segunda-feira, 15 de junho de 2015

Para que as cortinas não se fechem, para que a peça não termine




“O amor é uma falácia”, ele disse antes de emborcar mais um copo de cerveja.

“O quê? O que estás dizendo? Como assim, uma falácia?”, ela retrucou com um evidente espanto na voz e na expressão do rosto.

“É uma falácia, ora. Uma mentira. O amor é uma mentira. Das grandes. Uma mentira das grandes. É isso que é o amor, uma mentira das grandes”, prosseguiu ele, erguendo a mão para chamar a atenção do garçom.

“Estás bêbado. Isso é o álcool falando por ti. Vou desconsiderar”, disse ela, com um certo ar de desdém.

“Não estou bêbado. Ou melhor, posso até estar, mas não é o álcool falando por mim. Sou eu mesmo falando. E essa é a verdade. Essa é a verdade que ninguém quer encarar. Todos têm medo. O amor dá esperança. É isso. O amor, ou melhor, a idealização do amor dá esperança para as pessoas. Ninguém sabe o que é amar de verdade. Ninguém nunca amou de verdade. E, se não é de verdade, não é amor. Por isso, o amor é uma falácia”, sentenciou ele, olhando com alguma irritação para o garçom que parecia ignorá-lo de propósito.

“Discordo. Discordo mesmo. Não vamos brigar por isso, somos amigos, mas não posso concordar contigo. Isso é besteira”, ela falou, tentando diminuir a tensão entre os dois.

“Não é besteira. Andei pensando muito nisso. Muito mesmo. Aliás, acho que só tenho pensado nisso ultimamente. Definitivamente, não é besteira. Todos os relacionamentos são essencialmente egoístas. Todos, todos. E, se é egoísta, não é amor”, replicou ele com um tom de sabedoria alcoólica ímpar.

Ela balançava a cabeça em negação, e tentava encontrar algum argumento que o colocasse na defensiva. O que não seria fácil. Ele era bem esperto e conseguia expressar e defender suas ideias de modo bem convincente. Mesmo sob o efeito do álcool.

“Sei lá, acho esse pensamento tão pessimista. Ou melhor, acho reducionista. Faz parecer que o amor é uma coisa simples. E não é simples. Amor envolve pessoas e tudo que envolve pessoas deixa de ser simples. Pessoas são complicadas”, disse ela tentando colocar a questão sob o ponto de vista da subjetividade, o que daria por encerrada a conversa. Mas não deu.

“Eu sei que as pessoas são complicadas. E umas são bem mais complicadas do que as outras. Eu sei disso. Tu achas que eu não sei disso? Pois eu sei. Sei muito bem. Eu sei que... eu sei... mas onde será que anda esse garçom?... por isso que não gosto desses bares modernos, pasteurizados, com garçons uniformizados, cobram caro pra caramba, mas o serviço é péssimo... bom... eu... ahhh... ah, sim, eu sei que as pessoas são complicadas. Mas não é reducionismo meu. Não, não, não... não é reducionismo”, ele falou, enquanto espiava de canto de olho o garçom servir a outras mesas.

“Acho que é reducionismo sim. Transformar algo tão complexo, cheio de nuances, em uma coisa tão simples. É reducionismo”, enfatizou ela, com a segurança de quem já havia lido e relido Schopenhauer e suas estratégias para vencer um debate.

Ele suspirou após ver que o homem de avental e crachá de identificação o havia esquecido mais uma vez, levou algumas batatas fritas com queijo à boca, mastigou com calma e, por fim, reiniciou sua explanação.

“As pessoas se relacionam para satisfazerem a si mesmas. Satisfazerem seus desejos, suas necessidades. Ninguém está verdadeiramente preocupado com o outro. Não há altruísmo. É disso que eu falo. Não há altruísmo. Tu me entendes agora? Não há altruísmo”, explicou ele, tentando convencê-la de sua teoria.

O rosto dela expressava uma incompreensão e, mais do que isso, uma incerteza. Claramente, ele havia conseguido balançá-la.

“Quando tu inicias um relacionamento com alguém, o faz porque isso faz bem pra ti. Tu te sentes bem com esse relacionamento. E, de modo geral, isso basta. Ninguém fica com uma pessoa porque isso faz bem para essa pessoa. Fica porque faz bem para si mesmo. Aí reside o egoísmo! Todo mundo se coloca como figura central na relação. Em um envolvimento sadio, não há figura central. Mas isso é impossível. Sempre buscamos satisfação pessoal. Por isso que eu digo que o amor é uma falácia. É um fato”, sentenciou ele com certo orgulho intelectual.

 “Tu falas da boca pra fora. Nem tu acreditas nisso. Sempre foste um romântico. Eu me lembro, lembro muito bem. Quando tu te apaixonavas, ficava insuportável. Sério, ficava mesmo. Era difícil te aguentar. Eu sempre aguentei, pois somos amigos de infância, mas era bem difícil”, falou a moça da boa memória e grande sinceridade.

