O cerco à cidade já durava dois anos. Não havia mais
esperança de que aquilo fosse acabar. Na consciência de cada um de nós, já não
havia mais esperança de que aquilo fosse acabar. Viveríamos para sempre
cercados, à espera da estocada fatal.
Nós não tínhamos muita informação sobre o que acontecia fora
dos limites da cidade. E aquela que chegava, não era confiável. Na guerra, a
primeira vítima é a verdade. Agarramo-nos à vida com força. Era preciso
resistir. Cada pedaço de pão, cada porção de farinha, cada copo de água. Tudo
era celebrado como uma vitória. Cada dia era uma nova vitória na nossa batalha
particular contra a morte por inanição.
A fome caminhava ao lado do frio. À frente deles, o medo não
nos deixava dormir. Batia à porta todas as noites. Com insistência.
Morávamos na mesma casa eu e meus dois irmãos menores, uma
menina de nove e um menino de sete anos. Meu pai engrossava as fileiras do Exército há pouco mais de seis meses.
Ele era ferreiro e foi convocado pelo esforço de guerra. Todos os homens que
pudessem lutar eram imprescindíveis. Quem tinha algum treinamento militar, como
ele tinha, não escapava de jeito nenhum. Meu pai havia feito carreira na
caserna, chegando ao posto de sargento, mas foi dispensado do serviço militar
em razão de uma paralisia na perna esquerda causada pela poliomielite. Agora,
em meio ao caos e desespero, até um ex-sargento manco era muito bem-vindo no
front.
Minha mãe morrera já nos primeiros dias do cerco. Ela
trabalhava no hospital de campo quando ele foi atacado pela artilharia aérea
inimiga. Destruir os locais de atendimento em saúde, as linhas de energia e
onde se produzia comida era um modus de ação chave para a que a cidade se
rendesse. Sem ter como cuidar dos feridos, como se comunicar com o exterior e o
que dar de comer aos civis e, principalmente, aos soldados, a resistência
fraquejaria e o invasor não teria dificuldades para ocupar as ruas.
Àquela altura, eu já não sabia se meu pai ainda estava vivo.
As mortes eram tantas, as notícias, tão poucas e desencontradas. Além disso, eu
tinha mais com o que me preocupar. Eu tinha duas crianças sob minha
responsabilidade. Ele era um homem feito, saberia se cuidar. Meus irmãos só
tinham a mim.
Eu tinha 16 anos quando meu pai saiu pela porta depois de
dar um abraço em cada um de nós. Ele não disse nada. Não precisou dizer nada.
Esperava-nos pronto junto à mesa da cozinha. Nossas porções de pão diárias e
meia caneca de leite de cabra para cada um estavam lá. Comemos todos em
absoluto silêncio. Depois, veio o abraço, os passos tortos para a rua, a mão de
minha irmã apertando a minha.
As crianças ficavam o tempo todo dentro de casa. Não se viam
crianças pelas ruas. As bombas caíam a todo momento. Não havia um horário para
os bombardeios. Eles ocorriam pela manhã, à tarde, à noite, nas madrugadas.
Mesmo quem não entendia nada de estratégia de guerra, percebia que o plano do
inimigo era claro. Disseminar o terror. Não havia onde se esconder. Os ataques
eram implacáveis. Escolas, igrejas, hospitais, fábricas, depósitos, casas. Nada
era poupado.
Escapar dos assaltes era uma questão de sorte. Não existia
um local seguro. Não havia alvos. Tudo era alvo. Por algum
motivo inexplicável qualquer, a nossa casa se mantinha intocada. Talvez pelo
fato de ser bem pequena, um quarto, uma cozinha e um banheiro, talvez por ficar
em uma rua em que não havia prédios, apenas residências baixas, talvez pelos
alemães terem uma péssima mira. Não sei por quê.
A partir de determinado momento depois do início do cerco,
as sirenes alertando sobre os aviões inimigos deixaram de soar. Se o fizessem,
não dariam um minuto sequer de descanso a ouvidos cansados de explosões, de
gritos. As escolas estavam em escombros e as aulas não foram retomadas em lugar
algum. Reunir crianças e jovens em um único local era um risco que a cidade não
podia correr.
