domingo, 29 de maio de 2011

O Indivíduo e o Todo (ou “não fica assim, não foi nada”)

A população. A comunidade. O povo. A massa. O todo.

Somos o todo. Um por um, unidos, formamos o todo. O todo, porém, não é uma massa uniforme. O todo está mais para um mosaico. Um mosaico formado por incontáveis pedacinhos de porcelana. Todos os pedacinhos que formam a imagem são constituídos da mesma coisa: porcelana. Entretanto, cada parte é diferente da outra. Cada pequeno pedaço de porcelana se difere do outro por sua cor ou cores, por seu tamanho, por sua largura, por seu formato e, também, por sua natureza, por sua essência, sua origem. Cada parte do todo, o mosaico, foi produzida em um local diferente, em um momento diferente, por máquinas e pessoas diferentes, com matérias primas obtidas em pontos diferentes.

O todo, portanto, é composto por partes únicas. Indivíduos formam o todo e, mesmo formando o todo, mesmo fazendo parte da imagem completa, mesmo sendo integrantes da massa, não deixam de ser indivíduos. O todo são os indivíduos. Os indivíduos não são o todo. Eles são únicos.

Esse preâmbulo todo pode parecer uma grande bobagem (e talvez seja), mas se faz necessário para embasar e servir de referência para o que, de fato, pretendo dizer nas linhas que seguem. Vamos a elas, pois.

As pessoas sentem extrema necessidade de modelar e padronizar o sentimento das outras. As pessoas não gostam de ver outras pessoas com sentimentos extremos. Elas se sentem mal vendo isso. Ainda não sei ao certo o porquê. Talvez porque a maioria das pessoas se sente, cada dia menos, um indivíduo e cada dia mais o todo. E o todo não possui sentimentos extremos. O todo é a mesmice. O todo é um clichê. O todo nunca é o 0% e nunca é o 100%. O todo é o 50%. Talvez essa seja a explicação.
O fato é que qualquer tipo de sentimento mais intenso, que fuja ao padrão, que não seja mais do mesmo, incomoda as pessoas. Diante disso, muitas delas não sabem como agir e preferem se abster, não dizer nada. Encontram no silêncio um refúgio para a sua incapacidade de compreender o outro. Respeito-as. Outras criticam, colocam-se em uma posição supostamente superior e apontam o dedo inquisidor, olhando de cima, como que tentando fazer com que aquele que sente de modo extremo se sinta culpado, se sinta fazendo algo errado. Entendo-as. E tem ainda um outro grupo. Um grupo mais perigoso. Um grupo que atua sorrateiramente. Um grupo que, aparentemente, está do seu lado, que te apoia, que quer o teu bem. Aparentemente. Só aparentemente. Esse grupo é o grupo que tem o maior potencial para prejudicar. Refiro-me àqueles que no momento em que você está chateado, magoado, triste, pra baixo, enfim, seja qual for a palavra ou expressão que defina um estado de espírito melancólico, um sentimento extremo, se aproximam e dizem coisas como o seguinte: “não fica assim, não foi nada”, ou um “não é pra tanto, não fica triste, não vale a pena”. Desprezo-os.
Incomoda-me muito, para não dizer que me irrita profundamente, quando vejo uma pessoa dizer isso para outra, ou dizer para mim mesmo. E incomoda-me muito, principalmente em casos como os exemplificados acima, quando a pessoa que está sentindo um sentimento extremo está triste, está “para baixo”.

Como assim “não foi nada”? Como assim “não é pra tanto”?
Pode não ser nada para quem vê de fora, pode não ser pra tanto para quem observa de fora, mas, para quem sente, é tudo e é para tanto e é para muito mais, inclusive. Incomoda-me muito quando presencio uma pessoa desfazendo, diminuindo o sentimento de outra.

Qual o problema em estar “para baixo”?
Qual o problema em estar triste?
Qual o problema em estar muito triste?
Qual o problema?

