Quando eles receberam as ligações, telegramas, e-mails,
mensagens no celular, dependendo da idade que cada um tinha, todos já
imaginaram qual era o motivo daquela convocação para uma reunião familiar de
urgência.
Era uma tarde de domingo primaveril. As flores dos ipês roxos
forravam as calçadas da rua. No jardim da frente da casa, as roseiras brancas e
vermelhas se intercalavam formando um perfumado mosaico.
Eles foram chegando aos poucos. Alguns vinham de longe, de
outros estados, enquanto outros moravam no mesmo bairro. Muitos abraços,
beijinhos e tapinhas nas costas marcavam os reencontros.
Enquanto aguardavam o restante dos convocados chegar, os que
já ali estavam reuniam-se em pequenas rodas de conversa. Os homens mais velhos
falavam sobre futebol e política, alternadamente. As mulheres não desviavam o
foco e ponderavam sobre as possíveis soluções para o problema que motivara o
encontro daquela tarde. Isso, claro, se o problema fosse aquele que elas
achavam que era. Meninos e meninas mais jovens se misturavam e tratavam de
banalidades.
Havia, no ambiente, uma mistura de tensão, ansiedade, dúvida
e até graça. O segundo bule de café quente e forte já estava acabando, e o
último dos filhos de dona Aurora ainda não havia chegado. Tinha ficado preso em
um congestionamento na ponte da entrada da cidade. Algum maluco em desespero
ameaçava se jogar lá de cima nas águas turvas do lago.
A espera pelo único ausente revelava as idiossincrasias e
expunha as entranhas daquela família. Das mulheres, Isabel era a irmã do meio.
Mostrava uma aparente tranquilidade, quase um torpor. Os ansiolíticos em sua
bolsa mascaravam sua total incapacidade de enfrentar a realidade da vida fútil
e sem propósitos que levava. Para não desmoronar, agarrava-se às drogas
receitadas por um médico preguiçoso qualquer.
O filho homem mais novo, Henrique, gargalhava em alto e bom
som. Era jovem, havia sido agraciado em demasia com os belos traços físicos da
família, tinha um emprego que pagava bem, um carro importado, vestia roupas de grife,
morava em um apartamento de cobertura e era bajulado por amigos e conhecidos.
Era querido por todos na família por estar sempre de bom humor e tratar a
todos, indistintamente, com muita simpatia e educação. Henrique era gay. Ninguém
na família sabia. Nem sua mãe, nem seus irmãos e irmãs, nem seus sobrinhos, nem
ninguém. Ele sabia que iria ter de enfrentar muita resistência, que tudo o que
era e o que conquistara passaria a ser questionado. Ele conhecia bem o seu
eleitorado familiar. Seus irmãos eram todos conservadores. Seus sobrinhos
tentavam transparecer uma imagem de modernos, com a cabeça aberta, mas eram, no
fundo, pequenas cópias de seus pais. Somente dona Aurora, talvez, o fosse
entender de verdade, sem julgamentos, sem condenações. Enquanto isso, enquanto
tentava criar coragem para assumir quem realmente era diante de todos, ele
seguia sendo quem não era, mas aquele que todos invejavam e gostariam de ser.
Dois dos netos, Rafaela e Lucas, evitavam-se. Sequer ficavam
na mesma parte da casa ao mesmo tempo. Para os outros jovens da família,
passavam a imagem de não se gostarem. Mas eles se amavam. Trocavam olhares
lascivos à distância. Desejavam-se. Pensavam um no outro antes de dormir.
Escreviam mensagens apaixonadas. Encontravam-se às escondidas há seis meses.
Mantinham tudo em segredo. Um escândalo familiar, nesse momento, seria a pior
coisa que poderia acontecer. Eles tinham ciência disso. Eram jovens, estavam
apaixonados, mas tinham ciência disso.
A filha Suzana apanhava do marido e usava o uísque e a
cocaína para esquecer. Ela ainda não criara coragem para denunciá-lo. O filho
Antônio gastava o dinheiro do salário no jogo antes de chegar em casa. A neta
Letícia se prostituía nas noites de quinta, sexta e sábado para pagar a
faculdade de Publicidade. O neto Ricardo contraíra HIV depois de usar uma seringa
compartilhada em uma noite de excessos juvenis. Ele ainda não sabia disso.
