Ninguém sabia ao certo quando ela havia se instalado no
número 21 daquela rua. Pelo que todos se lembravam, estava ali desde sempre. No
mesmo lugar, do mesmo jeito. Nada havia mudado. Tudo permanecia como estivera.
As mesmas estantes, luminárias e baús. Até os livros eram os mesmos. Nenhum
volume entrara ou saíra por aquela porta desde o dia em que ela tinha sido
aberta para o público.
Placa ou letreiro algum indicavam que naquela antiga
construção, atrás daquela pequena entrada, resguardada por aquela pesada porta
de madeira, escondia-se um universo particular de histórias nunca contadas.
O lugar era pequeno, com estreitos corredores. A madeira do
piso emitia ruídos a cada passo dado sobre ela. Um cheiro de papel antigo
tomava conta do ar.
Havia apenas uma mesa, sobre a qual repousava apenas um
livro com páginas em branco. Ao lado dele, apenas um lápis. Ao lado do lápis,
um bule cheio de café e uma caneca. A mesa ficava em um canto, iluminada por
dois elegantes candelabros nos quais velas ardiam ininterruptamente.
Aquela não era uma livraria comum. Ali não se vendiam nem se
compravam livros. Ali se reuniam memórias.
Eu lembro até hoje da primeira vez que passei em frente ao
prédio. Chovia uma chuva fina, dessas que a gente mal sente tocar na pele e,
quando a toca, molha como se acarinhasse. Aquele não havia sido um bom dia. Lembranças
que eu achava que tinha guardado em algum lugarzinho bem escondido do meu
passado saltaram frente aos meus olhos. Tudo havia voltado. Tudo que eu achava
ter deixado para trás.
Era um fim de tarde de segunda-feira. Eu caminhava de volta
para casa após o trabalho. Na rua, um incessante vai e vem de pessoas com
pressa. Esbarravam-se umas nas outras. Ninguém pedia desculpas. Seguiam seus
passos cronometrados em suas vidas roteirizadas.
Por algum motivo que ainda hoje não entendi bem, eu parei. Bem
no meio da calçada. Foi algum tipo de epifania. As pessoas passavam por mim
como se ali eu não estivesse. Eu era um invisível. Estava sozinho junto à
multidão.
Em meio a uma rajada de vento, um som curto me tirou do
transe. Um ranger agudo. À minha direita, estava lá, entreaberta, como um
convite, aquela antiga porta de madeira.
Meus olhos demoraram alguns segundos para se adaptarem à
pouca luz do lugar. Aos poucos, fui enxergando formas. Em menos de um minuto,
percebi que estava em um labirinto formado por estantes repletas de livros.
Eles tinham a mesma capa vermelha, feito sangue coagulado.
Nenhum título. A encadernação era rudimentar, artesanal. Todos eram assim.
Iguais, mas com diferenças. Foram feitos um por um. Pela mesma pessoa. Eram
obra de um cuidadoso artista.
Tomei um daqueles livros nas mãos. Nas páginas, uma
sequência livre de textos escritos à lápis, com letras diferentes. Passei os olhos
por alguns. Todos tratavam da mesma coisa.
Pessoas que haviam se apaixonado, pessoas que amaram,
pessoas que sentiram algo que não sabiam definir o que era, mas que nunca
tinham sentido antes. Pessoas com borboletas no estômago, que viram a vida em
cores pela primeira vez. Pessoas que sonharam, que planejaram, que imaginaram.
Pessoas que idealizaram.
Cada um daqueles textos – curtos e longos – era único. Cada
um contava uma história diferente de pessoas diferentes. Todos eles, porém,
terminavam da mesma maneira. Com a desilusão da perda. Com a dor do inesperado
fim.
Devolvi o volume ao seu lugar e segui pela penumbra do
corredor. Mais adiante, peguei outro livro. A mesma coisa. Repeti isso mais
algumas vezes, sem novidades. Aquela era uma livraria dos amores perdidos. A
pequena livraria dos amores perdidos.
Não permaneci por muito tempo ali naquele fim de tarde. No
ônibus, a caminho de casa, pensei em quão valente era aquele lugar. Ele
resistia. Espremido por arranha-céus no Centro da cidade, ele resistia. Não
cedera um centímetro sequer. Não cedera à especulação imobiliária e não cedera
ao mercado editorial. Eu respeitava aquele cantinho perdido em meio ao caos.
