domingo, 22 de março de 2015

Aquela bala que levava o seu nome teria de lhe encontrar



Ele acordou sobressaltado. Sabia exatamente o dia, a hora e como iria morrer. Não sabia ao certo se havia sido um sonho, se havia viajado no tempo, ou qualquer outra coisa. Apenas sabia. Iria morrer em um dia 12, às 18h39min, de um uma bala perdida que atravessou seu peito e rasgou seu coração.

Descalço, caminhou trôpego, esfregando os olhos, até o banheiro. Abaixou a cabeça junto à pia e borrifou água corrente. Estava desperto. Na cozinha, encheu uma caneca com café forte e fumegante. Abriu a porta que dava para a sacada do apartamento e sentou-se do lado de fora na cadeira de palha que comprara no brique por um preço bem em conta.

Enquanto bebia o café em goles rápidos, tentava buscar em sua cabeça detalhes de sua perturbadora experiência. Não havia um lugar. Não conseguia visualizar um local específico. Era uma via movimentada. Muitos carros, muita gente. Prédios muito altos e comércio por todo o lado. Não recorda de ter visto árvores. Nem pássaros. Barulhos diversos. Motores, buzinas, betoneiras, gente gritando em microfones.

O dia começava a ganhar vida lá fora. Do alto – morava no quinto andar – podia ver os estudantes com suas mochilas correndo para não perder o ônibus, os trabalhadores das fábricas do Norte da cidade com suas bolsas a tiracolo, os homens dos escritórios com o jornal sob o braço e o smartphone em uma das mãos, os vigilantes voltando para casa, sonolentos, depois de mais uma madrugada de tediosa atenção.

Olhou para a estante da sala e viu, de longe, o calendário. Era dia 9. Poderia ser dentro de três dias. Três dias. Andando na rua, um estampido seco, o impacto no peito, um grito de horror, sangue nas mãos, caído na calçada, dor lancinante, a visão turva, as forças se esvaindo, o silêncio eterno.

Jogou a caneca na pia cheia de louça suja e foi tomar banho antes de ir para o trabalho. Era um vendedor de seguros de meia idade. Passava o dia todo batendo perna nas ruas, oferendo apólices para qualquer pessoa que encontrasse e na qual enxergasse um potencial comprador. Ele não era bom naquele trabalho. Não havia nascido para fazer aquilo. Tinha a fala arrastada e em tom baixo. Não convencia ninguém de que assinar um contrato de seguro de vida era algo imprescindível. Sendo assim, era um fracasso como vendedor.

Não desistia, porém. De certa forma, acordar cedo, vestir uma camisa, colocar uma gravata, uma calça social, calçar sapatos desconfortáveis que lhe machucavam os calcanhares e pegar uma maleta cheia de papéis, era o que lhe sustentava. A companhia de seguros lhe fornecia tíquetes de alimentação para o almoço e um lanche da tarde. Além disso, ganhava um salário fixo que, mesmo sendo uma mixaria, era o suficiente para pagar as contas. Não pagava aluguel. O apartamento havia sido deixado no testamento por sua avó como herança para ele, o único neto.

Quando pôs os pés na calçada da rua em frente ao prédio, sentiu-se vulnerável. Sabia que não seria ali. Morava em uma rua transversal calma, movimento só de moradores, apenas uma padaria como comércio, prédios antigos e com poucos andares. Se quisesse fazer alguma venda, entretanto, teria de ir para as vias mais agitadas da cidade, com muita circulação de pessoas. Respirou fundo e iniciou a caminhada até o ponto de ônibus. Definitivamente não seria ali e não seria naquele dia.

Acordou cedo no dia 12. Na verdade, dormira bem pouco. Estava ansioso. Tinha medo. Ainda não havia amanhecido. Caminhou apoiando-se nas paredes até a cozinha. Abriu a geladeira e encheu um copo com água gelada. Tinha a boca seca. Foi à janela e percebeu que chovia. Forte. Chovia forte. De súbito, percebeu que, no seu sonho ou digressão, seja lá o que tenha sido aquilo, não chovia quando ele era alvejado no peito. Ao contrário, um grande sol raiava em um céu de um azul brilhante. Não haveria de ser naquele dia, portanto. Ele teria, ao menos, mais um mês de vida. Sorriu. Um mês não é muita coisa, mas é melhor do que apenas algumas horas.

