domingo, 20 de janeiro de 2019

Ainda que fosse apenas um sonho



Ele se esforçara. Só ele sabia como se esforçara. Tentara de tudo. Buscara caminhos que não conhecia. Tentara esvaziar sua cabeça de tudo o que lembrasse ela, de tudo que fosse ela. Nada funcionara. Se desfez e se reconstruiu. Ele, que não era de beber, procurou no álcool a solução daquilo que lhe atormentava. Não adiantou também. Experimentara o isolamento e a companhia. Nada. Ela permanecia lá. Impassível. Dona de si mesma, como sempre fora. Iria sair quando quisesse. Não seria ele, com suas tentativas vãs de expulsá-la, que conseguiria desalojá-la de onde ela estava tão confortavelmente instalada. Na verdade, parecia ter sempre vivido ali. Era como se tivesse ali nascido, crescido, se desenvolvido, e dali não pretendesse sair tão cedo.

Ela estava nos pensamentos dele.

A muito custo, conseguira deixar de pensar nela o tempo todo. Descobrira empiricamente que o difícil não é esquecer – sequer queria isso. O difícil é deixar de lembrar. Por muitos meses, procurou maneiras de libertar-se. Por vezes, conseguia dias de alívio. Não demorava, porém, para ela retornar. Ora era o seu rosto ímpar, ora seus negros cabelos em ondas, ora era seu cheiro, ora era a mistura de frases que ele tinha dito apenas para ela com a recordação do que as palavras representaram – “o beijo mais doce do mundo”.

Ele já não lembrava do tempo em que ela não estivera em sua cabeça. Talvez tenha se acomodado ali ainda muito pequena, sem ele perceber. Talvez tenha ficado assim, quietinha, sem se fazer notar, por tantos e tantos anos, conhecendo o terreno, se acostumando com o lugar, construindo seu ninho.

E ela o construiu. Vivia, agora, no seu inconsciente. Quando ele menos esperava, quando seus pensamentos estavam longe de tudo aquilo que poderia fazer a imagem dela se materializar diante de seus olhos, mesmo que fechados, ela surgia.

Passados muitos meses que ela se fora fisicamente, sua presença tornou-se constante em seus sonhos. Nem quando estavam juntos, sonhava tanto com ela. Seu cérebro, sábia e ardilosamente, tratou de compensar a ausência do corpo com a presença da ilusão.

Não passava um dia sem que sonhasse com ela. Em boa parte deles, tinha sonhos múltiplos na mesma noite de sono. Em seus sonhos, ela continuava igual à última vez em que se viram. No rosto, porém, não carregava a expressão pesada daquela tarde de quarta-feira. Tudo, quem sabe, já estivesse decidido ali. Nunca iria saber ao certo. Nos sonhos, ela sorria. Sorria como na tarde de piquenique no jardim florido. Nos sonhos, estavam apaixonados. Nos sonhos, ele era feliz.

Mas ela o deixara. Ela se fora. Nele permanecia, porém, a lembrança de tudo aquilo que viveram juntos. Os momentos bons lhe tiravam lágrimas ao sussurrarem ao seu ouvido “veja o que perdeste, rapaz”. Os momentos ruins já não pareciam ter sido tão ruins. Até os momentos ruins, com ela, eram bons.

Nos sonhos, no entanto, não havia momentos ruins. Nos sonhos, ele vivia aquele quadro que pintara para si mesmo. Colorido, instigante, cheio de energia.

Vivia em um paradoxo de difícil solução. A queria de volta em sua vida, mesmo sabendo que não a teria. A queria longe dos seus sonhos, ainda que soubesse que ela iria permanecer ali.

Desassossego, angústia, incompreensão.

Não tinha com quem dividir o peso que carregava. Teria de lidar com aquilo sozinho. Teria sido mais fácil, muito mais fácil, se tivesse nutrido algum sentimento negativo em relação a ela. Raiva, ódio, ressentimento. Nada disso ele sentiu, porém. Teria sido muito mais fácil.

Um dia, ela lhe disse que o amor fica. Que independentemente do que acontecesse, se nunca mais se vissem de novo, o amor que um dia sentiram um pelo outro permaneceria. Para sempre. Talvez ela tivesse dito da boca para fora, apenas para consolá-lo após o fim. Era possível. Ele acreditara naquilo, porém. Levara aquelas palavras ao pé da letra.

Ainda a amava.

Assim, mesmo que tentasse deixar para trás, ainda que soubesse que ela nunca mais iria voltar, ele se via preso ao que viveu, e ao que sentiu, preso à lembrança, ao toque, ao cheiro, à voz, ao olhar. Ela plantara nele algo que ele nunca vira antes florescer em si. Quando o deixou, levou consigo as flores, mas esqueceu de arrancar as raízes.

Para ele, havia acabado antes do fim. Era como se a linha do tempo tivesse sido rompida. Ficara um vazio. Um vazio que os sonhos constantes tentavam preencher. Ela vivia em seus sonhos assim como vivera em sua realidade. Era a mesma por quem se apaixonara. Inteligente, esperta, culta. O mesmo rosto que lhe acalmava só de olhar.

Durante todo o dia, ele contava as horas para a noite chegar.


Só queria fechar os olhos e tê-la novamente junto de si. Nem que fosse só por uma noite. Ainda que fosse apenas um sonho.