Faltavam três minutos para as cinco da tarde quando o
retardatário chegou e, então, puderam reunir-se todos na grande sala de jantar
e começar a busca por um entendimento comum.
Foi o recém-chegado, o filho mais velho, que tomou a palavra
inicial. Augusto agradeceu a boa vontade de todos, falou sobre a dificuldade em
reunir a família daquela forma, dos compromissos e das distâncias que os
afastavam, da seriedade da questão a ser tratada. Antes de passar a palavra
para Clara, a irmã mais velha, que era médica, disse que a decisão não teria de
ser, necessariamente, tomada naquela tarde, que todos poderiam ir para as suas
casas pensar a respeito e que um novo encontro seria marcado dentro de um mês
para que cada um expusesse suas considerações conclusivas. Era uma sábia
decisão. Apontamentos feitos de forma açodada não costumam gerar bons
resultados.
Clara falava com uma tranquila seriedade que atraía a
atenção de todos, até dos mais jovens. Ela era cativante. Não precisava
levantar a voz, nem fazer gestos bruscos. Clara era sutil. Além de ser a figura mais doce da família,
ela também foi escolhida para explicar o quadro, principalmente, por ser
médica. Poderia destrinchar os detalhes, esclarecer dúvidas. Poderia ser
simples e direta, mas, ainda assim, mantendo a ternura que lhe caracterizava.
“Mamãe tem Alzheimer. “
Silêncio.
Olhares incrédulos. Mãos sobre as faces.
Dona Aurora sempre fora uma mulher extremamente ativa.
Morava sozinha e fazia questão de ser independente em tudo. Nunca se queixava.
Ia duas vezes por semana à academia fortalecer a musculatura. Fazia caminhadas
diárias de três quilômetros. Preparava a própria comida, cuidava do jardim, de
dois cães e de uma gata. Participava de um grupo de mulheres que prestava
serviços comunitários no bairro e organizava festas na igreja para arrecadar
dinheiro para famílias carentes. Ela tinha 89 anos de idade.
Tudo começara em um sábado. Dona Aurora acordara cedo, como
de costume. Tomara o café da manhã, dera de comer aos animais e saíra para ir à
feira comprar frutas, verduras, queijo colonial e mel direto do produtor. Era
sempre assim há pelo menos dez anos. Depois das compras, ela costumava passar na
casa de uma amiga, Mercedes. Lá, sorvia o mate, colocava a conversa em dia e
dava uma olhada nas peças de croché que a parceira de conversas fazia. Naquele sábado,
dona Aurora não aparecera na casinha modesta de madeira de sua amiga. Havia
algo errado. Mercedes não esperou passarem mais de cinco minutos do horário em
que Aurora costumava cruzar seu jardim. Ela nunca se atrasara antes. Correu ao
telefone e ligou para a polícia para comunicar um desaparecimento. Obviamente,
a polícia não achara que um atraso de alguns minutos em uma visita matinal de
sábado poderia se configurar em um desaparecimento. Nem deram muita bola.
Mercedes, então, colocou um casaco, seus tênis de caminhada, e saiu para ver se encontrava
Aurora em algum lugar. Depois de 1h45min de buscas, ficou sabendo que a amiga
tinha sido avistada caminhando em direção ao parque central. De posse da
informação, entrou em um táxi e foi para lá. Já próxima ao destino, avistou
Aurora. Ela caminhava a esmo, sozinha, olhando para frente sem um foco
definido. Carregava as compras em
sacolas. Mercedes se aproximou e conversou com a amiga, que parecia
desorientada. Colocou-a no táxi e a levou para casa.
Ainda na casa de Aurora, Mercedes ligou para Augusto e
relatou o ocorrido. O filho ouviu com atenção e agradeceu o cuidado dispensado.
