Estranho foi ouvir tua voz e não reconhecer teu rosto. Era como se as minhas lembranças sobre ti estivessem guardadas em caixas, separadas umas das outras. A algumas, eu tinha acesso irrestrito e, em outras, sequer podia tocar.
Eu sabia que estavas ali. Nunca me enganaria. Era você. Aquela voz. Meio sussurro, meio canto. Era única.
Fazia calor, as pessoas falavam alto e riam sem motivos. Os copos tocavam-se em brindes desnecessários e abraços sem carinho eram trocados por todo o lado. Garrafas de champanhe eram abertas por jovens já embriagados e fogos espocavam em um céu de escassas nuvens.
Era tudo muito festivo, tudo muito alegre. Celebrava-se o tempo. Nada mais do que isso. Aquelas pessoas em êxtase celebravam a passagem do tempo. Eu não via muito motivo para isso. O tempo corria continuamente, porque diabos um instante merecia mais importância do que o seu anterior, ou posterior? Não fazia sentido para mim. Sequer estava lá porque realmente queria estar. Iria ficar em casa, como ficaria em outro dia qualquer. Mas alguns amigos insistiram tanto, fizeram chantagem emocional, me buscaram e prometeram me levar de volta, que acabei cedendo. Não iria me fazer mal. Rever algumas pessoas, beber um pouco, comer de graça.
Eu nunca havia passado a virada de ano na praia. É engraçado como as pessoas romantizam isso. Não faz diferença alguma. É a mesma coisa em todo o lugar. Mas, na praia, é especial, é o que dizem. O clima é diferente. Sempre achei que são as pessoas que fazem o clima. Se você está acompanhado das pessoas certas, não importa o lugar. Minhas principais lembranças de lugares que visitei na vida estão ligadas a presença de pessoas neles. A violinista que conheci no metrô de Paris, o mendigo filósofo nas ruas de Roma, o cantor de ópera no bar de Montevidéu. Eu lembrava das pessoas, e elas me faziam recordar do lugar. Mas isso não valia para o réveillon. No réveillon não importa com quem você esteja. Se estiver na praia, tudo fica melhor.
A noite seguia como todas as noites como aquela em todos os anos seguiam. Não havia nada demais, nada de diferente. Eu já estava prestes a começar a me entediar. Foi quando ouvi a tua voz.
Não consegui perceber de onde ela vinha. Ouvi baixinho, em meio a toda a algazarra de vozes diversas e gritos e risos e flashes e fogos. Ainda assim, mesmo sem te ver, mesmo sem te ouvir por anos e anos e anos, eu soube naquele exato instante que era a tua voz. Foi como reencontrar uma velha amiga. Melhor. Foi como escutar de novo, após muito tempo, uma canção que marcou a sua vida. Entende? Você entende? Claro que entende. Todo mundo teve uma música dessas em algum momento da vida. Uma música que representava não apenas um momento, mas um estado de espírito, e que marcou por ser a única coisa que lhe acalmava nos dias ruins. Assim era a tua voz para mim. Por isso, eu lembro dela até hoje. O jeito como você pronunciava o erre, estalando a ponta da língua no céu da boca para esconder o seu problema de dicção.
Éramos tão jovens. Eu nunca achei que fôssemos ficar juntos para sempre. Nem quando trocávamos juras de amor eterno. Nunca. Nunca nos imaginei juntos em nossa velhice. Agora, porém, eu me pego pensando em como poderia ter sido. Afastamo-nos e não soube mais nada sobre ti. Nenhuma notícia. Sumiste. Não chorei por isso. As coisas acontecem em uma velocidade diferente quando se é mais novo. Nada dura por muito tempo. O tempo é infinito. Mas agora eu me pego pensando em como poderia ter sido.
Te procuro por toda a casa. Nada. Abro a porta e saio. Quem sabe resolveste ir no mar, pular as sete ondas, fazer uma oração ao céu estrelado. Sempre gostaste do ar livre. Lembra-se daquela vez da chuva no parque? Claro que lembra. Se me concentrar bem, ainda ouço seu riso solto e sem preocupações.
