Faltavam sete
minutos para as cinco horas da manhã quando ele despertou. Sabia que iria matar
naquela noite. Seus dedos formigavam.
Uma garganta
cortada. Um corpo na areia à beira do lago.
Não fazia aquilo
por mal. Sentia uma espécie de compulsão. Algumas pessoas precisam de sua hora
de exercícios logo após o amanhecer, outras não conseguem dormir sem uma dose
de uísque puro. Ele precisava matar.
Não sentia
remorso, pois não entendia fazer algo errado. Era um hábito que adquirira e
que, agora, depois de tantos anos, não se via mais em condições de abandonar.
Cedo naquela
manhã, enquanto tomava uma batida de banana com leite e comia torradas
lambuzadas com mel, lia o jornal com a habitual tranquilidade. Tinha interesse
especial pela sessão de quadrinhos e pelas páginas de esportes. Gostava muito
de tênis e até arriscava alguns saques, rebatidas e voleios nos finais de
semana sempre que podia. Lhe fascinava a elegância dos movimentos, o girar dos
quadris a cada backhand, o bailar das pernas em cada subida à rede, os saltos
acrobáticos quando de um smash. Era o balé na quadra que o encantava e não o
jogo em si. Não se importava muito com quem ganhasse ou perdesse, desde que lhe
apresentassem um espetáculo para os sentidos. Naquele dia, havia uma boa foto
vertical de um tenista que ele não conhecia muito bem, mas que tinha um nome
cheio de consoantes e, estranhamente, exibia largas costas de nadador, algo
pouco típico em um atleta das quadras. Como de praxe, recortou a imagem e a
colocou em seu álbum, junto com todas as outras.
Vestiu-se,
conferiu o penteado no espelho, perfumou-se e saiu. Trabalhava em um banco.
Atendia as pessoas. Era o responsável pela autorização de empréstimos e pela
concessão de linhas de crédito imobiliário. Passava o dia ouvindo histórias
tristes de gente que precisava muito do dinheiro para pagar a cirurgia de um
parente qualquer e histórias fofas de gente que sonhava em comprar uma casa e
iniciar uma vida nova em seu próprio cantinho.
Ele se
emocionava com cada drama que ouvia. Assassinos também têm coração.
Levava em um
estojo dentro da mochila uma faca de açougueiro curta, com a lâmina curvada e
cuidadosamente polida. Achara a faca quando tinha 13 anos de idade, no fundo de
um baú com coisas que haviam pertencido ao seu avô materno. O velho, Carmelo,
era um imigrante italiano da Toscana que veio ganhar a vida como açougueiro na
América. As histórias familiares diziam que ele era muito bom no que fazia.
Tinha mãos firmes e precisas, e um corte rápido e limpo.
Ele gostava
daquelas histórias. Sentia não ter conhecido o avô. Parecia ter sido um homem
de princípios. Um chefe de família rígido, rude, iletrado, mas um homem digno,
autodidata em seu ofício e, acima de tudo, consciente da importância daquilo
que fazia. O que seria do mundo sem os açougueiros? Preferia nem pensar nisso.
Seu avô havia sido um açougueiro famoso na comunidade e ele tinha orgulho.
De Carmelo,
herdara a faca de lâmina curta e curva, o modo de gesticular com as mãos e a habilidade
no corte da carne.
Aquele dia de
trabalho foi bastante agitado para ele. Pela manhã, atendera cinco pessoas.
