sábado, 14 de maio de 2016

Quando o sol se punha por trás dos morros a Oeste da cidade

Houve uma época de minha vida em que eu me via como uma pena em meio a um furacão. Qualquer pequeno movimento do ar me afetava e me percebia totalmente insignificante em meio a tudo o que ocorria ao meu redor. Eu tinha 12 anos de idade e me sentia invisível dentro de minha própria casa. Quando não estava na escola, passava a maior parte do tempo dentro do meu quarto. Não havia conversa, não havia atenção, não havia carinho.

Eu tinha de me virar. Com 12 anos de idade, eu tinha de me virar. Ninguém estava preocupado com as minhas notas no colégio, ninguém me repreendia por dormir muito tarde, ninguém queria saber se eu havia escovado os dentes após o almoço. Eu vivia em um ambiente anárquico e não gostava disso. Quando somos crianças, o que mais queremos é a liberdade, mas o que mais precisamos é de controle. Normalmente, só percebemos isso quando somos adultos. Eu não. Eu me sentia perdido. Um órfão morando com os pais.

Foi um período bem difícil aquele. Minha irmã mais velha se tornara uma rebelde que fazia questão de testar até aonde poderia ir sem quebrar a cara pra valer. Recordo que a transformação pela qual ela passou me chocou de um modo intenso. Em três meses, deixou de ser a menina que era o orgulho do papai, primeira da turma, estudante de piano clássico, e se tornou uma garota punk, com piercing no nariz e no lábio, que usava roupas de couro e jeans rasgados, coturno velho e cabelos desgrenhados. Eu até que achava legal essa nova irmã. Ela era um sopro de ar fresco naquela casa que cheirava a mofo. Meus pais, porém, não passavam um dia sem desferir sua ladainha moralista contra o que chamavam de “despautério adolescente”. Eu não sabia o que era um despautério, mas podia imaginar que não devia ser algo muito bom.

Enquanto tentavam reverter a transformação de minha irmã, meus pais viviam o seu próprio turbilhão no processo que, depois, viria a resultar no divórcio. Aos meus olhos infantis, eles agiam com uma irracionalidade bestial. Era tudo muito confuso, não havia pausa. Palavras e mais palavras atiradas contra o outro com a única intenção de machucar.

Os gritos. Os gritos sempre me faziam mal. Eu me trancava no quarto e tampava os ouvidos com as mãos. Ficava cantando para tentar não ouvir. Mas sempre ouvia. Os gritos.

Eu não tinha amigos nessa época. Acho que uma coisa influenciava a outra. O conturbado ambiente familiar fez com que me isolasse, tanto dentro de casa quanto fora dela. Na escola, costumava ficar sozinho o tempo todo. Não fazia trabalhos em grupo, não participava das brincadeiras no recreio. Eu gostava muito de desenhar. Tinha talento para isso. Carregava sempre comigo um caderno com folhas brancas e um estojo com lápis de diversos tipos. Não usava cores. Tinha predileção pelo grafite. Era nas páginas daquele caderno que eu criava o meu mundo. Ali, despejava o que sentia. Ele era, ao mesmo tempo, a família que me ignorava e o amigo que eu não tinha.

Com o passar dos meses, comecei a ficar cada vez menos tempo em casa. Meu quarto já não me protegia mais. Foi quando ouvi o primeiro tapa (ou teria sido um soco?), seguido do primeiro choro, que soube que precisava de um novo refúgio. Na garagem, jazia a antiga bicicleta da minha irmã. Ela era branca, com linhas curvas e um cesto em frente ao guidão. Estava empoeirada, com os pneus murchos e a correia precisava de um pouco de graxa, mas, de resto, permanecia impecável. Tirei-a de lá e a limpei com carinho. Levei à borracharia que ficava a três quadras de casa, onde os pneus foram consertados e o borracheiro, que conhecia meu pai, fez questão de lubrificar a correia para mim.

A partir de então, comecei a me afastar de casa sempre que podia. Aquele ambiente estava me tornando uma pessoa que eu não queria ser. Nunca quis ser um solitário. Nunca quis. De certa forma, aquela bicicleta velha de menina foi a minha salvação. Ela me mostrou que existia vida fora daquele quarto.