Se a pessoa não tem tendências suicidas, não vejo nenhum problema. Ao contrário. Acho deveras natural e salutar que nossos momentos de alegria sejam permeados por momentos de tristeza. C'est la vie. É isso, aliás, que torna a caminhada tão interessante. É por isso que o mar atrai mais que o rio. As ondas. O ir e vir. Os dois sentidos de movimento. A ressaca. O repuxo.

Momentos de tristeza são necessários. Momentos de melancolia profunda são necessários. Estar triste é tão normal quanto estar alegre. Acredito, inclusive, que a tristeza nos ensina mais do que a alegria. Aprendemos mais e nos conhecemos mais na tristeza do que na alegria. E isso ocorre por uma simples razão: na tristeza, pensamos; na alegria, não.

O fato é que ninguém tem o direito de questionar o que uma pessoa sente. Ninguém tem o direito de dizer a uma pessoa que aquilo que ela está sentindo é insignificante. Não somos o todo. Somos um indivíduo. Somos um pedaço de porcelana no mosaico. O outro não vê as coisas da forma como eu vejo, ele não sente como eu sinto, assim, não posso avaliar se o que ele sente é forte ou não, se é fraco ou não, se é importante ou não. Ele sente e, se o que ele sente o faz ficar triste, é porque aquilo é um motivo suficientemente forte para gerar a tristeza. Pode não ser suficientemente forte para eu ficar triste, mas é suficientemente forte para ele ficar triste. E isso não faz de mim alguém mais “forte” do que ele. Em absoluto.

Não aceito que se tente empulhar as pessoas, pregando-lhes receitas prontas sobre qual é o modo “correto” de agir em determinada situação envolvendo algo de cunho extremamente pessoal.
Agora, por exemplo, estou com uma dor na garganta terrível. Tão forte que deixar correr uma lágrima não parece algo tão absurdo. Não mesmo. O quê? Fiasquento eu? Ahh, vsf, vai. Grato.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Da difícil arte de escrever .... sobre o amor

Como transformar um sentimento em palavras?

