Acordou sobressaltado com frementes batidas à porta. Olhou o
relógio de neon que luzia na parede oposta à da cabeceira da cama. Três e doze
da manhã. As batidas explodiam na madeira oca com fúria. Havia se mudado há
duas semanas para aquele apartamento. Conhecia pouco do bairro e ainda menos da
vizinhança. Poderia ter algum vizinho psicopata sedento por sangue jovem.
Poderia ter uma vizinha ninfomaníaca ávida por sexo selvagem na madrugada. Torcia
para que fosse a segunda opção, mas temia que fosse a primeira.
Levantou-se, calçou os chinelos e foi à janela. Morava no
décimo segundo andar de um prédio no Centro da cidade. Lá fora, chovia uma
chuva intensa, daquelas com gotas curtas e finas, que fazem pouco barulho
quando tocam o chão. Não ventava. A cidade adormecia. Um casal trocava carícias
sob uma marquise. As luzes amarelas dos
postes davam tons pasteis enegrecidos às ruas.
À porta, as batidas haviam cessado. Ele já não as ouvia
enquanto olhava pela janela. Do alto, achou a cidade tão bela. Desejou conhecer
melhor aquela cidade vazia. Dobrar suas esquinas, sentir o seu cheiro. Conhecer
as pessoas que vagavam sozinhas na madrugada.
Um raio irrompeu ao longe e assustou o casal que namorava.
Ele saiu de seu transe e voltou a ouvir as coléricas batidas. Caminhou até a
sala tentando imaginar o que levaria uma pessoa a bater na porta de outra no
meio da madrugada. Poderia ser um assalto. Ou um fugitivo da polícia buscando
um lugar para se esconder. Mas ele morava no décimo segundo andar. Ninguém
subiria até o décimo segundo andar para assaltar ou se esconder. Poderia ser
algum conhecido. Um amigo, quem sabe. Por que não um familiar? Ele tinha dois
irmãos. Talvez algum deles tivesse se envolvido em uma briga de bar e estivesse
com um corte na mão em razão de uma garrafada que levara. Era uma
possibilidade. Seu irmão mais novo costumava sair muito à noite e gostava de se
envolver em confusão.
Junto à porta, lamentava profundamente o fato de nunca ter
achado necessário colocar um olho mágico. Vinte reais economizados.
Tinha duas opções bem claras. Não era uma decisão muito
difícil aquela. Ou abria ou não abria a porta. Ainda assim, precisava pensar.
Era uma escolha simples, sem dúvidas, mas que poderia gerar consequências com
as quais ele não saberia lidar sem estar devidamente preparado para tal. Assim,
precisava pensar.
Poucas pessoas sabiam que ele havia se mudado recentemente e
um número ainda menor delas, umas duas ou três, tinha conhecimento do seu novo
endereço. Se fosse alguma delas, porém, muito provavelmente, já teria ligado
para o seu celular, pois, se sabia onde ele estava morando agora, com certeza
tinha o número do seu telefone. Não, não era ninguém conhecido, decididamente.
Sendo um desconhecido que o acordara e que seguia esmurrando
sua porta, a situação exigia ações enérgicas e corajosas. Parou por um instante
para tentar entender completamente a situação e analisar as possibilidades que
tinha para agir. Quando deu por si, recitava o salmo 91 enquanto segurava nas
mãos e apertava contra o peito o escapulário que havia ganhado de sua mãe
quando decidira sair de casa e ir morar sozinho.
... não terás medo do
terror de noite nem da seta que voa de dia, nem da peste que anda na escuridão,
nem da mortandade que assola ao meio-dia. Mil cairão ao teu lado, e dez mil à
tua direita, mas não chegará a ti...
“Isso vai te proteger”, disse ela. “Carrega sempre
contigo”, completou após lhe dar um beijo na testa. Desde então, ele nunca
ficou longe daquele escapulário. Vinha dando certo. Até aquela madrugada, pelo
menos.
Não queria dar uma de herói. Poderia chamar a polícia,
mas não é crime uma pessoa bater à porta de outra, mesmo que seja na madrugada.
Iria alegar o quê? Perturbação do sossego? Talvez, mas isso não seria
prioridade para os tiras. Levaria muito tempo para chegarem. Não, não. Teria de
encontrar outra solução. Uma solução rápida.
Enquanto pensava no que fazer, as batidas ora cessavam,
ora voltavam ainda mais fortes e insistentes. Encostou o ouvido na porta para
tentar escutar alguma conversa, descobrir se o visitante indesejado estava
sozinho ou não. Nada.
Voltou para a sala. Esfregando as mãos, caminhava em
círculos em busca de uma luz. Tinha de pensar e agir sem demora. As batidas
estavam mais fortes, mais rápidas. Seus olhos estalados. As batidas. As pernas
trêmulas. As gotas se chocando com ira na janela. A respiração ofegante. As
batidas tão fortes. O suor escorrendo pelas costas. Um raio! As batidas. A
porta. A chuva. O medo.
Sentia tudo, mas tudo havia se tornado uma coisa só. Um
misto de terror e ansiedade. O corpo elétrico. A mente em incandescente caos.
Foi então que, em um breve instante de racionalidade,
percebeu que a chuva havia cessado, assim como as batidas na porta. Era um
silêncio tão profundo que podia ouvir seu coração pulsando alto em seu peito.
Estava vivo.
Inspirou profundamente. Fechou os olhos. Inspirou mais
uma vez. Os abriu e percebeu que estava sentado na cama, os pés descalços
tocando o chão frio. Tudo havia passado. Era como se nada tivesse acontecido. Relaxou
e sorriu. Olhou ao redor e pensou se, talvez, não tivesse sonhado com aquilo
tudo.
Levantou-se e caminhou até a cozinha. Encheu um copo com
água fresca e olhou para a porta. Balançou a cabeça rindo da peça que sua
imaginação havia lhe pregado.
Deu três passos curtos. Virou a chave, destrancou a
trava, girou a maçaneta e puxou.
Do lado de fora, um homem com olhos injetados e cabelos
revoltos lhe encarou por um breve momento.
Nada foi dito.
Um tiro na testa.
Poça de sangue no chão.
Nenhum grito de horror.
Lá fora, a noite estava calma. A cidade ainda dormia.
Ele deveria ter colocado um olho mágico.