Ficava o dia inteiro na rua. Por todas as ruas em que passava, as pessoas ficavam olhando para mim. Eu era um menino pequeno andando em uma bicicleta grande de menina. Não me importava com isso. Não me importava nem um pouco. Só voltava para casa quando o sol se punha por trás dos morros a Oeste da cidade.

Minha irmã foi detida por posse de drogas em uma sexta-feira à noite. Nada demais, apenas uma trouxinha de maconha. Era para consumo próprio, ela não era traficante. Meses depois, ela me confessou que nem era dela, e sim do namorado, que era maior de idade. Ela, aos 16 anos, assumiu a culpa para ele não se dar mal. Meus pais tiveram de ir à delegacia. Ela era primária, estudava, tinha endereço fixo, e meu pai trabalhava para uma das mais famosas bancas de advogados da cidade. Foi liberada na mesma noite.

Aquele fato gerou outra discussão. Uma das grandes. A maior delas, talvez. Eles começaram a brigar ainda na sala do delegado, seguiram pelos corredores e pelo pátio da delegacia, continuaram dentro do carro e deram prosseguimento em casa. A coisa foi feia de verdade. Eles se acusaram, dedos em riste. Os gritos. Os gritos. Vaso contra a parede. Minha irmã e eu calados. Porta batendo. Pneus cantando na garagem. Minha mãe sentada à mesa da cozinha segurando a cabeça com as mãos.

Meus dias continuavam os mesmos, mas o seguinte era sempre diferente do anterior. Descobrindo novos lugares, vendo novas cores, sentindo novos perfumes das flores que brotavam a cada estação. Eu, os meus desenhos e a minha bicicleta feminina. Todo o tempo em que estava perambulando ou sentado sob a sombra de alguma árvore desenhando, eu buscava esquecer das coisas que aconteciam dentro de minha casa. Nunca consegui.

Não precisava cruzar o portão da frente nos fins de tarde para começar a ouvir que nada havia mudado. Tudo continuava igual. Meus pais já não dormiam no mesmo quarto. Minha irmã chegava em casa cada vez mais tarde, mas eu não via isso como um problema. Ela estava se divertindo. Isso não é ruim. Acho que, assim como eu, ela havia encontrado uma válvula de escape. No meu caso, era a bicicleta e os desenhos. No dela, as festas, a bebida, os beijos descompromissados. Eu não via muita diferença.

Setembro havia chegado e, junto com ele, uma estranha calmaria. Um silêncio há muito tempo esquecido tomou conta de tudo. Nos quartos, na cozinha, na sala, na varanda. Não se ouvia nada. Nem um cochicho. Apenas o farfalhar das folhas das árvores quebrava a monotonia daquele lugar. O ódio havia dado lugar à indiferença.

Estar naquela casa passou a ser uma tortura para mim. Os xingamentos ainda ecoavam e eu podia os ouvir mais altos, mesmo em silêncio. Minha mãe vivia em um permanente estado de prostração. Ela não se queixava de nada, nunca reclamava. Dificilmente, aliás, era possível ouvir a sua voz. Havia emagrecido, mas mantinha a beleza de outrora. Os traços finos, os olhos amendoados e negros, os cabelos castanhos, agora curtos. Ela era uma mulher alta, de ombros largos e silhueta esguia. Sempre fora muito elegante. Atraía os olhares de todos por onde passava. Agora, no tempo em que ficava em casa, passava assistindo televisão ou lendo livros velhos que há muito jaziam empoeirados na estante da sala.

Meu pai, por sua vez, raramente era visto em casa. Acordava muito cedo, antes de o sol nascer, e saía. Tomava o café da manhã na rua e ia para o trabalho. Ele era o responsável pelo departamento financeiro de um escritório de advocacia. Não ganhava mal, mas o tédio daquele lugar escuro e apertado o corroía. Quando criança, sonhara em ser piloto de avião. Era um sonho difícil, mas possível de ser realizado. Na juventude, desejou ele próprio ser um advogado. Participar de grandes julgamentos, proferir contundentes discursos. Vestido com o terno de meu avô, gravata bem alinhada e cabelo penteado para trás com gel, chegava a passar horas ensaiando em frente ao espelho. Agora, quando chegava em casa à noite, minha mãe já dormia no quarto de casal. Ele tomava banho, bebia um copo de leite com uma fatia de pão, arrumava suas roupas de cama sobre o sofá e se deitava para, no dia seguinte, recomeçar tudo de novo.