Ainda que em meio ao caos, mesmo no limiar entre a loucura e
a desesperança, as pessoas buscavam abrigo em seus pequenos hábitos, em suas
rotinas, em suas lembranças de uma vida que sabiam que jamais seria a mesma,
mas à qual se agarravam com tamanha fúria, com tamanha paixão, que faziam com
que desistir, se entregar, não fosse uma opção. Eles iriam lutar. Iriam lutar
por suas vidas, mas, mais do que isso, iriam lutar por sua terra, por sua
gente, lutar contra a barbárie, contra o medo, e, assim, também lutar pelo
direito de sonhar. Aqueles alemães não sabiam com quem tinham se metido. Eles
não tinham ideia.
Dormíamos o mínimo possível. O problema maior não eram as
bombas. Elas poderiam irromper o teto e cair sobre nossas cabeças a qualquer
hora, estando nós acordados ou não. O perigo era o risco de uma invasão, de
nossas defesas ao redor da cidade serem rompidas, de blindados tomarem conta
das ruas, de soldados falando uma língua estranha nos dando ordens e matando
gente. Era isso que temíamos, não a morte.
Eu acordava bem cedo todas as manhãs. Colocava minhas
roupas, minhas botas e agasalhos e ia ao centro de distribuição de mantimentos,
que, a cada dia, ficava em um lugar diferente, para tentar despistar os ataques
inimigos. Meus irmãos ficavam dormindo. Nas ruas, as pessoas caminhavam
placidamente, como em pequenas procissões que se uniam em seu destino final.
Não havia interação alguma. Apenas seguiam.
A porção diária de pão estava restrita a 125 gramas, por
volta de duas fatias. Por mês, tínhamos direito a 400 gramas de carne, 650 gramas
de cereais e 300 gramas de óleo de semente de girassol. Eu nunca esqueci esses
números. Diante da falta do que comer, a busca por alimentos se tornou uma
questão de sobrevivência. Galhos de árvores cozidos faziam parte da dieta
corriqueira. Não se viam mais cães ou gatos vivos. Sempre que aparecia um, era
caçado pelas vielas por uma horda de famintos com lanças, facões, pedras e paus
nas mãos. Ratos, camundongos, lagartixas, pássaros quaisquer. Nada que podia
virar alimento era poupado.
Pessoas foram presas por comerem pessoas. Carne humana
estava à venda nos mercados.
Meu pai deixara um rifle comigo. Um rifle e uma caixinha de
madeira cheia de cartuchos. “É para proteger seus irmãos”, disse na noite antes
de partir. Eu sabia atirar. Costumávamos sair para caçar durante as duas
últimas semanas do outono, antes da chegada do inverno. Trazíamos para casa o
máximo de carne que podíamos. Defumávamos e estocávamos no porão. Foi assim que
aprendi a atirar. Caçando com meu pai. O rifle que ele me dera ficava embaixo
da minha cama. Carregado, mas não engatilhado. Era para proteger os meus
irmãos.
Não havia muito o que se fazer durante o cerco. Nada restara
na cidade. Não havia mais praças em condições de uso, não havia mais cinema, o
teatro fora transformado em centro de recuperação para os soldados feridos que
já tinham sido tratados pelos médicos e que não podiam ficar ocupando lugar nos
hospitais de campanha. Em nossa casa, tínhamos um rádio. Um rádio à válvula.
Era um aparelho muito bom. Funcionava que era uma beleza. As linhas de
transmissão de energia, porém, foram destruídas e, além disso, nossas forças de
defesa determinaram que somente o centro de operações militares seria
abastecido com óleo e carvão para os geradores. Nós tínhamos um gerador. Meu
pai o havia comprado em um leilão de coisas velhas da companhia de
eletricidade. Pagou um preço bem em conta. Era um gerador antigo, mas, depois
de uns ajustes, umas peças trocadas e um pouco de lubrificação, ficou feito
novo. A nossa sorte em meio ao racionamento de combustível era que o capitão
responsável pelo gerenciamento dos estoques de carvão e óleo era amigo de
infância de meu pai. E meu padrinho. Então, toda a semana, um pouco antes de
anoitecer, eu ia até o galpão de estocagem e ele me dava um galão de cinco
litros de óleo. Ninguém mais circulava pelas ruas depois das cinco da tarde.
Todos respeitavam o toque de recolher. Assim, eu não corria risco algum de ser
visto caminhando a passos rápidos com um galão de óleo desviado.