“Aí está! É verdade! A mais pura verdade. Eu era muito romântico. Era mesmo. Acho até que ainda sou. Mas romantismo e amor são coisas bem diferentes. Muito diferentes. Amor em uma relação pressupõe duas pessoas. Romantismo é algo individual. Ninguém precisa de outra pessoa para ser romântico. Ninguém é romântico por outra pessoa. Se é romântico e ponto. Eu sou romântico. Vou ser sempre romântico. É uma característica minha. Não acho que posso mudar isso”, replicou o homem que escrevia acrósticos para suas primeiras paixões.

“Se tu és romântico, acreditas no amor”, alfinetou ela, interrompendo-o.

“Nada a ver, nada a ver. Eu sei que isso parece ter sentido, realmente parece, é o senso comum, mas é uma visão míope da coisa. Eu já tive sentimentos muito fortes por outras pessoas sim. Tu sabes bem. Eu sempre te contei tudo. Sabes mais da minha vida amorosa do que eu mesmo. Eu sou romântico porque sou um idealista. Sacaste? Eu idealizo tudo e as relações não são exceção. É por isso, aliás, que estou solteiro há tanto tempo. As relações, namoros, casamentos, são um teatro. Cada um interpreta o papel que acha que deve interpretar para que as cortinas não se fechem, para que a peça não termine, para que continue suprindo suas necessidade sociais, sexuais, materiais, para que tudo tenha alguma coerência, para que todos ao redor vejam como aquela relação é bonita, como são belos juntos, como se gostam”, explicou ele, buscando referências nas artes, uma paixão dela, para tentar convencê-la de uma vez por todas.

“Quer dizer que achas que todo namoro, todo casamento, é uma relação de fachada? Pra inglês ver?”, ela questionou, com uma expressão de deboche na face.

“Basicamente, isso. Eu não definiria melhor.“

“Que idiotice.”

“A prova de que todas as relações são intrinsicamente egoístas é o fato de que ninguém se relaciona com alguém pelo qual não tem interesse físico. A pessoa gosta de mim, quer ficar comigo, eu acho ela demais, uma companhia perfeita, mas, se ela não me atrai sexualmente, nada irá acontecer entre nós. As pessoas pensam em si mesmas em toda relação. O outro, o companheiro, é um meio para um fim. Satisfazer a si próprio”, disse ele com um tom de incisiva certeza na voz.

“Mas é claro que a gente só vai ficar com alguém que nós atrai....”

“É isso!! O sexo. É isso. Tudo se resume ao sexo. Uma pessoa pode ser inteligente, educada, culta, elegante, divertida, ter todas as qualidades que fazem dela um bom indivíduo, mas, se não atrair sexualmente, não serve. Acho que um pouco do nosso eu primitivo influi nessa questão, mas ainda não sei bem até que ponto. Preciso pensar mais sobre isso”, admitiu ele com alguma humildade.

“Não sei... até que faz sentido, mas eu tenho dificuldades em..., sei lá, em aceitar essa ideia. Porque, se for assim mesmo, as coisas perdem o encanto, sabe? Não existe mais magia. É tudo preto e branco. Entende? Não tem vermelho, azul, amarelo, lilás. É tudo tão sem graça sem a magia”, lamentou ela enquanto agradecia com um menear de cabeça a garçonete que, finalmente, tinha lhes trazido mais cerveja.

“E é por isso que, mesmo não havendo magia, as pessoas insistem em criá-la. A gente vive em um uma realidade que criamos para que não percebamos que o sentido da nossa vida se resume a sobreviver. Em suma, é isso. A garantia de um parceiro sexual e de alguém para cuidar de você quando estiver velho. É nisso que consistem os relacionamentos”, reafirmou ele, percebendo que ela começava a concordar com o que dizia.

“É... que triste pensar nisso. Se imaginar envelhecendo sozinho não é legal mesmo. E tenho de concordar contigo sobre o sexo. Eu nunca me envolvi com alguém que não me atraísse fisicamente. Mas é algo natural, né? A gente não fica pensando nessas coisas antes de iniciar um namoro. Eu não penso, nunca pensei. Simplesmente aconteceu. Então, não agimos assim, dessa forma pragmática, de má fé. Só agimos.”

“Sim, sim. Não há má fé. É o nosso instinto sobrepujando nosso ser social. Amor de verdade, amor puro, sem interesses pessoais envolvidos, sem desejos, sem necessidade de reciprocidade, esse amor que todo mundo diz sentir quando está namorando, ou quando é recém-casado, só existe de pais para filhos. Ou na velhice, quando a beleza física se esvaiu com o tempo. Entre duas pessoas jovens sem relações de sangue, não existe amor. Existe instinto e interesses travestidos. É uma verdade dura de ser dita, mas é uma verdade”, conclui ele, com a triste satisfação de ter feito mais uma pessoa enxergar o mundo pelos seus olhos desiludidos.

Passava das duas horas da madrugada quando eles se levantaram, deixaram o dinheiro da conta sobre a mesa – sem gorjeta para o garçom – e se foram, caminhando pela noite adentro. O motel ficava a três quadras do bar. Não precisavam pegar um táxi.