Engraçado como as ruas estão vazias a essa hora. Todos que não estão na beira da praia, estão em suas casas, celebrando o nada. Agora que os fogos já não iluminam mais a noite, reina um silêncio lúgubre. Garrafas de champanhe jogadas pelo chão. Sentado no meio fio, um rapaz segura a cabeça com as mãos prestes a vomitar. Feliz Ano-Novo!
Na areia fria, repousam os espólios dos excessos que a praia fora testemunha. Nada novo. Curiosa essa necessidade de repetir ritos que nada significam. Acho que isso preenche algum vazio existencial. Sei lá. Não é racional. Soa mais como um ato contínuo de desespero.
Percorri a praia e não te vi. Você não estava lá. Nem um rastro.
Sentado enquanto sentia a onda morrer nos meus pés, o brilho inconstante de algum navio no horizonte negro me fez lembrar da última vez em que tínhamos nos visto. Era noite de Natal. Já não estávamos mais juntos. Eu ainda te amava. Disseste-me que iria viajar, fazer um intercâmbio, um ano, no mínimo. Falaste que não acreditava em relacionamento a distância, que isso nunca funciona, que apenas o medo do fim fazia as pessoas manterem uma relação assim, sem o toque, sem o cheiro. Era a segurança de ter alguém lhe esperando quando da volta, a certeza de que não ficaria sozinho um dia sequer. Você não queria isso. Não era uma acomodada. Não queria ser uma acomodada. Queria a aventura completa. O improviso. Ainda assim, mesmo já não te tendo comigo, eu resolvi ir te ver naquela noite. No jardim da sua casa, eu podia ouvir os risos. Havia muita alegria naquela casa naquela noite. Bati na porta e sua mãe abriu, me dando um abraço e desejando boas festas. Ela me convidou a entrar, mas eu declinei de sua gentileza. Pedi apenas para que ela te chamasse. Você estava radiante. Um pouco bêbada, mas não muito. Um vestido vermelho sangue e o cabelo solto. Nos abraçamos, desejamos feliz Natal um ao outro e eu disse que iria sentir saudades. Você disse o mesmo. Você insistiu para que eu entrasse, comesse algo, me divertisse, mas eu, com um misto de mágoa, orgulho e tristeza, disse que não, que era melhor não. Te dei outro abraço e um beijo na testa, dei meia volta e, depois disso, nunca mais te vi.
Nove anos se passaram até esse réveillon na praia. Até eu ouvir a tua voz.
Depois da meia noite, dos brindes e beijos e abraços, eu sai atrás de ti. Queria te encontrar. Pensei que poderia ser a segunda primeira vez que nos víamos. Imaginei que já não eras mais a mesma. Eu não era. Seria tudo novo. Duas pessoas diferentes que conheciam quem o outro fora no passado, que se apaixonaram por esse outro, e que, agora, quase uma década depois, teriam a chance de recomeçar.
Eu ouvi a tua voz. Era a mesma voz. A voz não mudara.
Talvez tenha sido coisa da minha cabeça. Isso acontece. Não fazia muito sentido. Nenhuma daquelas pessoas que ali estavam faziam parte do nosso círculo de amizades comum. Seria muita coincidência. Coincidência demais.
Mas eu ouvi a tua voz.
Já passava das três horas da manhã quando voltei para a casa da festa. A maioria dos convidados já tinha ido embora. Dos que permaneciam, um casal cochilava no sofá, enquanto duas das mulheres cantavam no karaoquê marchinhas de Carnaval antigas.
Na cozinha, tomei de um gole só uma última taça de champanhe e fui para o quarto para tentar dormir algumas poucas horas. Pela manhã, já voltaria à cidade. Aquela encenação findaria. No instante antes de adormecer, a última coisa que eu pensei foi em como teria sido estranho ter ouvido a tua voz e não reconhecido o teu rosto. Muito estranho.
...
No bolso da mochila dele, no canto ao lado da cama, um bilhete escrito a mão dizia:
“Foi bom te ver de novo
Bj
Lara"
Lara"