Escutávamos vinte minutos de rádio todos os dias antes de
dormir. Meu irmão gostava de ouvir música. Conseguíamos sintonizar uma estação
de ondas curtas que tocava canções durante todo o dia. À noite, cerca de uma
hora depois de o sol se pôr, até o amanhecer, era música clássica que saía dos
autofalantes. Eu não gostava muito, mas meu irmão adorava. Ficava paralisado,
em completo silêncio, os olhos estalados, o queixo apoiado nas mãos. Minha irmã
e eu preferíamos nos atualizar com as notícias vindas da capital.
Esperávamos ouvir boas novas, o recuo das tropas inimigas, a rendição de uma
divisão, e de outra, e de mais outra. O fim da guerra. Nossas vidas de volta.
Enfim, esperávamos todos os dias por notícias que nunca vinham. Mas seguíamos
esperando.
A gente nunca pensa na morte até sentir que ela está à
espreita, esperando uma brecha, sentindo a nossa respiração, silenciosa. Eu
tentava não pensar nisso, não pensar na morte. Talvez por ser uma realidade tão
presente, por ser algo quase inevitável para todos nós diante daquela situação,
por ter se tornado cotidiana, a ideia de morrer não me assustava mais. Morrer
não parecia ser o pior dos destinos. A vida já não tinha valor. Os corpos pelas
ruas. O cheiro de carne em decomposição. O fogo nos prédios. A mãe que não tinha
lágrimas para chorar pelo filho morto em seus braços.
Ela não nos pegaria de surpresa. A aguardávamos com a mesa
posta, com chá quente.
Apesar de não temer a morte, essa vizinha que batia à nossa
porta todos os dias, eu sabia que tinha de viver, se não por mim, por meus
irmãos. Eu fazia tudo para eles. Preparava a comida, o banho, cuidava da roupa,
da saúde. Com o fechamento das escolas na segunda semana do cerco, passei a
lhes dar aulas também. Tudo o que tinha aprendido, tentava os ensinar. Eu não
era um grande professor, mas tinha muita paciência com as suas dificuldades. Se
tivesse de explicar cem vezes a mesma coisa, explicava.
Enquanto estava em casa, antes de ir para o front, meu pai
não dava a mínima para nós. Éramos um estorvo. Um fardo que ele teria de
carregar por alguns anos até que fôssemos adultos. Após a morte de minha mãe,
ele se tornou um fantasma. Uma sombra. Vivia para si mesmo e o fazia porque não
se via com forças para morrer. A possibilidade de, mais uma vez, voltar a
empunhar um fuzil, de matar aqueles que haviam lhe arrancado o amor de sua
vida, foi o que o tirou daquele estado de prostração. Muitas coisas podem levar
um homem à guerra. Poder, dinheiro, desesperança, obrigação, necessidade, ódio,
amor. Meu pai queria vingança. Ele somente desejava matar o maior número de
alemães que pudesse. De preferência, com
requintes de crueldade.
Meu pai era um homem rude. Desde muito pequeno, trabalhava
com meu avô na lavoura de trigo. Mas ele não via no arado e na enxada o seu
futuro. Era ambicioso. Assim que a idade permitiu, pegou suas coisas, fugiu de
casa e se alistou no Exército. Foi no ambiente militar que conhecera minha mãe.
Ela trabalhava na enfermaria. Cuidava dos pequenos ferimentos, escoriações,
cortes. Quando ele apareceu pela terceira vez na mesma semana com um hematoma
na perna, ela desconfiou que as intenções do garoto eram outras. Dentro de dois
meses, estavam namorando. Casaram-se oito meses depois
Minha mãe era uma mulher de tratos finos. Sutil, fala baixa,
discreta. Tinha longos cabelos claros e grandes olhos castanhos, feito
amêndoas. Era de uma família de posses, mas foi rejeitada por seus pais quando
anunciou o noivado com um reles soldado que não tinha onde cair morto. Depois
do meu nascimento, decidiu largar o trabalho e se dedicar à família. Quando a
guerra estourou, deixou o marido e os três filhos em casa e voltou ao trabalho,
atuando no hospital de campanha nos limites da cidade.
