Gostava de se sentir
livre. Sem rédeas para lhe conter. Sabia, porém, que a liberdade cobrava seu
preço. E ele pagava com juros altos.
Lembrou-se de sua infância. Nunca tivera vida fácil. O
comportamento exemplar, as boas notas, o respeito aos professores faziam dele
um rebelde em um ambiente escolar em permanente tensão. Sentia-se sempre como
se tivesse um alvo pintado às costas. Foi assim, entre uma sessão de
espancamento gratuito e outra, entre uma fuga desesperada e uma súplica por
piedade, que ele forjou sua instável personalidade.
Era um produto do sistema. Um subproduto do sistema. O
sistema o mastigara, quando jovem, e o cuspira fora. Já não tinha mais sabor de
nada. Era o resto, a sobra.
Levava uma vida normal. Trabalhava oito horas por dia na
biblioteca na faculdade Letras da universidade local. Era um rapaz culto, um leitor
voraz. Se quisesse, poderia trabalhar como guia da biblioteca. Às vezes, até se
imaginava caminhando pelos corredores, entre as estantes altas, indicando com
as mãos algumas obras e falando sobre elas e seus autores por muitos minutos.
Sentia-se bem quando estava naquele lugar. Sentia-se protegido. Alimentava,
porém, um desejo que lhe consumia as forças. Seu coração nunca estivera dentro
daquela biblioteca. Foi aí que veio a rejeição. Uma paixão não correspondida.
Seu coração, despedaçado.
Quando não pôde suportar a dor que lhe comprimia o peito,
largou tudo. Deixou o emprego, os costumes, nunca mais fez contato com a
família. A rua passou a ser o seu escritório. Batia ponto lá diariamente.
Abandonou o apartamento que seus pais haviam lhe cedido e passou a viver em
pequenos quartos de hotéis de quinta categoria. Consigo, levava apenas algumas
peças de roupa, um par de sapatos, duas gravatas, e uma mala cheia de livros
amarelados.
Na rua, se sentia em casa. E era na rua que estava agora,
perambulando. A essa altura, já não enxergava direito as coisas ao seu redor.
Tinha os olhos embaçados. Não adiantava esfregá-los. Era como uma pasta
grudenta que teimava em não sair. Enxergar mal não era um problema para
ele. Conhecia aquela zona em detalhes. Todas as ruas, todas as avenidas, todos
os prédios em ruínas, toda a gente sem esperanças. Ainda assim, tropeçou em uma
pedra do calçamento que estava fora de lugar. Caiu. Seu corpo chocou-se no chão
com um barulho seco. Com muita dificuldade, ergueu-se. Tinha os joelhos
esfolados, as mãos arranhadas. Sangue gotejava de seu rosto. Havia perdido dois
dentes. Não sentia dor. Estava entorpecido.
Já não tinha mais dinheiro consigo. Nem uma moeda sequer.
Precisava beber. A sobriedade o perturbava. Não gostava disso. Ainda tinha
cigarros, mas a nicotina, por si só, já não lhe saciava. Necessitava sentir o
álcool em sua corrente sanguínea. Era o álcool que alimentava o fogo dentro de
si. O cigarro só o acendia.
Trôpego, seguia. Ouviu, ao longe, um som de piano. Não
conseguiu, de pronto, identificar a melodia. Estava disperso demais. Precisava
se concentrar para identificar as notas. Dava passos lentos, descoordenados. Dobrou
uma esquina e ouviu a música ainda mais alta (seria Vivaldi?). Ele sabia de
onde vinha o som. Somente um bar naquela região tinha um piano. Aproximou-se da
fachada. Encostou a testa no vidro. Pôs o jornal na cintura, como se fosse um
revólver, e, com as mãos paralelas às têmporas, olhou para dentro. O cenário
não era muito diverso do visto em todos os outros bares decadentes do porto velho.
Homens fumando charutos vagabundos, bebendo cachaça barata e cuspindo pelo
chão. Havia apenas uma mulher no recinto. Cabelos longos e negros feito a
madrugada lá fora. Senta, às sós, em uma mesa, ela ouvia a música e bebericava
um drink que ele, da rua, não conseguia identificar qual era. Possivelmente,
alguma coisa com vodka. Talvez um Martini.
