O homem passa. A mulher passa. A criança passa. O cachorro passa. Passa o caminhão do lixo. Passam os carros. Passam as motos. Os aviões passam no céu. A lua passa e o sol também. As nuvens passam. A chuva chega ... e passa. O vento passa e leva as folhas secas com ele. A tristeza passa. A dor passa. A alegria passa. O frio passa, assim como o calor. Os segundos passam. Passam os minutos e as horas logo atrás. Passam os dias. Passam as noites. As semanas passam. Passam os meses. Passam os anos.
E ela segue ali.
Sentada.
Tudo passa por ela. Todos passam por ela. Ela está sempre ali. Sentada. Em silêncio. Com a cabeça baixa. Como que hibernando. Às vezes, ela gesticula, mexe os braços e conversa com seus botões. É raro, mas de vez em quando acontece.
Todos passam por ela, mas ninguém a enxerga. As pessoas a vêem. Mas vêem como vêem uma árvore na calçada. Vêem como vêem uma pedra no chão. Vêem como vêem um hidrante na esquina. As pessoas a vêem, mas não a enxergam.
Ela é invisível aos olhos que a vêem.
Ela viu muito da vida. O rosto marcado pelo tempo, as costas arqueadas e o olhar distante deixam claro que ela já deu muitos passos nessa estrada. Talvez por isso ela permaneça sentada. Suas pernas estão cansadas.
É interessante prestar atenção no modo como as pessoas olham para ela. Alguns expressam pena. Outros, algum tipo de repúdio. Outros balançam a cabeça de um lado para o outro. A maioria, porém, não revela nenhuma mudança na face. Era como se ali, sobre aqueles pneus empilhados, não houvesse ninguém. Como se ali não houvesse nada.
Nunca vi aquela mulher pedir algo a alguém. Nunca a vi importunar alguém. Ela não mora nas ruas. Suas roupas estão sempre limpas. Seguidamente a vejo desembarcar do ônibus e se dirigir para o seu lugarzinho, junto aos pneus. Já a vi trabalhando, limpando o chão, tirando o pó. Era uma mulher batalhadora, percebe-se. Agora não a vejo mais trabalhando. Quem sabe a tenham dispensado em razão da idade? Quem sabe. Agora só a vejo ali. Sentada sobre os pneus. Com um olhar tranquilo. Com uma expressão serena. Com a característica calma dos que lutaram a boa luta. Agora só a vejo ali. Sentada sobre os pneus. Esperando.
O que será que ela espera? Quem será que ela espera? Será que ela espera algo? Será que ela espera alguém?
Poder-se-ia dizer que ela, talvez, esteja esperando a morte. Não creio. Acho que ela espera a vida. Acho que ela espera que alguém a enxergue. Acho que ela espera que alguém pare, a olhe nos olhos, e lhe pergunte como está. Que alguém se sente ao seu lado e ali fique, pelo tempo necessário, sem pressa. Que alguém lhe estenda a mão. Que alguém lhe dê um sorriso. Acho que ela espera que alguém passe, a olhe e leve aquela imagem consigo. Que alguém lhe dê um “bom dia” sincero. Que alguém ouça a sua voz. Acho que ela espera a vida, mas não a própria vida. Acho que ela espera a vida dos outros.
Já ouvi, enquanto aguardava o ônibus, pessoas comentando sobre a senhora sentada sobre os pneus. Já ouvi as palavras “coitada”, “pena”, “tristeza”, “sozinha”, “doente”, “louca” sendo ditas a respeito dela por pessoas que passaram ao seu lado e não a viram, ou fizeram de conta que não a viram.
Seria ela uma coitada? Seria ela uma pessoa digna de pena? Seria ela triste? Será que ela está sozinha? Será que está doente? Seria ela louca?
Não acho nada disso. Quem não a enxerga, quem não se importa com ela, quem não sente nada ao passar ao seu lado é que é digno de pena, é que é um coitado. Quem não a olha de verdade é que é triste, é que está sozinho, é que está doente.
Ela é humana. Aquela senhora sentada sobre os pneus é profundamente humana. É demasiada humana. Ela não foi ainda afetada pela modernidade frugal, por esse turbilhão que a todos engole, mistura, massifica, embrutece.
Ela conversa consigo mesma. Ela fala sozinha. Ela gesticula e balança os braços no ar. Ela não parece se importar com o olhar reprovador dos outros. Ela não se importa em parecer louca. Ela é louca. Viver é para os loucos. Para os raros, como diz Hesse.
“Em uma época falsa, para estabelecerem-se relações sinceras com os homens, não é necessário um surto de insanidade?”
Ralph W. Emerson
Há alguns dias, eu passei em frente à mulher sentada sobre os pneus, como já fizera incontáveis vezes. Ela sempre me chamou a atenção, sempre me intrigou, sempre me fascinou. Desta vez, quando eu passava, ela ergueu, timidamente, a cabeça e me olhou. Eu retribuí o olhar e disse um “boa tarde”. Ela sorriu e meneou a cabeça para baixo, cumprimentando-me. Fiquei com aquela imagem guardada. Ainda a tenho aqui comigo. Aquele sorriso discreto, mas sincero e cheio de emoção, foi muito importante pra mim. Acredito que, de algum modo, minhas duas palavras também significaram algo e foram importantes para ela. Gosto de pensar assim. Gosto de pensar que ela sentiu vida ao redor dela. Sentiu vida além da presente sobre os pneus.
Hoje passei, novamente, por ela. Uma mulher que caminhava à minha frente puxou a criança que levava pela mão e a passou para seu outro lado, para o pequeno não passar próximo da senhora sentada sobre os pneus. Senti pena da criança. Mesmo. Esse texto sai escarrado. Sinto-me melhor agora.
O homem passa. A mulher passa. A criança passa. O cachorro passa. Passa o caminhão do lixo. Passam os carros. Passam as motos. Os aviões passam no céu. A lua passa e o sol também. As nuvens passam. A chuva chega ... e passa. O vento passa e leva as folhas secas com ele. A tristeza passa. A dor passa. A alegria passa. O frio passa, assim como o calor. Os segundos passam. Passam os minutos e as horas logo atrás. Passam os dias. Passam as noites. As semanas passam. Passam os meses. Passam os anos.
E ela segue ali.
Sentada.
À espera.
Da vida.
Dos outros.
Nenhum comentário:
Postar um comentário