Eles não poderiam ser mais diferentes um do outro. Eram
brisa e fogo. Davam-se tão bem que, quando ela se foi, ele se foi também, mas
permaneceu conosco. Após a morte de minha mãe, meu pai se tornou um homem sem
sentimentos ou que, pelo menos, não demonstrava aquilo que sentia. Nem sorrisos
nem lágrimas. Apesar de achar que ele realmente desejava muito matar por
vingança, em meu íntimo, sempre acreditei que, mais do que vingar nossa mãe,
ele voltou às armas para encontrar a morte que, injustamente, a havia levado,
cheia de vida, e o tinha deixado, um corpo sem espírito. Morrer por amor, ou
por vingança, ou por simplesmente não ver mais sentido em seguir vivo. Nunca
mais tivemos notícias dele. Pode ter sido capturado pelos inimigos, pode ter
sido morto e enterrado em uma vala comum. Nunca saberemos. Talvez ainda esteja
por aí.
A vida em meio à guerra nos exigia autocontrole, disciplina,
o estabelecimento de comportamentos padronizados diante de determinadas
situações e planos traçados para casos de emergência. Tínhamos tudo acertado
entre nós, até os mínimos detalhes. Em caso de bombardeio próximo, íamos para o
porão e ficávamos juntos, sob uma das vigas de concreto que meu pai mandara
reforçar no início da guerra. Se ocorresse uma invasão inimiga, esconder-se não
era uma opção. Tínhamos de fugir para o Oeste, nos embrenhar na mata e rezar
para sermos encontrados por nossas tropas.
As estrelas no céu estremeciam quando canhões trovejavam
lançando peças flamejantes de aço sobre a cidade. Cada bomba que caia em cada
casa, era como uma flecha em chamas sendo cravada nos nossos corações.
Morríamos com cada morte, sentíamos a dor que cada um sentia, e era isso que
nos dava força para resistir. Estávamos juntos e juntos iríamos morrer. Ou
viver. Viver para que a morte do outro tivesse algum sentido.
Esse era um sentimento genuíno. Não era algo insuflado por
propaganda. Meu pai costumava vociferar quando ouvia um líder político ou
militar falar no rádio que nossos soldados deveriam morrer com honra pela
pátria. Ele dizia que não havia honra alguma em morrer no campo de batalha. Que
não havia gloria em agonizar empapado no próprio sangue, implorando por sua
vida, querendo ver sua mãe, desejando apenas voltar para casa.
Conforme os dias passavam, aumentava a fome, e, conforme
aumentava a fome, aumentava o desespero e, quanto maior o desespero, mais fundo
nós íamos em busca da sobrevivência. Nossa dignidade teve de dar lugar ao nosso
desejo de seguir respirando.
Passava de uma da madrugada. As investidas aéreas inimigas
haviam cessado por volta das dez da noite. Aquele era um dos raros momentos de
silêncio. Nós já dormíamos quando fortes batidas à porta me despertaram. Tentei
ignorar. Talvez, desistissem e fossem embora. Mas não desistiram. Levantei da
cama, peguei o rifle e fui em direção à porta. Perguntei quem era e não ouvi
resposta. As batidas continuaram. Perguntei mais uma vez, e, novamente, ninguém
disse nada. Engatilhei a arma, ameacei atirar se não se identificassem, e as
batidas cessaram. Respirei fundo, duas vezes, e pensei em voltar para a cama
quando ouvi um choro infantil do lado de fora. Dei meia volta e espiei por uma
fresta entre as tábuas de madeira da parede. Uma criança - um menino, três,
quatro anos - de mãos dadas com uma garota, da minha idade, provavelmente. Abri
a porta e saí para não acordar meus irmãos.
Tivemos uma conversa rápida. Ficar na rua àquela hora não
era aconselhável. Eram irmãos. A mãe havia morrido há dois meses de uma gripe,
que passou à pneumonia e acabou com seus pulmões. O pai desaparecera na segunda
semana de cerco. O telhado da casa onde viviam havia sido arrancado e duas
paredes tombaram com o último bombardeio. Tinham passado as últimas horas
batendo de porta em porta em busca de um abrigo. Ninguém abriu. Receber mais
duas pessoas significava ter de dividir a água e a comida com mais duas
pessoas. A solidariedade acaba quando se está flertando com a morte.
Mas eu, por algum motivo que ainda não sei ao certo qual,
decidi trazê-los para dentro. De certa forma, acho que me identifiquei com
eles. Irmãos lutando para se manterem vivos. Tremiam de frio quando entraram e
se acomodaram no chão, sobre algumas caixas de papelão abertas. Lhes servi uma
caneca de café quente que dividiram meio a meio. Expliquei as regras da casa:
ninguém mexe na comida, a não ser eu; ninguém mexe na água, a não ser eu; ninguém
mexe no combustível, a não ser eu; ninguém sai à noite; ninguém se cansa ou
gasta energia desnecessariamente; durante o dia, todos que saírem à rua devem
trazer para a casa o máximo de roupa e comida que puderem. Resumidamente, era
isso. Emprestei uma das minhas peles de ovelha para se cobrirem e eles dormiram
abraçados para esquentarem um ao outro.
