Em vão, ele tentava se desvencilhar de uma relação que o
prendia ao nada. Não era amor, era frágil. Tampouco paixão, não era elétrico.
Sentia-se se movendo em um terreno arenoso. Dispendia grande esforço a cada
passo, mas não saía do lugar. Há meses, vivia em um constante looping. Tinha
necessidade de avançar, de seguir em frente, mas era o personagem de uma
história que não viveu.
Tentava não pensar mais nela. Não havia motivos para pensar nela. Não
mais do que pensava em qualquer outra pessoa que conhecia. Seu cérebro lhe
pregava uma peça. Era o Gato de Schrödinger. Ao mesmo tempo, estava e não
estava em um relacionamento.
Via-se preso em uma teia de fatos que não haviam acontecido e sensações
que não havia sentido. Era um fantoche controlado por si mesmo. Com frequência,
se pegava pensando de quem era a culpa. Era sua, sem dúvidas. Iludira-se com
uma promessa que nunca fora feita.
Caçava nuvens como se fossem borboletas. Tocava-a, mas não a
sentia em suas mãos. Estava perturbado. Todos em seu círculo de convívio já
haviam percebido. Tentava disfarçar, buscava um refúgio em piadas que não lhe
divertiam.
Ela o enganava. Aproximava-se para controlá-lo, mas
conservava uma distância segura para manter viva a ilusão de que o queria,
mesmo sem tê-lo desejado uma vez sequer. E ele vivia essa ilusão. Sabia que
estava sendo usado, mas não conseguia evitar fazer parte daquele mise em scène. Era o jogo e o jogador.
Vítima de si mesmo e da vontade de ser mais do que apenas um indivíduo. Queria
fazer parte de algo maior. Queria ser parte da vida de outra pessoa.
Estava confuso. Intercalava momentos de profunda
racionalização com instantes de emocionalismo juvenil. Dizia para si mesmo que
era preciso ignorar seus sentimentos, mas não ouvia a própria voz. Além disso,
seu corpo teimava em somatizar a ilusão que seu cérebro criava.
Não era uma pessoa com uma vida social muito ativa. Tinha
poucos amigos. Passava os seus dias trabalhando, lendo, escrevendo e
dormindo. Depois que a conheceu, porém,
produzia pouco no trabalho, lia, mas não prestava atenção nas palavras,
escrevia, mas não dizia nada.
O sono era um caso à parte. Já não se lembrava de quando
fora a última vez em que dormira uma noite inteira sem sonhar com ela. Acordava
sempre no meio da madrugada e a história terminava sem um final. Levantava da
cama, caminhava pela casa, saía porta afora. A brisa, a escuridão e o silêncio - quebrado somente pelo ladrar dos cães ao longe - o acalmavam. Tentava esvaziar a
cabeça, se livrar de todos os pensamentos. Buscava um estado anterior ao da
consciência. Queria encontrar-se com o nada. Fracassava todas as noites.
Tentou evitá-la. Seu envolvimento com ela, porém, estava
além da presença física. Era mais do que físico. Era metafísico. Não sabia ao
certo se o que o atraia era ela, em sua essência, carne e presença, ou se era o
que ela representava. Nem mesmo sabia o que ela representava. Era mais o efeito que ela produzia nele do que
a existência dela. Era mais o saber que ela existia do que o fato de ela
realmente existir.
E ela existia mais dentro dele do que fora. Ela se tornara
parte dele. Estava com ele, ia para onde ele ia. Ela se tornara mais real nele
do que em si mesma. Com o passar do tempo, ele a desfizera e a reconstruíra em
sua experiência sensorial. Ela era única para ele.
Estava, assim, de certa forma, feliz. Ela não seria de mais
ninguém. Mesmo nos braços de outros, mesmo revivendo inacabados amores antigos,
ou descobrindo excitantes novas paixões, ela seria somente dele. Aquela a quem
ele criara em seu íntimo, não seria de mais ninguém.
Deste modo, tendo conseguido se ver livre da existência dela
fora de si mesmo, ele passou a ser indiferente à sua presença física. Ela já
não o tirava dos trilhos. O atraía assim como qualquer outra bela e inteligente
mulher o atraía. Conversavam, divertiam-se juntos. Ele ainda a desejava. Àquela
a quem via quase que diariamente. Quem estava em seus pensamentos, porém, era a
outra.
Por muitos e muitos meses, essa dualidade o deixou sereno.
Não havia mais conflito. Não tinha com o que se preocupar. As aparências
estavam mantidas. O segredo, protegido.