Mal colocou o telefone no gancho e já saiu em direção à casa da mãe. Eram muito
próximos. O primogênito sempre fora o queridinho de dona Aurora. Já na companhia dela, não conseguiu notar
nada de diferente. Aurora não sabia explicar a razão de ter ido para o parque e
não para a casa de Mercedes após as compras na feira. Estava um pouco confusa,
mas ele pensou que poderia ter sido uma insolação, pois fazia calor e o sol ardia
com força em um céu sem nuvens. Mesmo sem achar que poderia ser algo mais
sério, ligou para Clara. A irmã era médica e poderia saber melhor o que se
passara.
Clara não achou que aquele era um esquecimento natural de
uma pessoa na idade da mãe. Dona Aurora tinha uma memória excelente. Havia algo
de errado. No dia seguinte, bem cedo, passou na casa da mãe, a pegou e a levou
ao hospital em que trabalhava. Depois de uma manhã e tarde inteiras de exames,
consultas, conversas e debates entre a equipe médica, o diagnóstico foi
definitivo: Aurora tinha Alzheimer.
A primeira coisa que Clara fez depois de receber a notícia,
foi sentar-se com a mãe na sala de acolhimento. Com toda a clareza possível,
explicou o que se passava. Dona Aurora custou um pouco a entender tudo. Levou
muitos minutos para processar a informação que acabara de receber. Ela vinha esquecendo-se
de muitas pequenas coisas nos últimos meses. Esquecia-se de fazer as compras do
dia, de colocar o lixo para fora, esquecia-se de fazer uma visita que havia
prometido. Agora, aquelas coisas que vinham lhe incomodando, mas às quais ela
não dava importância, faziam sentido. Estava doente.
Depois de falar sobre a doença,
sobre a evolução, sobre as terapias, sobre os cuidados, Clara disse para a mãe
não se preocupar, que toda a família estaria ao seu lado, que ela teria os
melhores tratamentos disponíveis. Dona Aurora ouviu tudo atentamente e não
parecia preocupada. Confiava nos avanços da medicina e confiava ainda mais na
filha. Se Clara disse para ela não se preocupar, ela não se preocuparia.
Tudo naquela família mudou depois
da confirmação do diagnóstico. Os filhos de dona Aurora nunca haviam se visto
em uma situação como aquela. Nunca tiveram de se envolver em nada da vida dos
pais. Depois de perder o marido, Aurora manteve a serenidade. Na verdade, foi
ela quem encarou a morte de Olavo com mais tranquilidade. Os filhos acharam que
ela iria desmoronar sem o amor de uma vida inteira, mas se enganaram. Ela foi
forte e segura. Foi Aurora que acabou sendo o esteio dos filhos depois da morte
do pai, e não o contrário. Era uma mulher idosa e independente. Gozava de uma
saúde de ferro e fazia questão de viver sem precisar da ajuda de ninguém.
Costumava dizer que, no momento em que se tornasse um fardo para seus filhos,
iria sumir do mapa. Pegar suas coisinhas e desaparecer no mundo.
A doença não a fez mudar o modo
como via as coisas. Aurora não se sentia doente. Não sentia dores, não estava
incapacitada de fazer nada. Esquecia coisas, mas havia coisas que já não queria
mais lembrar mesmo. Assim, chegava até a ver algo de positivo na doença. Ela
ainda estava na fase de negação. Não enxergava a seriedade do Alzheimer.
Chegava a fazer troça da doença. Sempre fora assim. Fazia questão de ver o lado
positivo de tudo. Mesmo quando esse lado não existia.
Os filhos, ao contrário, piraram.
Clara era a única que mantinha a razão. Os outros passaram a agir de modo
enlouquecido. O primeiro pensamento que veio à cabeça de todos foi: mamãe vai
morrer. Uma doença séria em uma mulher idosa. Conclusão óbvia. Com o tempo, os
nervos se acalmaram. Não passava um dia em que a filha médica não recebia três
ou quatro ligações de irmãos e sobrinhos querendo saber detalhes sobre o quadro
de saúde de Aurora. Os netos, mais antenados, buscavam confirmar o que haviam
lido na Internet. Os filhos, em ignorante histeria, queriam respostas
definitivas para perguntas genéricas. Clara não era neurologista, não conhecia
a fundo os detalhes do Alzheimer, mas tentava acalmar a todos, esclarecendo o
que podia esclarecer e prometendo descobrir mais sobre os pontos que
desconhecia.