Seu nome era Martina. O do menino eu já não lembro mais. Martina
era ruiva, tinha os cabelos longos no meio das costas e sardas nas maçãs do
rosto e no nariz. Era mais alta do que eu e tinha dedos longos e finos. Falava
baixinho como se não quisesse causar incômodo algum. Já na primeira manhã
conosco, disse que não iria comer nossa comida, que iria sair e dar um jeito de
arranjar algo. Dividi o pão e a água entre todos. Não tinha a intenção de tirar
comida da boca dos meus irmãos para colocar na deles. Não mesmo. Tivemos a
sorte, porém, de, uma semana antes da chegada inesperada à nossa porta, os
alemães terem lançado uma das cargas de suprimentos para as suas tropas um
pouco antes da hora e uma corrente de vento ter trazido o paraquedas para
dentro da cidade e o pacote ter caído a poucos metros de nossa casa. Um homem
mais velho com um chapéu surrado sobre a cabeça se abraçou à preciosa caixa de
um lado enquanto eu fiz o mesmo do outro. Discutimos por um instante e combinei
com ele de soltarmos ao mesmo tempo e dividirmos aquilo entre nós. Ele pensou
por um momento e balançou a cabeça afirmativamente. Quando ele largou o pacote e
se pôs de pé, eu, em apenas um movimento, peguei o rifle que tinha deixado no
chão e disparei um tiro em seu peito. Apenas um tiro. Ele caiu de costas com os
olhos bem abertos. Peguei a caixa e espantei os outros famintos que se
aproximavam do presente caído do céu como lobos se aproximam de sua presa antes
de abatê-la. Depois de ameaçar muito e ter de empurrar alguns que não viam na
arma um perigo maior do que a fome, trouxe a conquista para casa. Não me
orgulho disso, mas um homem não é obrigado a ser confiável quando luta por sua
vida.
Martina era encantadora e não demorou muito para que me
apaixonasse por ela. Seus gestos mínimos, sua disponibilidade para ajudar em
tudo, sua organização, seu cuidado para com meus irmãos. Levei quase dois meses
para lhe roubar um beijo. Ela se assustou, mas retribuiu. Martina foi a
primeira mulher com quem me deitei. Seu corpo era frágil, mas quente. Nos
amamos em silêncio enquanto explosões clareavam a noite.
De modo geral, a presença de Martina e do irmão não
dificultaram nossa vida de penúria. Tudo
o que eu oferecia era recebido com brilho nos olhos e retribuído com muitos
agradecimentos. Tivemos apenas um problema durante a estadia deles conosco.
A casa já adormecia quando eu ouvi um barulho vindo da
dispensa de alimentos. Levantei-me e silenciosamente caminhei até lá, onde
encontrei o irmão de Martina roubando pão. Puxei-o pela gola da camisa e o
trouxe arrastado até o lugar onde dormia com a irmã. Ele se debatia e gritava
pedindo para largá-lo. Todos na casa acordaram. Empurrei-o para o chão e disse
que o tinha pego roubando comida. Ele negou, disse que era mentira minha.
Martina o segurou pelos ombros e perguntou olhando nos olhos dele se estava
roubando. Ele admitiu. Disse que estava com muita fome e que não aguentou. Ela
mandou ele ir dormir e falou que iríamos resolver a questão pela manhã. Roubar
comida de quem lhe alimenta, lhe dá um teto e lhe aquece não é digno. Se fosse qualquer
outra pessoa, eu teria estourado os miolos com uma bala entre os olhos. Mas ele
era irmão dela e, por isso, poupei-lhe a vida. Martina, porém, castigou o irmão
e lhe deixou dois dias sem pão. Comeu apenas a carne enlatada do almoço.
Depois de tanto tempo de cerco, já havíamos nos adaptado aos
hábitos que a privação nos obrigou a adotar. Eu e meu irmão íamos todos os dias
pela manhã buscar água no rio. No inverno, tínhamos de nos equilibrar sobre o a
água congelada e encher nossos baldes em uma estreita abertura feita no gelo. O
ar pesado de fuligem e poeira dificultava nossa respiração, provocando
rouquidão crônica e tosse constante. Vivíamos no limite que nossa saúde
permitia.