Todas elas precisavam de dinheiro emprestado. Uma mãe de meia idade que queria
comprar um computador novo para os filhos; um homem beirando os 40 que necessitava
quitar dívidas de jogo; um senhor com seus oitenta e tantos que tinha de pagar
os custos do enterro de sua esposa; um jovem na casa dos 20 que estava ansioso
para comprar o anel de noivado para sua amada; e uma moça beirando os 18 que
não tinha dinheiro para pagar a fiança do namorado. Concedeu o dinheiro a
todos, menos à moça da fiança, pois ela era menor de idade. À tarde, encaminhou
três contratos de financiamento imobiliário que lhe tomaram muito tempo e um
pouco de bom humor. Ainda assim, mesmo cansado, mostrava-se um rapaz simpático
e educado com todos. Mantinha a fala rápida e o olhar interessado que tanto
encantavam os clientes do banco. Por isso, era o funcionário queridinho do
gerente.
Fazia sol quando
o expediente acabou. Saiu do trabalho e foi dar uma caminhada pelo parque
central. Gostava de olhar o movimento de fim de tarde. Observar os tipos que
frequentavam o lugar. Começava a escurecer quando resolveu ir a um pub que
ficava a algumas poucas quadras dali. Por quase três horas, bebeu cerveja
escura sentado junto ao balcão.
Olhava o entra e
sai buscando compreender o que levava as pessoas àquele lugar sujo, escuro e
impregnado com cheiro de vômito de dezenas, quem sabe centenas, de bêbados que despejaram
ali mesmo, no chão do salão, o que levavam em seus estômagos já cansados de
serem tão maltratados.
Era geralmente
em lugares como aquele que ele escolhia suas vítimas. Não era uma escolha
aleatória. Tinha dias em que demorava muito e só lá para o fim da madrugada,
início da manhã, encontrava o que procurava. Ele não se via com um caçador. Ao
contrário, enxergava-se como um penhasco que atraia os desesperados. Sentia que
o senhor destino mexia seus pauzinhos e colocava em seu caminho as pessoas certas,
aquelas que procuravam força ou esperavam a última gota transbordar a sua vida
cheia de tristezas e derrotas. Apenas fazia aquilo que eles próprios não tinham
coragem suficiente para fazer. Assumia o fardo do trabalho sujo. Carregava o
peso de cada vida que ceifara.
Não se sentia
mal por isso. Prestava favores a pessoas que não haviam lhe pedido ajuda, mas
que precisavam dela. Ao menos, era assim que pensava. Era um trabalho como
qualquer outro. A diferença é que ele não era contratado por ninguém e não
cobrava pelos serviços prestados.
Naquele dia,
fazia pouco mais de meia hora que estava bebericando e observando cada um que
entrava no bar, quando viu cruzar a porta uma jovem de cabelos negros e
olheiras profundas sob os olhos.
Ela vestia uma
jaqueta de couro sobre uma camiseta de banda de rock. Ele não conseguiu
identificar qual era a banda com a iluminação fraca do lugar. Calças jeans
surradas e tênis de solado baixo. Ela estava sozinha e se sentou em uma
poltrona mofada que ficava num canto. Ninguém sentava naquela poltrona. Ela era
velha, fedia e ficava quase ao lado da porta do banheiro. Apenas uma pessoa que
já não tinha mais nada a perder, que desistira de sua vaidade, que não cultivava
perspectivas, se sentaria naquela poltrona.
Era esse tipo de
pessoa que lhe atraía. De certa forma, acreditava que cumpria uma missão.
Aquelas pessoas das quais arrancava a vida lhe encontravam. De um modo ou de
outro, acabavam lhe encontrando. Ele não procurava ninguém. Nunca havia
procurado. Era um instrumento pelo qual algum tipo de força maior agia.
Respondia a um chamado que não sabia de onde via, mas que ouvia em seu íntimo.
Sentado em seu
banco alto em frente ao balcão, observava a moça atentamente. Não olhava
fixamente para ela. Sua análise não podia ser ostensiva a ponto de a deixar
desconfortável e fazer com que ela fosse embora antes de ele ter um diagnóstico
completo e totalmente confiável.