O pianista tocava para ela. Podia
sentir isso. Era nela que ele estava concentrado. A música (sim, Vivaldi e suas quatro
estações!) ecoava nas pedras portuguesas dos calçamentos. Ele estava
hipnotizado. As mãos do pianista moviam-se freneticamente durante o Verão. A
tensão entre o artista e a mulher de pernas longas e batom vermelho faiscante
era crescente. Do lado fora, ele não conseguia se mover. Seu cérebro dizia para
entrar, puxar uma cadeira, acender um cigarro. Seu corpo dizia que não, que
deveria ficar exatamente onde estava, que sua presença naquele sistema iria
desequilibrá-lo, que ele iria romper com a eletricidade do momento. O que será
que pensava a mulher? O que fazia ali àquela hora? Desejava o pianista? Sofria?
Amava? Quando a música cessou, também
findou o encanto. O pianista esvaziou seu copo de whisky, se levantou e foi ao
banheiro. A mulher virou o corpo em direção ao barman e pediu mais uma dose de
sua bebida. Ele saiu de seu torpor, girou nos calcanhares e retomou o seu
caminho.
Aquela cena o havia afetado de alguma forma. Pela primeira
vez, ele percebia beleza naquele ambiente tão hostil. Talvez seu olhar tivesse
mudado. Ele não tinha certeza, mas sentia-se diferente.
Foi aí que, pela segunda vez, a triste ideia lhe tomou os
pensamentos de assalto. Agora, porém, não foi um flash de luz. Não foi um
arrepio. Foi arrebatador. Foi fluxo constante.
Caminhou com obstinada determinação. Já não tinha as mãos
trêmulas. Já não tinha os passos arrastados. Era o mesmo, mas já era outro. De
um modo que ele não entendia como, sabia muito bem o que tinha de fazer. A
neblina se dissipara. Tudo estava tão límpido, cristalino.
Quando deu por si, corria. Sobre seus longos e lisos cabelos
castanhos, as gotas da chuva caiam, escorrendo pelo rosto magro. Sua visão
clareara. Os olhos injetados.
Dando saltos, dobrando esquinas. Via sua vida refletida em
cada poça d’água. Um mosaico de imagens multicoloridas. Cada memória, cada
lembrança. Estavam todas lá. Uma a uma, surgiam como furacões. O rosto dela.
Palavras ao alcance das mãos. Podia tocá-las se quisesse. Mas não queira.
Preferia senti-las. Ondas de emoções. Absorvia-as. As mãos dela. Retratos
jogados pela rua, feito peças de um quebra-cabeça que teimam em não se
encaixar. Imagem sem sentido. Música para camaleões. Seus pais na varanda dando
adeus. Nenhum amigo para se despedir. A voz dela. Contrastes. Campos de flores
à beira da estrada. Caminho de pétalas. Desenhos de nuvens no céu. Coelhos,
dragões, unicórnios e linces. Vida além da vida. Doce saudade de um passado
imaginário. O beijo dela.
Adentrou o prédio e se atirou sobre a porta. Não havia tempo
para chaves. Abriu as janelas. A luz da lua. Sombras e silhuetas. Na parede, o
velho relógio de ponteiros gritava. Ele não ouvia nada além de sua ofegante
respiração. Caminhou em direção ao quarto. Abriu a gaveta onde guardava meias e cuecas.
Do fundo, retirou uma pistola. De volta à sala, deixou o corpo cair sobre a
poltrona. Estava exausto. Permaneceu ali, imóvel. A ideia fixa. A ideia fixa.
Esticou o braço direito e pegou a caneta que usava para
conferir os bilhetes de loteria. A chuva aumentou, já era um temporal. Pedras de gelo chocavam-se colericamente
contra a janela. Baixou os olhos. O relógio ainda gritava.
No jornal em suas mãos, quatro letras aleatoriamente
dispostas em uma página estavam circuladas com fúria. Um nome. Sobre elas,
escorriam gotas de sangue quente, de um vermelho vivo.
Tudo seria tão mais fácil se pressionasse o cano da arma
contra a têmpora e puxasse o gatilho.