Não era mais o olhar, era a representação do olhar recriado
em sua imaginação. Sabia que não era real, que tudo era um produto de sua mente.
Isso, entretanto, não impedia que se sentisse em meio a um conflito que, o
mesmo tempo, lhe confundia os sentidos e lhe impelia a buscar uma resposta que
sabia que não queria encontrar.
Aos poucos, foi perdendo o controle. Já não conseguia mais
distinguir uma da outra. Eram tão diferentes, mas eram a mesma. Estava tudo
embaralhado, peças de um quebra-cabeça girando sob um chão de imagens ora
nítidas e cristalinas, ora escuras e opacas. A realidade não era mais tão real.
A fantasia se materializava diante dos seus olhos incrédulos.
Flertava com a loucura. Andava de mãos dadas com o
medo.
Teria de matá-la. Era isso, teria de matá-la. Já não
conseguia mais viver com ela. Já não conseguia mais viver sem ela. Teria de
matá-la. Sim, teria de matá-la.
Mas a quem teria de matar? A sua adorável invenção
imaginária, ou aquela mortal de carne e ossos que o enfeitiçara? A criatura ou
a criação? As duas, quem sabe?
Não era um assassino. Não mataria uma pessoa real. Gostava
dela. Não poderia matá-la. Não faria isso. Estava certo, entretanto, de que
também não seria capaz de dar fim à mulher que moldara à sua própria maneira.
Ela era exclusiva, uma obra de sua ilimitada capacidade criativa. Orgulhava-se
dela. Não a apagaria de sua mente.
Chovia muito na noite em que ele fez o que sabia que teria
de fazer. De uma forma ou de outra, teria de fazer. Já era madrugada e ele
caminhava sozinho pela rua. Havia perdido a noção do tempo. Não levava um
relógio consigo. Não se importava com isso. Horas, minutos, segundos. Nada disso
importava. Queria se concentrar. Precisava buscar dentro de si uma resposta. Procurou
em todos os esconderijos de sua mente. Reencontrou-se consigo mesmo no passado
e percebeu que sempre fora um bom homem. Dia após dia, ano após ano, da sua
infância àquela noite chuvosa, revisitou a sua vida. Compreendeu, então, que fora
uma ilha. Fora tudo aquilo que as pessoas que cruzaram o seu caminho faziam
parecer que era o que admiravam em alguém, mas que, na realidade, era o que
desprezavam. Não era um canalha aproveitador. Era um bom homem. Este havia sido
o seu erro.
Aquela que acreditava ser sua principal qualidade, a crença
fiel no seu semelhante, havia lhe traído.
Eis, então, que, por um instante, teve uma epifania. A
tempestade havia passado, as nuvens se dissiparam. Um céu de um azul inocente
cobria todo o horizonte. Aos seus pés, campos de lírios forravam a terra
fértil.
Era isso. Definitivamente, faria o que sabia que tinha de
fazer.
Saiu em disparada, pulando poças. Seria naquela mesma noite.
Teria de ser naquela mesma noite. Parado junto a um prédio, olhou por não mais
do que um instante para o bloco de concreto que se erguia à sua frente. Nunca
havia estado ali antes, mas sabia exatamente onde a encontrar. A decisão estava
tomada. Não iria voltar atrás. Respirou o mais fundo que pôde. Estalou os dedos
das mãos e seguiu.
Matou-a.
Uma brisa fresca tirou a sua franja dos olhos. O temporal
cessara. O dia estava prestes a amanhecer. Estava leve.
Quando acordou pela manhã, o primeiro pensamento que lhe
veio à cabeça foi uma dúvida. Não sabia distinguir de qual das duas havia
tirado a vida. A real ou a imaginária. Talvez tivesse eliminado ambas. Isso não
lhe preocupou, porém. Tanto fazia. Estava, enfim, livre. Estava livre da
mentira que o corroía, livre da mentira que sugava suas forças e o impedia de
ir em frente. A havia matado e estava bem consigo mesmo. Tão doce era o sabor
da liberdade. Lambuzou-se com o mel da redenção e sentiu nas mãos o apaixonante
toque da verdade.
Carregou em seu íntimo, porém, o doloroso e pesado fardo
da dúvida por todos os seus anos de vida restantes. Quando, no leito de morte,
estava prestes a expirar, ouviu uma voz manipuladora e escorregadia, uma cruel
e insensível voz aguda, sussurrar ao seu ouvido.
“Sempre foste meu. Nunca fui tua.”
Em sábio silêncio, sorriu um sorriso ácido e pensou consigo
mesmo:
“Pobre criança, tão rasa é a consciência dos que acreditam na
reciprocidade do amor.”