Sem veículos para transporte, todos se deslocavam pela
cidade à pé. Hordas caminhando silenciosamente, com seus frágeis corpos
curvados e a cabeça baixa. Eu fazia de tudo para que meus irmãos ficassem o
menor tempo possível fora de casa. Por mais que a morte esteja ao redor da
gente e que a iminência dela cruzar conosco seja uma constante permanente,
perceber que ninguém mais chora pela perda de seus irmãos, ninguém mais chora
pela perda de seus filhos, é algo perturbador. Isso mexe com a cabeça da gente
de um jeito que eu sabia que não iriam conseguir lidar. Era impossível dar três
passos sem tropeçar, sem ter de desviar dos corpos magros caídos no chão. Eu
não queria que essas imagens ficassem gravadas na memória deles para o resto de
suas vidas. Já estavam na minha. Ainda estão.
De alguma forma, tentei transformar a nossa casa em uma
fortaleza. Um refúgio no qual, apesar das dificuldades, mantínhamos protegidos
os nossos sonhos e esperanças. Apenas a presença de Martina entre nós já era
suficiente para suavizar a aspereza daqueles dias. Por mais bombas que caíssem
do lado de fora, por mais gritos em desespero que ouvíssemos, ela nos trazia a
calma. Por vezes, Martina lembrava minha mãe. Ambas carregavam consigo uma aura
que enchia de tranquilidade os lugares onde estavam. Martina era pura ternura. Uma
ternura repleta de coragem. Durante os meses em que estivemos juntos, era nela
que eu buscava forças para seguir em frente. Era na sua serena sabedoria
juvenil que eu me aconselhava nas horas mais escuras. Ela sempre sabia o que
dizer. E quando não dizia nada e apenas segurava minha mão com força, eu sentia
a sua energia me recarregando.
Com a proximidade do inverno, as esperanças de sobreviver
para ver o fim daquilo se esvaiam a cada grau a menos nos termômetros. Junto
com o frio, porém, surgiam notícias de que o inimigo vinha sofrendo derrotas em
outras partes de nossa terra. Ainda era possível, portanto. Ainda era possível
vencer, ainda era possível expulsá-los, ainda era possível acabar com o cerco.
Precisávamos perseverar.
Naquela época, não sabíamos que o cerco estava no fim. Nós
sequer imaginávamos. Todos nós, nascidos e criados em meio ao gelo, não víamos
no inverno um grande perigo. A fome era o perigo. Martina e eu decidimos não
deixar mais os pequenos saírem à rua sozinhos. Os boatos de desaparecimentos de
crianças que seria mortas e teriam sua carne vendida para saciar os famintos
cresciam. Não sei o que era verdade e o que não era, mas os boatos aumentavam e
não podíamos arriscar. Passei a fazer todas as tarefas que exigiam circular
pela cidade enquanto Martina ficava em casa com as crianças.
Sair sozinho fazia com que eu prestasse mais atenção no que
ocorria. Baterias antiaéreas espalhadas por todos os lados, casamatas de
concreto, ninhos de metralhadora. Havia um certo clima de segurança de que, se
o inimigo fizesse uma investida para invadir a cidade, poderíamos resistir e
repeli-lo. A grande guerra patriótica fez isso com a gente. Mesmo na iminência
da aniquilação, ainda que não houvesse uma saída, acreditar era a saída. Era só
o que nos restava, acreditar.
O clima no QG da defesa era de raro otimismo. Eu ainda
passava por lá de vez em quando para ver se conseguia algo desviado para levar.
Mas até isso foi escasseando com o tempo. Voltava para casa em uma dessas vezes.
Fazia tanto frio que, mesmo usando luvas, nãos sentia a ponta dos dedos. Meus
lábios sangravam por rachaduras verticais. Os corpos em decomposição caídos
pelas ruas já não cheiravam tão mal e, por isso, de certa forma, dávamos graças
pela chegada dos dias gelados.
Eu estava a uns seis quarteirões de minha casa quando vi o
bombardeiro. Logo depois, veio a explosão. No mesmo instante, eu soube o que
tinha acontecido. Eu percebi com clareza.