É curioso como escrever sobre uma coisa, o amor, pode parecer tão fácil e ser tão difícil. O amor talvez seja o tema mais abordado na história universal da escrita. Possivelmente é. Muito possivelmente. Desde textos literários de todos os tipos, passando por cartas e bilhetinhos, seguindo por e-mails e “torpedos”. As pessoas que amam sentem necessidade de expressar esse amor através de palavras escritas. O amor é o tema mais universal do mundo para se falar. O amor entre duas pessoas sentido aqui não é significativamente diverso do amor entre duas pessoas sentido no Japão, ou na Rússia, ou na Romênia, ou na Índia, ou na Nigéria, ou nos EUA, ou em qualquer outro ponto deste planeta. As manifestações e demonstrações desse amor e a forma de sentir esse amor podem ser e são bem diferentes, cada uma de acordo com a personalidade de cada pessoa e com a cultura local, mas o sentimento é praticamente o mesmo.
Por ser universal é que o amor de Romeu e Julieta foi traduzido para quase todos os idiomas que você pode imaginar. A história é a mesma. Uma história de amor. Uma história que emociona há mais de 400 anos. Mas, infelizmente, há poucos Sheakespeares por aí capazes de criar algo tão vigoroso. E não há muitos Sheakespeares porque escrever sobre o amor é muito difícil. Muito mesmo. MUITO.
Se escrever ficção sobre o amor é muito difícil, imagine escrever um relato de cunho mais pessoal, tendo as suas sensações como base e fio condutor do texto. É muito difícil escrever sobre o amor porque, apesar de ser um sentimento universal, ele é único para quem sente. Antes de começar a escrever ou a falar sobre o amor, que seja, uma questão precisa ser respondida. Ter essa questão respondida é condição sine qua non para que o texto possa sair da cabeça e ir para o papel. A pergunta é a seguinte: o que é amor para você?
É indispensável que a resposta a esse questionamento exista para que você consiga criar um escrito pessoal falando sobre o amor. Assim, temos, portanto, antes da primeira letra do texto ser escrita, um grande problema. Um problema muito complicado de ser solucionado.
A primeira dificuldade para se resolver este problema reside no fato de o conceito de amor ser algo pessoal. Assim, não há como se utilizar de definições elaboradas por outros. É possível se basear na opinião de outras pessoas a respeito do que é amor, entretanto, corre-se o risco de que um conceito irreal seja criado, e de que isso acabe gerando dificuldades quando for preciso interpretar o sentimento existente em um determinado momento.
As pessoas não param para pensar sobre isso e aí está outra dificuldade. As pessoas percebem que sentem algo e que esse algo é forte e, para elas, isso é amor. E pode até ser. A questão é que ninguém para e pensa: o que estou sentindo? Já senti isso, assim, outras vezes? De onde vem isso que estou sentindo? O que aquela pessoa tem para fazer com que eu me sinta assim?
Então, esse é um requisito básico e, creio eu, indispensável para se escrever a respeito do que se está sentindo: saber o que se está sentindo e o que é aquele sentimento para mim.
Escrever sobre a paixão é mais fácil. A paixão mexe muito com o instinto. É algo que aflora mais visivelmente. O amor se sente mais com o cérebro do que a paixão. É claro que cada pessoa se apaixona de um jeito. Alguns se apaixonam mais com a pele, mais pelo físico; outros se apaixonam mais pelo jeito da pessoa; e outros se apaixonam pelo modo como a pessoa pensa. Porém, a paixão ainda é um sentimento intermediário e está deveras ligada a um encantamento. E uma pessoa encantada pode, às vezes, deixar o cérebro um pouquinho de lado na hora de sentir.
Escrever sobre o amor é muito difícil porque as pessoas conhecem pouco a si mesmas. Mas, mesmo para aquelas pessoas que se conhecem muito bem, escrever sobre o amor também é difícil. Por quê? Basicamente por que estas pessoas, as que se conhecem bem, sentem com muita intensidade. Essas pessoas sentem com mais profundidade o sentimento. E, nestes casos, elas percebem o quão complexo é escrever sobre um sentimento, principalmente um sentimento como o amor. Essas pessoas compreendem que, por mais espetaculares que sejam, por mais fantásticas e mágicas que sejam, por mais fascinantes e desbravadoras que sejam, por mais desafiadoras e esclarecedoras que sejam, por mais fortes e sensíveis que sejam, as palavras delimitam. As palavras te fazem viajar, sair do chão, sonhar, ir longe, mas elas, em si, delimitam. E limitar um sentimento é muito difícil para quem o sente. Principalmente para quem o sente de modo intenso.

Aí está o paradoxo da questão: para escrever sobre o amor que se sente, escrever mesmo, de modo profundo e pensado, é preciso saber o que é o amor para si próprio. Para saber o que é o amor é necessário se autoconhecer. As pessoas que se conhecem bem, contudo, na maioria das vezes, sentem muito o que sentem, sentem com intensidade. E, por sentirem intensamente, percebem que as palavras limitam um sentimento que, para elas, parece ser ilimitado. Daí o desconforto. Daí a dificuldade em escrever sobre o amor.
Quem consegue fazê-lo, das duas uma: ou é uma exceção, um dos privilegiados, um Sheakespeare; ou tem o enorme talento de escrever sobre algo que está sentindo sem ser influenciado por esse sentimento.
Os dois casos existem, mas são muito raros. Raríssimos.
O mais comum, portanto, é nos deparar com textos sobre o amor escritos por talentosos escritores que não sentiam aquilo sobre o qual estavam escrevendo. Ou por pessoas que acreditam estar escrevendo sobre o amor que sentem, mas na verdade não passaram da epiderme desse amor. Estão esquiando na superfície congelada de um profundo lago.

Apesar de todas as dificuldades, não há razão para desistir e nunca tentar escrever sobre o amor que se sente. Ao contrário. Deve-se tentar sempre. Escrever é hábito e só se adquire esse hábito escrevendo. Ao tentar escrever e não conseguir surgirão questionamentos e é a partir deles que o processo de autoconhecimento aflora e se desenvolve. Ninguém se autoconhece sem se desafiar. O amor é desafiador e escrever sobre ele também é.