Seja lá o que ele realmente fosse.
Passei um mês inteiro sem pôr meus pés naquele lugar de novo.
Não houve um dia, porém, que eu não tenha olhado para aquela porta com uma mistura
de desejo e curiosidade, meio dúvida, meio fascínio.
Na segunda vez em que entrei naquela estranha livraria, eu
senti uma calorosa sensação de acolhimento. Foi diferente de qualquer outra
coisa que eu já sentira antes. Foi como se tivéssemos estabelecido algum tipo
de relação. Ela já me conhecia. Eu estava em casa.
Cada novo livro que eu pegava, cada história que lia, me
enchia de amor e tristeza. Aquilo tornou-se um vício.
Eu voltei àquele lugar quase todos os dias durante os dois
anos seguintes. Quando os caminhos ficam menos visíveis e as respostas se
escondem nas sombras, uns recorrem à terapia, outros, ao álcool, outros simplesmente
desistem. Eu encontrei a minha saída naquela pequena livraria espremida no
Centro da cidade.
Demorei um tempo para compreender o que aquele lugar era.
Ninguém, além de mim, cruzava a porta entreaberta durante as horas diárias em
que eu estava lá. Era uma experiência solitária. Um encontro comigo mesmo. Uma
visita aos meus pensamentos, sentimentos e interpretações do mundo.
Pensei em quanto tempo aquele lugar existia para que tantos livros
escritos por caminhantes solitários como eu ocupassem as estantes. Mais de um
século, certamente.
Naqueles dias em que frequentei a livraria, em apenas
duas ocasiões encontrei outra pessoa lá. Na primeira delas, uma moça na casa
dos 20 anos, não mais do que isso, estava sentada no chão, com uma das velas na
mão direita, e um dos livros na esquerda. Silenciosamente, lia movendo os
lábios. Passei ao seu lado, mas acho que ela não notou a minha presença.
Na segunda vez, um homem, já idoso, cabelos brancos e ralos,
estava sentado junto à mesa. Eu não me aproximei. Deixei-o só. De longe, no fim
do corredor, escondido atrás das estantes, fiquei olhando ele preencher as
páginas brancas. De seus olhos cansados, brotavam lágrimas, mas ele não
escrevia com fúria. O lápis deslizava sobre o papel com uma suavidade de quem
deveria ter amado muito durante a vida e que, agora, resolvera deixar ali,
registrado para sempre, os seus amores.
Durante aqueles dois anos, eu li relatos escritos em letra
rebuscada e papel amarelado pelo tempo. Li histórias colocadas no papel há
poucos dias, poucas horas. Li histórias de homens e de mulheres, de jovens e de
velhos. Cada um era único em suas angústias, em seus sofrimentos, em suas
aspirações, seus sonhos e decepções.
De tudo que eu li naquela pequena livraria dos amores
perdidos, ficaram duas coisas:
1) Todo amor pelo outro é um amor por si próprio.
2) Por mais doloroso que possa ser o fim de uma
história de amor, por mais difícil que possa ser o desenlace, ainda que
estivesse sempre diante dos olhos que não iria dar certo, ainda assim, amar não
é um erro. Nunca é.
Antes de ir embora dali para não voltar mais, sentei-me na
cadeira, tomei o lápis na mão, e deixei registrada a minha história. A história
do amor que tive, do amor que me fez viver o extraordinário e me encheu de
vida. Do amor que foi embora.
A porta, eu deixei entreaberta. Do mesmo jeito que a encontrei
no primeiro dia. Havia muitas histórias ali dentro para serem lidas. Havia muitas
histórias lá fora para serem contadas.
...
“Eu a amei desde o primeiro sorriso até o último adeus.”
...
Nenhuma das tantas pessoas que percorreram aqueles corredores, que leram os escritos empilhados naquelas estantes, que se sentaram naquela cadeira, que deixaram no papel parte da sua vida para os desconhecidos que ali procuravam um caminho, tinha visto quem cuidava daquele lugar. Alguns poucos visitantes diziam que tinha enxergado um vulto de um homem velho e baixo. Um tipo miúdo, de passos vagarosos, que se apoiava em uma bengala levada na mão esquerda. Ele percorria em silêncio o lugar, de um lado para o outro. Ninguém o via, o livreiro, mas todos sabiam que ele estava ali, trocando as velas, colocando os livros preenchidos nas estantes, preparando um novo bule de café quente. Ele sempre estivera ali.