No próximo dia 27 de agosto o famoso bar do Antônio no Campus Centro da UFRGS completa 40 anos de existência. Em razão disto, este que vos escreve resolveu entrevistar um personagem que participou e esteve presente no bar em uma época em que ele se transformou em uma trincheira dos que resistiam à ditadura militar.
Alça de Mira: Como era o convívio com estudantes de diversos cursos no Centro Acadêmico Franklin Delano Roosevelt e no Bar da Filô (antigo nome do bar)?
Enio Squeff: Pensando sobre o que éramos e que nos distinguia – falo dessas diferenças que existe entre um sujeito que estuda física e um outro que se dedica à filosofia ou ao jornalismo – até que nos entendíamos muito bem. Não nos separavam os estudos científicos de uns e a visão “ beletrista” de outros. Como considerava o Gerd Bornheim, um dos mestres e amigos desta época, a instância que nos unia era a política, as possibilidades que então considerávamos e que imaginávamos se encaminhar para uma idéia de revolução difusa – sem armas, quem sabe, mas suficientemente eficiente para que superássemos nossas mazelas. Falo do nosso país, seu subdesenvolvimento, a imensa desigualdade social, as hegemonias culturais e o seu anverso, as forças que se nos opunham, a dominação cultural, tudo isso que, afinal, bem ou mal ainda persiste no Brasil dos nossos dias. Ocorre-me, enfim, de que nossas considerações passavam sempre pelo filtro da política. Claro que tínhamos visões diferentes, mas uma espécie de “frente única” era uma forma de aquiescência natural, que não impediu, aliás, que, com a emergência do golpe, se transformassem em ações diferenciadas, quase antagônicas, e que, como se sabe, redundaram em equívocos trágicos, além de terem facilitado a ação das forças repressivas da ditadura.
AM: O que o bar representava para os estudantes da Faculdade de Filosofia e para o movimento estudantil?
ES: Ainda não se fez um exame acurado sobre a influência dos bares – esses parlamentos informais - .sobre a vida cultural dos países. Os cafés que cresceram com a Revolução Francesa tiveram imensa repercussão sobre a vida cultural e política da França da época. Em São Paulo, onde vivo desde que fugi do assédio sufocante das instituições que nos enxotavam – como a Universidade e os jornalões da época ( fui impedido de entrar na Universidade como membro do corpo docente, por não ter o “atestado ideológico” requerido pela ditadura), houve sempre uma manifesta diferença entre dois bares: o Riviera – que era o local de freqüentação dos membros do Partido Comunista Brasileiro e o Bar da Terra ( na Vila Madalena) que era o reduto dos trotskistas. Se estendermos essas inquirições sobre outras cidades do período, encontraremos sempre os indefectíveis bares a reunir aqui e ali gente de partidos, de idéias de posições ideológicas bem distintas, coisa do tipo. Com o bar da Filosofia não era diferente – mas ali tínhamos alguns denominadores comuns. Os membros do Partidão, por exemplo, tinham bem claro que as suas diferenças com o pessoal da AP – Ação Popular – não eram de modo algum negligenciáveis, assim como os trotskistas se sabiam distantes de ambos. No entanto, discutiam-se mais algumas alianças possíveis, do que as muitas diferenças visíveis. Eu mesmo tinha no bar da Filosofia meu local de trabalho. Era ali que, como secretário de imprensa do Centro Acadêmico, responsável pelas edições do jornal “O Coruja”, eu trabalhava, preparava as matérias e escrevia. Era ali também que fazíamos nossas reuniões de diretoria, do Centro Acadêmico. Mas não negligencio em minha vida o papel – seja do cafezinho, da cerveja , da cuba libre ou do samba - Coca-Cola com cachaça, seja, em suma, do espaço físico em si, do recinto do bar. Hector Berlioz, compositor romântico francês, admitia que tinha composto a sua Sinfonia Fantástica (sic) também sob os eflúvios do ópio. Baudelaire nunca super-dimensionou a importância do haxixe em sua produção. Mas dizia, judiciosamente, “desconfie do homem que não bebe: ele tem algo a esconder de seus semelhantes.”
AM: O senhor poderia nos relatar alguma história interessante que tenha se passado no Bar da Filô em que o senhor estava presente?