Tinha de se
aproximar sem ser notado. Encostar nela sem sair do lugar. Sentir o que ela
sentia sem saber o seu nome. Para isso, necessitava da combinação perfeita
entre tempo e espaço. Precisava se conectar com a garota. Vibrar na mesma
frequência que ela. Sentir em seu peito o bater do coração que batia no peito
dela. Só depois disso, apenas após encontrar-se envolto da energia emanada por
ela, poderia saber se estava correto em sua impressão inicial. Às vezes, ficava
por horas tentando encontrar o ponto certo de equilíbrio e, ainda assim, não
chegava nem perto. Em outras ocasiões, porém, bastavam cinco minutos para ter
certeza de que aquela era a pessoa que estava destinada a ele.
Nunca se
arrependera de um assassinato. Nunca perdera o sono por ter matado.
Ela bebia em silêncio
um uísque sem gelo. Por vezes, ele tinha a impressão de que ela também o
observava furtivamente. Ela era de uma discrição total. Gestos contidos,
expressão plácida. À distância, ele tentava desvendar o mistério que ela
representava. Era diferente de todos os outros alvos. Não dava sinais, ocultava
as pistas. Dificultava seu trabalho ao extremo. Ele gostava disso.
Sentia-se
desafiado. Ela atiçava nele um desejo de conquista que era mais curiosidade do
que posse. A cada minuto que passava, tinha mais certeza de que era ela. Fora
colocada em seu caminho para que ele pudesse provar para si mesmo que estava
desenvolvendo seus instintos, que podia ir além do óbvio, podia encontrar o
inseto embaixo da pedra.
Ela era um ponto
de interrogação em meio à penumbra e ele não encontrava a resposta. Nem chegava
perto. Olhava mais e mais para ela. Colocava sua missão em risco, mas não
conseguia fingir indiferença diante de tamanho magnetismo.
No estojo dentro
da mochila colocada aos seus pés, a faca de açougueiro de lâmina curta e curva
de seu Carmelo pulsava. Seus dedos formigantes tamborilavam no balcão velho de
madeira. A respiração rápida.
Ela parecia
impassível. Não demonstrava reação alguma. Agora, fumava um cigarro.
Despreocupada. Não estava nem aí para o mundo. Não havia um mundo. Não fora
daquele bar, não longe daquela mesa. Seu olhar, ora mirava o copo baixo que ela
mexia para fazer o uísque balançar, ora apontava para o ventilador de teto que
girava lentamente e não fazia vento algum, mas dava um certo ar blasé ao lugar.
Diante do
ineditismo da situação, ele começou a duvidar de si mesmo, da sua capacidade,
do seu dom. Teria perdido seus poderes? Não, não era isso. Ela o levava ao
limite, o fazia seguir por caminhos desconhecidos. Pensou em mudar sua
estratégia. Levantar, se aproximar, pedir licença, puxar uma cadeira, sentar
junto e puxar papo. Nunca fizera isso. Nunca pensara em fazer isso. Mas, nunca,
também, se vira em um cenário como aquele. Não sabia o que fazer. Admitiu para
si mesmo que não sabia o que fazer. Depois de tantos anos naquilo, via-se como
um iniciante. Tateava no escuro.
Já tinha perdido
a noção do tempo quando percebeu que ela se levantara, deixara algumas notas de
dinheiro sobre a mesa e já cruzava a porta em direção à rua. Levantou-se de um
salto e deu passou rápidos rumo à saída quando ouviu seu nome gritado pelo
atendente do balcão. O homem gritou três vezes até ele ouvir. Voltou, pagou a conta,
e saiu correndo. Na calçada, percorreu com os olhos a rua já vazia àquela hora
da noite. Ela não estava lá. Ela não estava em lugar algum.
A tinha perdido.