David era o neto mais jovem de
Aurora. Tinha dez anos de idade recém-completados. Ele era filho de Clara.
Sempre que sua mãe fazia plantão no hospital, o menino ficava aos cuidados da
avó. Assim, eram muito próximos. David tinha asma e seis graus de miopia. Usava
óculos de lentes grossas e não ia a lugar algum sem a sua bombinha. Há tempos
ele percebia que a avó estava diferente. Ficava meio aérea em alguns momentos.
Recostava-se no vidro da janela fechada e ficava olhando para a rua por muitos
e muitos minutos. Nestes momentos, era como se se desligasse de todo o mundo ao
seu redor. Era somente ela, aquela janela e a rua lá fora. David via as horas
junto à avó como instantes mágicos de troca. Ela cuidava dele, lhe contava
histórias, lhe fazia bolinhos cobertos com açúcar e canela e lhe deixava ver
televisão até tarde. Ele lhe fazia pequenos favores, lhe acompanhava em saídas
e lhe ajudava a lembrar onde havia deixado as chaves, o telefone sem fio e seus
apetrechos de costura. Davam-se muito bem, avó e neto.
Diante do descontrole emocional
dos filhos, que não conseguiam lidar com suas disfunções pessoais e com a ideia
de que sua mãe estava doente da cabeça, Aurora encontrou no pequeno David o seu
parceiro. O menino foi o único que não passou a vê-la com olhos piedosos. Para
ele, nada mudara. Sua avó continuava a mesma pessoa. Ele não tinha pena dela,
não achava que ela iria sair porta afora e se perder pelas ruas da cidade a
qualquer momento. Quando olhava para ela, ele não enxergava uma idosa com uma
doença mental. Para David, Aurora era a sua avó amada e era somente isso que
lhe importava. Era somente isso que seus jovens olhos míopes viam.
Aproximaram-se de tal modo, que a
única companhia familiar com a qual Aurora se sentia leve e relaxada era o neto
mais novo. Com David, ela não se policiava, não se preocupava em se mostrar
sadia, em não dar indícios ou sinais da doença que lhe acometia e que, nos
momentos de solidão, a fazia se sentir cada vez mais distante de tudo e de
todos.
Clara fazia plantão na emergência
do hospital geral da cidade nas segundas, quartas e sextas. Além disso, também
trabalhava à noite e na madrugada em um sábado e um domingo por mês. Assim
sendo, David ficava com a avó em, no mínimo, 14 dias ao mês. Isso sem contar os
finais de semana em que, por conta própria, o menino enchia sua mochila com
algumas roupas e livros de histórias em quadrinhos e pedia para a mãe o levar
para a casa de Aurora.
Tornaram-se, desta forma, mais do
que avó e neto. Ficaram amigos, confidentes. David fez questão de continuar
ficando na casa de Aurora nos dias de plantão da mãe mesmo depois do
diagnóstico do Alzheimer. Para ele, não havia razão para deixar de fazê-lo. Sua
avó não representava risco algum. Era uma senhorinha idosa muito divertida e
que esquecia coisas. Era assim que ele via a situação.
Passaram-se quatro meses desde o
primeiro encontro familiar em que todos souberam que a matriarca estava doente.
