“O amor é uma falácia”, ele disse antes de emborcar mais um
copo de cerveja.
“O quê? O que estás dizendo? Como assim, uma falácia?”, ela
retrucou com um evidente espanto na voz e na expressão do rosto.
“É uma falácia, ora. Uma mentira. O amor é uma mentira. Das
grandes. Uma mentira das grandes. É isso que é o amor, uma mentira das
grandes”, prosseguiu ele, erguendo a mão para chamar a atenção do garçom.
“Estás bêbado. Isso é o álcool falando por ti. Vou
desconsiderar”, disse ela, com um certo ar de desdém.
“Não estou bêbado. Ou melhor, posso até estar, mas não é o
álcool falando por mim. Sou eu mesmo falando. E essa é a verdade. Essa é a
verdade que ninguém quer encarar. Todos têm medo. O amor dá esperança. É isso.
O amor, ou melhor, a idealização do amor dá esperança para as pessoas. Ninguém
sabe o que é amar de verdade. Ninguém nunca amou de verdade. E, se não é de
verdade, não é amor. Por isso, o amor é uma falácia”, sentenciou ele, olhando
com alguma irritação para o garçom que parecia ignorá-lo de propósito.
“Discordo. Discordo mesmo. Não vamos brigar por isso, somos
amigos, mas não posso concordar contigo. Isso é besteira”, ela falou, tentando
diminuir a tensão entre os dois.
“Não é besteira. Andei pensando muito nisso. Muito mesmo.
Aliás, acho que só tenho pensado nisso ultimamente. Definitivamente, não é
besteira. Todos os relacionamentos são essencialmente egoístas. Todos, todos.
E, se é egoísta, não é amor”, replicou ele com um tom de sabedoria alcoólica
ímpar.
Ela balançava a cabeça em negação, e tentava encontrar algum
argumento que o colocasse na defensiva. O que não seria fácil. Ele era bem
esperto e conseguia expressar e defender suas ideias de modo bem convincente.
Mesmo sob o efeito do álcool.
“Sei lá, acho esse pensamento tão pessimista. Ou melhor,
acho reducionista. Faz parecer que o amor é uma coisa simples. E não é simples.
Amor envolve pessoas e tudo que envolve pessoas deixa de ser simples. Pessoas
são complicadas”, disse ela tentando colocar a questão sob o ponto de vista da
subjetividade, o que daria por encerrada a conversa. Mas não deu.
“Eu sei que as pessoas são complicadas. E umas são bem mais
complicadas do que as outras. Eu sei disso. Tu achas que eu não sei disso? Pois
eu sei. Sei muito bem. Eu sei que... eu sei... mas onde será que anda esse
garçom?... por isso que não gosto desses bares modernos, pasteurizados, com
garçons uniformizados, cobram caro pra caramba, mas o serviço é péssimo... bom...
eu... ahhh... ah, sim, eu sei que as pessoas são complicadas. Mas não é
reducionismo meu. Não, não, não... não é reducionismo”, ele falou, enquanto
espiava de canto de olho o garçom servir a outras mesas.
“Acho que é reducionismo sim. Transformar algo tão complexo,
cheio de nuances, em uma coisa tão simples. É reducionismo”, enfatizou ela, com
a segurança de quem já havia lido e relido Schopenhauer e suas estratégias para
vencer um debate.
Ele suspirou após ver que o homem de avental e crachá de
identificação o havia esquecido mais uma vez, levou algumas batatas fritas com
queijo à boca, mastigou com calma e, por fim, reiniciou sua explanação.
“As pessoas se relacionam para satisfazerem a si mesmas.
Satisfazerem seus desejos, suas necessidades. Ninguém está verdadeiramente
preocupado com o outro. Não há altruísmo. É disso que eu falo. Não há
altruísmo. Tu me entendes agora? Não há altruísmo”, explicou ele, tentando
convencê-la de sua teoria.
O rosto dela expressava uma incompreensão e, mais do que
isso, uma incerteza. Claramente, ele havia conseguido balançá-la.
“Quando tu inicias um relacionamento com alguém, o faz
porque isso faz bem pra ti. Tu te sentes bem com esse relacionamento. E, de
modo geral, isso basta. Ninguém fica com uma pessoa porque isso faz bem para
essa pessoa. Fica porque faz bem para si mesmo. Aí reside o egoísmo! Todo mundo
se coloca como figura central na relação. Em um envolvimento sadio, não há
figura central. Mas isso é impossível. Sempre buscamos satisfação pessoal. Por
isso que eu digo que o amor é uma falácia. É um fato”, sentenciou ele com certo
orgulho intelectual.
“Tu falas da boca pra
fora. Nem tu acreditas nisso. Sempre foste um romântico. Eu me lembro, lembro
muito bem. Quando tu te apaixonavas, ficava insuportável. Sério, ficava mesmo.
Era difícil te aguentar. Eu sempre aguentei, pois somos amigos de infância, mas
era bem difícil”, falou a moça da boa memória e grande sinceridade.
“Aí está! É verdade! A mais pura verdade. Eu era muito
romântico. Era mesmo. Acho até que ainda sou. Mas romantismo e amor são coisas
bem diferentes. Muito diferentes. Amor em uma relação pressupõe duas pessoas.