ES: Não vou contar dos namoricos que, em geral, começavam no Bar da Filosofia. Vivia-se os primórdios da minissaia e era um recreio para os olhos passear os olhos para as coxas bem torneadas, que nossas colegas de bom grado deixavam à mostra. Pode-se imaginar o resto. Mas havia sim alguns momentos em que discutíamos acerbamente. E não raro no bar. Lembro-me que certa vez tive um literal quebra-pau com um de meus mais queridos camaradas – o Ruy Pfützenreuter a quem mais tarde eu encontraria em São Paulo na clandestinidade. E que morreu assassinado pela ditadura. Tínhamos ambos o mesmo gosto por Mahler, Beethoven, Brahms, Mozart e o resto que se pode imaginar. Até aí o que nos opunham eram as gravações: ele adorava Bruno Walter, eu defendia outros regentes, como o Toscanini, o o Karajan e outros. Ocorre que o Ruy era um homem ameno, bondoso até onde isso possa ser levado às últimas conseqüências. Quanto a mim, sem ser muito ameno, nunca me considerei maldoso – mas comecei a invectivar algumas teses do Ruy, justamente sobre política, a ponto de exasperá-lo. E de repente, lá estava o Ruy literalmente furioso vindo para cima de mim, quase a vias de fato. Acho que não fosse o Flávio Koutzi ou o Pilla Vares, não me lembro bem, nós brigaríamos. Claro que voltamos às boas e é claro que tudo se fez também no bar. Era no bar, porém, que eu e o Flávio Oliveira cantávamos em duo alguns trechos de uma ou outra sinfonia, como o movimento lento da sétima de Beethoven, com o Flávio entoando o mesmo trecho em contracanto. E que, eu acho, fazia a delícia de alguns de nossos colegas. Uma lembrança nítida: os discurso inflamados e formidáveis, inesquecíveis mesmo, do Joaquim Felizardo; ele já não fazia política partidária na época, e quando sobreveio o golpe militar a primeira coisa que fez foi avisar à mulher que iria se apresentar no DOPS com mala e cuia para evitar aos filhos e à esposa, o constrangimento de ser invariavelmente preso a qualquer manifestação ou entrevero com a polícia. Enfim, não vou dizer que o bar do Filô, como vocês o chamam era o nosso “palco iluminado” – mas nós o tínhamos como nosso parlamento, casa de encontros, local dos bailinhos aos sábados à noite e “por cause” um centro cultural onde não faltava o que faz a vida – o erótico, o belo e o bom.
AM: Relembrando o passado, qual foi a importância do Bar da Filô e dos encontros entre os estudantes que ali ocorriam para a resistência dos que eram contrários à ditadura?
ES: Deu-se, aliás, pela lembrança desses tempos que consegui do Octavio Frias que a “Folha de S.Paulo” escrevesse um editorial em favor do Flávio Koutzi, detido pela ditadura argentina. Nesta época eu trabalhava na “Folha” como editorialista com a equipe que o Cláudio Abramo havia montado no jornal havia pouco. E que coincidiu com os tempos da redemocratização. Sem falsa modéstia, porém, acho que foi em parte graças também a este editorial que o Flávio conseguiu se livrar do pior. Ou seja, fazíamos uns pelos outros o que supúnhamos que deveria ser feito. Não houve pacto algum, mas tínhamos como matéria ética, moral quase, que o que nos animava, não inteiramente no bar ou não exclusivamente nele e através dele – mas também nele – um compromisso para a vida inteira. Está aí uma coisa de que nunca me dei conta: o Bar da Filosofia talvez se constituísse numa espécie de ágora: nele transacionávamos nossas diferenças, mas discutíamos também nossas afinidades. Quanto a mim, eu sempre o tive como prolongamento da sala de aula, pois nele aprendi o que devia, principalmente – o que é um paradoxo, concedo - em matéria de conduta ética. Sei que, com isso, escandalizo alguns abstêmios – mas que diabos, eles que se defendam da consideração de Baudelaire dita acima!
AM: Qual é a principal lembrança que tens da época em que estudavas na UFRGS e freqüentavas o bar?
ES: São lembranças de todo o tipo. Desde os crepúsculos a chapar as paredes brancas do Instituto de Educação, à frente da Faculdade, quando eu saía com a minha namorada a percorrer o parque da Redenção em direção a Petrópolis, ocasião em que não raro, no caminho, a gente encontrava o Érico Veríssimo, até os dias que antecederam e se seguiram ao golpe militar. Não vou contar dos professores que se prestaram a inquisição instaurada pelos milicos, muito menos daqueles colegas que, mais tarde, aderiram ao golpe. Alguns eram até brilhantes, e se deixaram envolver por aquilo que Beethoven dizia dos poetas – que não resistiam às lantejoulas da Corte. Mas me lembro isso sim, dos nossos equívocos, das certezas irrefutáveis e que se revelaram muito mais pífias do que imaginávamos. Foi o caso, por exemplo, da crença nas convicções democráticas das Forças Armadas. Na época, elas foram mais fiéis aos interesses norte-americanos do que ao povo brasileiro. Recordo claramente que na noite anterior ao golpe, eu e um colega tínhamos colado alguns panfletos. Era a única maneira que tínhamos de protestar. Talvez por um pessimismo entranhado e de que não me queixo ainda hoje, resolvi discutir com o amigo o que nos aguardava. Se era certo que o golpe estava em marcha, certamente as conseqüências não seriam amenas. Golpes militares sempre fazem mal à saúde, seja no Brasil, no Paquistão ou no Haiti. E então ouvi dele a besteira máxima, mas que era uma espécie de convicção generalizada entre certos segmentos da esquerda: “Exército brasileiro não bate em povo”. Deu no que deu.
* Enio Squeff é jornalista formado na UFRGS e artista plástico radicado em São Paulo.
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