Era, mais uma vez, um fim de tarde de um domingo. Reunidos na sala de estar da
velha casa, os filhos de dona Aurora travavam uma ferrenha contenda acerca do
futuro daquela família. A grande discussão girava em torno de uma questão: o
que fazer com a mãe de todos eles? Não havia um consenso. Enquanto Augusto
achava que o melhor para a mãe era permanecer em casa, próxima dos filhos e
netos e que, para isso, todos deviam colaborar financeiramente e uma cuidadora
de idosos deveria ser contratada, Antônio esbravejava contra, dizendo que o
melhor lugar para a mãe era em um asilo, sob o cuidado de profissionais
preparados para atender pessoas no estado de Aurora. Isabel, por sua vez,
parecia pouco preocupada, mas deixava claro que não queria ter de perder tempo
de sua vida cuidando de uma velha caduca. Henrique e Clara achavam que estar
junto da família seria o melhor para a mãe. Entretanto, enquanto o caçula, em
pé e com o dedo em riste, dizia que todos tinham a obrigação de cuidar e de dar
o máximo de atenção e tempo possível para a mãe, fazendo sacrifícios para isso,
se necessário, Clara, com sua cabeça de cientista, ponderava que, mais do que
amor e carinho, Aurora precisava era de cuidados médicos e, portanto, ficar em
casa sozinha durante a maior parte do tempo, na maior parte dos dias, não era o
indicado para uma pessoa na situação da mãe.
A discussão prosseguia sem dar
indício algum de que teria um fim em breve. Em meio ao bate-boca, temas
correlacionados, ou nem tanto, vieram à baila. Antônio, o jogador, questionou
se a mãe teria feito um testamento. Após um momentâneo silêncio de todos, disse
que não era hipócrita e que não negaria que estava pensando em como seria a
divisão dos bens quando a mãe morresse. Fez questão de frisar que não queria
nada físico, nenhum bem, apenas dinheiro. Tentando transparecer um pudor que em
nada diminuía a vergonha que estampavam em seus rostos, todos baixaram o tom de
voz e não se negaram a tratar da questão por alguns minutos. Vender a casa e os
dois carros antigos, que haviam pertencido ao pai deles e que estavam guardados
na garagem acumulando pó, e dividir o dinheiro entre todos, foi a ideia que
ganhou mais adeptos. O único que se opôs com veemência foi Augusto. Para ele,
aquela casa era mais do que apenas um imóvel com preço fixado pelo mercado
imobiliário. Ele percebia um valor acima do financeiro. Havia sido criado ali,
vira seus filhos crescerem correndo naquele pátio. Em seu íntimo, pensou em
comprar a parte de cada um dos irmãos e ficar com a casa para si. Sabia que não
tinha dinheiro para isso, mas, ainda assim, passou a alimentar, em segredo, a
ideia.
Quem arcaria com os custos do
tratamento, quem iria pagar a cuidadora se Aurora permanecesse em casa, quem
iria pagar o asilo se ela fosse para um, quem iria pagar a clínica se a
internassem. Quem iria separar mais tempo para ficar junto à mãe, quem iria
tratar das questões burocráticas envolvendo documentações, pagamento de contas,
recebimento da aposentadoria. Quem iria acompanhá-la nas consultas médicas.
Quem ficaria com ela quando precisasse ser internada no hospital. Quem?
Sentada na varanda da casa,
Aurora tinha David no colo. Enquanto afagava os cabelos castanhos do menino que
dormia um sono tranquilo, ela olhava para um ponto infinito à sua frente.
Pensava, com lucidez, em tudo o que havia passado para alimentar, vestir,
cuidar e educar aqueles meninos e meninas que, agora, discutiam em voz alta,
quase gritando, na sala de estar. Pensava nas privações, nas noites sem dormir,
na comida que deixou de comer para dar a eles. Tocando as suas enrugadas mãos,
pensava na juventude que havia passado a galope diante de seus olhos e que se
fora sem que ela tenha a acompanhado para dar uma volta sequer pelos campos da
parte alta da cidade. A vida passara como um flash de luz. Ela não se arrependia
de nada. Faria tudo de novo se fosse preciso. Aurora amava profundamente
aqueles filhos, mas já não os reconhecia mais.
Não há cura para o mal cotidiano
Que mata, pouco a pouco, sem dor, o espírito
humano.
Punhal que fere a carne não tira a vida de
quem ama.
Palavra que não diz, sufoca o grito de quem
clama.
Quem estava doente, afinal?
O maluco que ameaçava se jogar de cima da ponte, se jogou. Ninguém
sabe a dor que o outro sente. Ninguém.