Romantismo é algo individual. Ninguém precisa de outra pessoa para ser
romântico. Ninguém é romântico por outra pessoa. Se é romântico e ponto. Eu sou
romântico. Vou ser sempre romântico. É uma característica minha. Não acho que
posso mudar isso”, replicou o homem que escrevia acrósticos para suas primeiras
paixões.
“Se tu és romântico, acreditas no amor”, alfinetou ela,
interrompendo-o.
“Nada a ver, nada a ver. Eu sei que isso parece ter sentido,
realmente parece, é o senso comum, mas é uma visão míope da coisa. Eu já tive
sentimentos muito fortes por outras pessoas sim. Tu sabes bem. Eu sempre te
contei tudo. Sabes mais da minha vida amorosa do que eu mesmo. Eu sou romântico
porque sou um idealista. Sacaste? Eu idealizo tudo e as relações não são
exceção. É por isso, aliás, que estou solteiro há tanto tempo. As relações,
namoros, casamentos, são um teatro. Cada um interpreta o papel que acha que
deve interpretar para que as cortinas não se fechem, para que a peça não
termine, para que continue suprindo suas necessidade sociais, sexuais,
materiais, para que tudo tenha alguma coerência, para que todos ao redor vejam
como aquela relação é bonita, como são belos juntos, como se gostam”, explicou
ele, buscando referências nas artes, uma paixão dela, para tentar convencê-la
de uma vez por todas.
“Quer dizer que achas que todo namoro, todo casamento, é uma
relação de fachada? Pra inglês ver?”, ela questionou, com uma expressão de
deboche na face.
“Basicamente, isso. Eu não definiria melhor.“
“Que idiotice.”
“A prova de que todas as relações são intrinsicamente
egoístas é o fato de que ninguém se relaciona com alguém pelo qual não tem
interesse físico. A pessoa gosta de mim, quer ficar comigo, eu acho ela demais,
uma companhia perfeita, mas, se ela não me atrai sexualmente, nada irá
acontecer entre nós. As pessoas pensam em si mesmas em toda relação. O outro, o
companheiro, é um meio para um fim. Satisfazer a si próprio”, disse ele com um
tom de incisiva certeza na voz.
“Mas é claro que a gente só vai ficar com alguém que nós
atrai....”
“É isso!! O sexo. É isso. Tudo se resume ao sexo. Uma pessoa
pode ser inteligente, educada, culta, elegante, divertida, ter todas as qualidades
que fazem dela um bom indivíduo, mas, se não atrair sexualmente, não serve.
Acho que um pouco do nosso eu primitivo influi nessa questão, mas ainda não sei
bem até que ponto. Preciso pensar mais sobre isso”, admitiu ele com alguma
humildade.
“Não sei... até que faz sentido, mas eu tenho dificuldades
em..., sei lá, em aceitar essa ideia. Porque, se for assim mesmo, as coisas
perdem o encanto, sabe? Não existe mais magia. É tudo preto e branco. Entende?
Não tem vermelho, azul, amarelo, lilás. É tudo tão sem graça sem a magia”,
lamentou ela enquanto agradecia com um menear de cabeça a garçonete que,
finalmente, tinha lhes trazido mais cerveja.
“E é por isso que, mesmo não havendo magia, as pessoas
insistem em criá-la. A gente vive em um uma realidade que criamos para que não
percebamos que o sentido da nossa vida se resume a sobreviver. Em suma, é isso.
A garantia de um parceiro sexual e de alguém para cuidar de você quando estiver
velho. É nisso que consistem os relacionamentos”, reafirmou ele, percebendo que
ela começava a concordar com o que dizia.
“É... que triste pensar nisso. Se imaginar envelhecendo
sozinho não é legal mesmo. E tenho de concordar contigo sobre o sexo. Eu nunca
me envolvi com alguém que não me atraísse fisicamente. Mas é algo natural, né?
A gente não fica pensando nessas coisas antes de iniciar um namoro. Eu não
penso, nunca pensei. Simplesmente aconteceu. Então, não agimos assim, dessa
forma pragmática, de má fé. Só agimos.”
“Sim, sim. Não há má fé. É o nosso instinto sobrepujando
nosso ser social. Amor de verdade, amor puro, sem interesses pessoais
envolvidos, sem desejos, sem necessidade de reciprocidade, esse amor que todo
mundo diz sentir quando está namorando, ou quando é recém-casado, só existe de
pais para filhos. Ou na velhice, quando a beleza física se esvaiu com o tempo.
Entre duas pessoas jovens sem relações de sangue, não existe amor. Existe
instinto e interesses travestidos. É uma verdade dura de ser dita, mas é uma
verdade”, conclui ele, com a triste satisfação de ter feito mais uma pessoa
enxergar o mundo pelos seus olhos desiludidos.
Passava das duas horas da madrugada quando eles se
levantaram, deixaram o dinheiro da conta sobre a mesa – sem gorjeta para o
garçom – e se foram, caminhando pela noite adentro. O motel ficava a três
quadras do bar. Não precisavam pegar um táxi.