Pela primeira vez, tinha perdido um de seus alvos. Não poderia seguir adiante
sem fazer o que tinha de ser feito. Ainda sob o efeito da adrenalina secretada
em seu corpo, tinha os sentidos aguçados como os de um caçador no meio de uma
floresta fechada. Sentiu no ar o cheiro de cigarro barato, o mesmo tipo que ela
tragava no bar. Seguiu a passos rápidos a trilha de fumaça até que ela
desapareceu. Havia caminhado uns dois quilômetros, mais ou menos. Entrou em um
boteco, um muquifo onde vagabundos da noite bebiam cerveja barata e falavam
banalidades à espera do amanhecer enquanto esqueciam de suas vidinhas
ordinárias. Perguntou ao homem no caixa se ele havia visto uma mulher com as
características dela. O homem disse que sim, que uma moça igual àquela que ele
descrevera havia estado ali há alguns minutos, comprara chicletes e partira.
Ele agradeceu com um aperto caloroso de mão – que carregava consigo uma nota de
vinte pratas – e saiu ao encalço dela.
Caminhou por pouco
mais de 10 metros, e viu no chão uma embalagem. Abaixou-se e a pegou,
percebendo que se tratava do doce que ela tinha comprado no bar. Havia deixado
uma pista. Conscientemente ou não, ela havia deixado uma pista para ele seguir.
E ele seguiu. Uma a uma. Uma bagana de cigarro. O chiclete já mascado e cuspido
no chão. Uma pegada na terra molhada pelo sereno da madrugada. Outra bagana.
Quando deu por
si, estava perto da Usina. Àquela hora, o movimento nas ruas era bem fraco.
Alguns poucos transeuntes caminhando solitários, um casal trocando intimidades
na praça, um mendigo revirando as cestas de lixo, três jovens fumando um
baseado sentados sob uma árvore.
Ao longe, em
meio à penumbra, conseguiu visualizar uma silhueta. Apenas um vulto, mas teve
certeza de que ela era. Sentiu a energia de novo. Apertou o passo. Não poderia
perdê-la mais uma vez. Atravessou a avenida em disparada. Não gostava do que
estava fazendo. Sempre fora discreto em suas abordagens. Nunca despertou
suspeitas. Nenhuma. Agora, estava correndo em desespero pelas ruas atrás de seu
alvo.
À beira do lago,
procurava na areia pegadas que pudessem indicar para onde ela teria ido. Na
escuridão, precisava sentir a sua presença mais do que vê-la. E foi assim que,
de repente, um ar quente de respiração bafejou sua nuca. Por não mais do que
apenas um instante, ficou estático, sem nenhum movimento, sem pensar em nada.
Não precisou olhar nos seus olhos, sentir o seu cheiro, para saber que era ela.
Não precisou se virar para compreender o que acontecia ali. Finalmente entendia
o que aquele sentimento pela manhã, o que aquele encontro no bar, o que aquela
perseguição pela noite significavam.
Havia sido um
tolo presunçoso. Achara que era único. Percebia, agora, porém, que fora uma
marionete em um jogo do qual não tinha noção de que estava participando. Não
cumpria uma missão, ao menos não uma missão pessoal. Não era um enviado de uma
força superior.
Lembrou de
Carmelo. O avô que chegara àquela terra sem nada e que se fez homem à base de
seu trabalho. A habilidade com as facas herdada do velho. Talvez conseguisse,
se fosse rápido o bastante...
Levou a mão na
mochila, mas não teve tempo sequer de tocá-la. A mão esquerda em seu ombro, o
movimento preciso da lâmina rasgando a garganta
No chão,
enquanto se engasgava com o próprio sangue, olhou para ela. Não enxergou
remorso ou pena ou qualquer tipo de sentimento em seu olhar frio.
...
Era esse tipo de
pessoa que a atraía. De certa forma, acreditava que cumpria uma missão. Era um instrumento
nas mãos de algo maior. Respondia a um chamado.
Faltavam doze
minutos para as três horas da manhã quando deitou-se para dormir. Sobre a
cômoda ao lado da cama, a navalha que havia sido de seu pai, que fora barbeiro.