O mês se passou. Ele trabalhara bastante, caminhara muito, muito mesmo. Seus joelhos doíam e seus pés o faziam gritar de dor ao final dos dias. Havia feito cinco vendas. Cinco vendas em um mês. Duas delas, ficou sabendo depois, foram canceladas no mesmo dia. A pessoa se empolgou, achou interessante e assinou. Chegou em casa, pensou melhor, conversou com a família, e voltou atrás. Acontecia sempre. Para ele não fazia muita diferença. Recebia sua comissão independentemente de o cliente desistir depois de assinar ou não. Fizera seu papel. Convencera a pessoa a comprar. Se o produto não era bom o suficiente para manter o cliente, a culpa não era dele.

Nos trinta dias seguintes, viveu como se estivesse em uma contagem regressiva. Custava a pegar no sono. Ficava pensando em sua sina. Por quê? Era um bom sujeito. Honesto, trabalhador, educado com as pessoas. O que fizera para merecer essa maldição? Não conseguia recordar de nada. Sequer matava os insetos que entravam voando pela janela do apartamento. Os recolhia de algum modo e os colocava para fora. Era um bom sujeito, sem dúvida. Por que não viu o mês? Por que não viu o ano? Seria bem mais fácil aceitar sua sina se assim tivesse sido. Mas não foi. Agora, sabia, tinha absoluta certeza, de que morreria em um dia 12, às 18h39min, de um balaço no peito. Eram 12 as possibilidades de morrer no ano, em qualquer um dos dias 12, em qualquer uma das 18h39min, hora que, percebeu depois, somando-se os algarismos, resultava no número 21, que é 12 ao contrário. Sim, estava ficando maluco.

Com a vida se equilibrando em uma tênue linha invisível, ele passava seus dias como se estivesse, emocionalmente, em uma montanha russa. Alternava momentos de euforia incontida, com instantes de prostração intensa. Comia pouco e rapidamente, evitava dormir, passava as noites em claro, zanzando pelas ruas, sentado junto a balcões de bares, bebendo em festas com gente que não conhecia. Não queria perder um segundo sequer de sua vida. Não podia se dar ao luxo de perder um segundo sequer. Corria contra o relógio. Não podia perder, não antes da linha de chegada. Não iria se entregar. Estava decidido, não iria se entregar. Aquela bala que levava o seu nome teria de lhe encontrar. Não seria fácil. Não iria deixar que fosse fácil. Esgueirava-se por entre becos escuros, passos rápidos e precisos. Os olhos bem abertos, atentos, feito uma zebra na savana africana.

Não tinha mais medo. Deixou o medo em uma das esquinas nas quais dobrara. Iria lutar contra um destino que estava escrito, mas que poderia muito bem ser editado. Reprogramou sua vida. Faria todos os caminhos e visitas pelas principais e mais movimentadas vias em todos os dias que não fosse o dia 12. No dia 12, caminharia por ruas tranquilas, por dentro dos bairros, descobriria uma cidade que não conhecia. Não importa se não venderia nenhuma apólice de seguro. Sua vida valia mais do que uma comissão de 10%. Ao menos, ele achava isso.

Perdia horas e horas dentro de ônibus nos quais não precisava ter embarcado, somente para evitar passar pelas zonas comerciais. Evitava tudo o que envolvesse os números 12 e 21. Depois de um tempo, passou também a fugir do 3, que era a soma dos algarismos de suas dezenas do azar.

Viu paixões se desfazerem, viu a morte de amores que ainda não haviam nascido. Viu velhos amigos se afastarem, viu novas amizades se esvaírem. Viu fantasmas andando ao seu lado. Nunca mais foi feliz.

Assim, feito um escravo de um sonho, viu os anos escorrerem por entre seus dedos magros. O tempo foi cruel com ele. Passou lentamente, arrancando, em vão, cada parte de uma vida à espera de um fim.

Tinha 93 anos quando seu coração parou de bater em razão de um infarto. Estava sozinho.


Morreu cansado de esperar por uma morte que não veio.