Corri como nunca antes havia corrido. Pulando escombros e
corpos, desviando de paredes destruídas e de postes derrubados. Passando por
crateras e artilharia. Ainda ao longe, pude ver que minha casa estava de pé. O
impacto tinha sido ao Norte dela. Uns 10 metros ao Norte. A parede tinha várias
perfurações de estilhaços, mas continuava firme. Era uma boa casa. Meu pai
havia mandado reforçar a alvenaria logo que a guerra começara, bem antes do cerco. Respirei mais
aliviado, diminui o ritmo dos passos e segui em direção à porta da frente. Tudo
parecia em ordem. Pude ver três mortos próximos ao buraco que a bomba criara.
Não pude distinguir bem, mas pareciam corpos de uma mulher e duas crianças. Mas
não tive certeza.
Foi um grito, um grito agudo e rouco, que me fez voltar às
atenções para a casa. Empurrei a porta e, deitada no chão, estava Martina. Meu
irmão com sua cabeça sobre a coxa esquerda. O irmão dela com sangue nas mãos.
Por um momento, fiquei estático. Levei alguns segundos para processar a
informação visual que chegava a meu cérebro. A explosão, o bombardeiro rasgando
o céu cinza, a fumaça, a corrida para casa, a cratera, os corpos no chão – acho
que eram uma mulher e duas crianças, mas não tenho certeza – as paredes em pé,
o grito.
Martina estava ferida. Não sei como, mas ela sangrava. Virei-me e olhei para a parede. Sim, estava de pé. Como, então? Foi aí
que eu vi os buracos. Pequenos buracos. Estreitos e curtos. Olhei para Martina
novamente. Estilhaços. Fui em direção à ela, afastei seu irmão com um safanão,
me agachei e levantei sua blusa. Uma perfuração. Uns três dedos de tamanho. Ela
ainda gritava. Eu não sabia o que fazer. Disse para os pequenos pressionarem o
ferimento para estancar a hemorragia e saí correndo para tentar
encontrar algum médico, um enfermeiro, enfim, qualquer pessoa que pudesse me
ajudar. Ninguém. A dor, o sangue, a morte, já não comoviam ninguém. O desespero
havia se institucionalizado como algo corriqueiro. Voltei para casa, tirei-a do
chão e a coloquei sobre a cama. Ela ainda sangrava, mas não gritava mais. Segui
pressionando a ferida até que já não havia mais sangue saindo de seu corpo.
Tirei sua blusa, limpei o corte. Ela respirava com alguma
dificuldade, mas estava acordada. Sentei-me ao seu lado e encostei as costas na
parede. Deitei-a e coloquei sua cabeça sobre o meu colo. Ela estava calma.
Ficamos naquela cama por três dias. E, então, ela morreu.
Seus olhos estavam bem abertos. Fixos em mim. Ela estava calma.
A guerra me trouxe Martina, e a guerra a tirou de mim.
Dois dias depois, o cerco se desfez. O inimigo recuou. A
cidade estava livre de novo.
Martina não vivera para ver a festa mórbida nas ruas.
Eu observava aquilo tudo com um misto de incredulidade,
vergonha, asco, alívio e alegria. Finalmente havia acabado. Tínhamos resistido.
Vencemos. Mas a que preço? Martina era uma mártir de uma guerra que não era
dela. Uma vítima invisível em meio às estatísticas. Quem se lembraria dela? Seu
nome não constaria nos registros históricos. Não havia uma lápide sobre seu
corpo enterrado nos fundos da casa. Ela e seu sacrifício só existiriam em nossa
saudade.
O martírio chegara ao fim, mas a maioria de nós não tinha
sequer forças para celebrar. Martina e os quase um milhão de nossos irmãos que
pereceram no decorrer daqueles 900 dias eram a voz do que se passara naquela cidade
para a História. Quando os vivos já não podem falar, os mortos falam no lugar
deles. Os nossos mortos gritariam pela eternidade.
Eu tinha sobrevivido. Já não era o mesmo, tinha cicatrizes
que não iriam se fechar com o tempo. Perdi meus pais, perdi amigos, perdi um
amor.
Ainda assim, agora que as peças haviam se movimentado no
tabuleiro e nós estávamos em vantagem, eu não queria vingança, eu não sonhava
com justiça.
Ao fim de tudo, apenas uma coisa vinha à minha cabeça.
Eu desejava, do fundo de minha alma, que, na hora de suas
mortes, eles pensassem nas nossas mortes. Teriam de viver com isso. Para mim,
bastava. Não queria e não precisava de nada mais.