Já não havia mais brigas e, de certa forma, isso me deixou, ao mesmo tempo, feliz e triste. Feliz, porque eu não gostava das brigas. Não gostava de nenhum tipo de briga. Sempre fui muito racional. Achava, mesmo ainda jovem, que, quando duas ou mais pessoas tinham de apelar para uma disputa física para resolver um desentendimento, era sinal de que elas haviam falhado como seres humanos e nós, ao seu redor, por permitir aquilo, fracassado como sociedade. A tristeza, por sua vez, se abatia sobre mim porque eu percebia que, em sintonia com o distanciamento, com a inexistência de ódio, com a indiferença, o amor também havia desaparecido. Eu vivia em uma casa em que não havia uma gota sequer de amor. Nem um pequeno resquício abandonado em um canto qualquer. Não existia mais amor entre meus pais e isso era ruim, mas não era o pior. O pior era sentir que não havia mais amor entre eles e nós, minha irmã e eu. Era como se tivéssemos deixado de existir para eles. Tornamo-nos fantasmas dentro de nossa própria casa.

Era final de novembro, uma quarta-feira pela manhã, bem cedo, quando vozes estranhas me acordaram. Levantei da cama e caminhei, descalço, pelo corredor, de onde espiei e vi meu pai e minha mãe sentados frente a frente na mesa de jantar. Ao lado deles, dois homens engravatados. Eles faziam anotações e remexiam papéis que tiravam e voltavam a guardar em pastas translúcidas de plástico. Meus pais pouco falavam e, quando o faziam, não se dirigiam um ao outro. Faziam comentários ao pé do ouvido dos homens engravatados que conversavam seriamente entre si.

Eu não sabia do que se tratava a conversa, mas reconheci um dos homens. Já o havia visto uma vez, quando meu pai me levara para o trabalho, pois minha mãe tinha de visitar uma irmã doente e iria ficar dois dias fora da cidade. Ele era um dos advogados do escritório.

Mais três encontros como aquele ocorreram até meados de dezembro. Já fazia três semanas que meu pai havia deixado a nossa casa quando o último deles aconteceu. Após os dois assinarem algumas folhas de papel, os homens engravatados apertaram as mãos, trocaram tapinhas nas costas e risinhos discretos antes de se despedirem e irem embora.

Somente alguns dias depois, fui saber que os papeis assinados naquela manhã oficializavam a separação. Não fiz muito caso ao ficar sabendo. Não iria mudar nada para mim. Eu nutria a esperança, porém, de que, ao se sentirem livres um do outro, meus pais voltassem a viver em plenitude. Juntos, mesmo que só no papel, eles viviam uma vida pela metade. Separados, poderiam voltar a serem inteiros, serem eles mesmos e não parte de algo que terminou antes do planejado.

Depois do divórcio, minha mãe voltou a sorrir. Flores podiam ser vistas por toda a casa. As cores e os perfumes inundaram os ambientes. Havia mais luz, janelas abertas. Não havia passado um mês e ela já tinha conseguido um emprego. Meio período em uma loja de departamentos. Seis meses depois, namorava. Eu voltara a receber a atenção que já havia me esquecido que um dia recebera. Minha irmã mantinha a rebeldia, mas estava mais suave. As coisas, enfim, haviam melhorado.

Meu pai seguia trabalhando no escritório. Nenhuma nova paixão cruzara o seu caminho. Sua sala continuava escura e ainda cheirava a mofo. Ele permanecia infeliz. Era o mesmo homem que sempre fora.

De tudo o que vivi naqueles meses turbulentos de minha infância, o que me marcou de verdade e que eu carrego comigo até hoje, mais de vinte anos depois, são as certezas de que nossa felicidade não depende de ninguém, de que o amor não resiste a um espírito covarde e de que uma bicicleta, uma folha de papel e um conjunto de lápis podem ser os melhores companheiros de um jovem coração solitário.

Minha mãe voltou a se casar, meu pai morreu de um ataque cardíaco fulminante. Minha irmã se formou em Psicologia e eu ganho a vida escrevendo uma coluna semanal sobre literatura para um jornal da cidade. Não tenho filhos. Ainda carrego comigo o caderno de desenhos.