Quando criança, houve uma época em que
ela quisera ser bombeira. Pediu para o pai cravar um corrimão improvisado no
meio do pátio para que pudesse treinar sua descida escorregando. Achava o
máximo aquela descida. Imaginava-se fazendo aquilo em meio a um chamado. Um
enorme galpão cheio de grãos e palha seca em chamas. Precisava ser rápida.
Sempre mais rápida. Cronometrava o tempo desde quando saía correndo do quarto,
passava pelo corredor voando, cruzava a sala como um raio, deixava a cozinha
para trás, ganhava o jardim dos fundos, subia na escadinha de um pulo e descia
pelo cano de PVC fincado no chão. Adorava aquilo.
Assim que cansou de apagar incêndios
imaginários, passou a querer ser astronauta. Os mistérios do universo.
Estrelas, cometas, planetas, luas e sóis, asteroides, buracos negros,
nebulosas. Galáxias inteiras. Infinitas descobertas. Fez dois buracos em um
balde que estava jogado em um canto na área de serviço e pronto, já tinha um
capacete. Pegou uma capa de chuva, umas luvas que sua mãe usava para cozinhar e
umas botas velhas de seu pai. Já tinha a roupa completa. Durante um bom tempo,
quisera pisar em marte. Depois que descobriu que o planeta vermelho era um
grande deserto de rochas sem graça, passou a preferir vagar livre pelo cosmos.
Gravidade zero, aventuras mil. Apenas flanar, somente flanar.
Por poucas semanas apenas, quisera ser
mágica. Coelho na cartola, pomba sob o lenço, cartas na manga. Perdeu o
entusiasmo quando seus pais não deixaram que colocasse seu irmão mais novo
dentro de uma caixa de papelão para que pudesse cortá-lo ao meio. Era seu maior
truque. Desinteressou-se e aposentou a capa, a varinha e as palavras
cabalísticas. Uma pena, tinha muito talento para a coisa.
Nos primeiros anos da adolescência,
quisera ser artista circense. Aquela foi uma ideia bem maluca. Era um calorento
sábado quando seu pai a levou ao circo. Inicialmente, odiou aquilo. Ninguém na
sua idade ia a circos. Se seus colegas na escola descobrissem, viraria motivo
de chacota por todo o resto do ano. Ninguém descobriu e ela pirou no que viu
sob a lona amarela. Primeiro, quis ser malabarista. Destruiu o vasilhame de
garrafas de cerveja do seu pai. Depois, tentou o trapézio. Esfolou mãos e
braços na terra. Por fim, em um ato de desafiadora coragem irresponsável,
amarrou a ponta de uma corda no galho da goiabeira do jardim e a outra em um
ipê que ficava na calçada, do lado de fora do pátio. Tentou ir de uma árvore à
outra, caminhando na corda bamba. Deslocou a clavícula e quebrou o pulso da mão
direita. Depois disso, achou que seria sensato abandonar a ideia. Por enquanto,
pelo menos.
Não seria, porém, um fracasso qualquer
que faria com que ela deixasse de ser quem quisesse ser. Com 15 anos, desejou
ser policial. Defender a lei, garantir a ordem. Um distintivo no peito e uma
pistola na cintura. O símbolo ela fez com um pedaço de latão qualquer. A arma
esculpira em madeira. Fizera um ótimo trabalho. Tinha talento com a talhadeira.
Era um revolver pequeno, de cano curto, mas com grande poder de fogo. Ela era
uma policial firme, mas justa. Era conhecida por todos no bairro que patrulhava
por sua dedicação e perspicácia. Seu trabalho duro e diuturno deu fim à alta
criminalidade do local. Não restava mais um bandido sequer. A paz havia sido
alcançada graças à sua competência, destreza e olhar apurado. Sem mais
malfeitores a combater, abandonou a farda. Sua missão havia sido cumprida.
Durante toda a sua vida, foi bombeira,
foi astronauta, foi mágica, foi artista de circo, foi policial. Foi médica, foi
advogada, foi cientista, foi juíza, foi general, foi presidente... Foi tudo
aquilo que um dia quis ser. Foi ela mesma. Nunca deixou de ser ela mesma. Foi
menina, foi moça, foi mulher.
Foi mulher, e isso já era ser tudo.
#8m