Triste foi o dia em que Clarice acordou chorando.
A terça-feira amanheceu quente.
Muito quente. A mãe de Clarice dormia o saboroso sono da manhã quando, de
sobressalto, abriu os olhos, acurou os ouvidos, e percebeu que um ruído
familiar, mas incomum para o momento, vinha do aposento da jovem. Espreguiçou-se
como podia e, rapidamente, se levantou, calçou os chinelos e correu ao encontro
da filha.
A luz forte do sol se esgueirava
para entrar por entre as frestas da janela do quarto cuidadosamente decorado
com motivos, digamos assim, fofos. Sentada sobre a cama, com os braços
circundando os joelhos flexionados junto ao peito juvenil, Clarice chorava. E
não era um choro qualquer. Não era um choro. Era O choro.
Clarice soluçava. Chorava como
nunca dantes havia chorado na vida. A mãe não entendia muito bem a situação. Na
verdade, não entendia nem um pouco a situação. A filha, de pijama, em posição
quase que fetal, chorando mais que um bebê com cólicas. Sem saber o que fazer,
sentou-se na cama e perguntou para a jovem qual a razão do seu pranto, sem não
antes dar um espaçoso e prolongado bocejo.
Clarice levantou a cabeça de
leve, deu uma espiadela rápida para a mãe e não disse nada. Mas continuou
chorando. A mãe, já preocupada, passou a mão direita sobre a cabeça da menina,
tentando, com um gesto de carinho maternal, acalmar a cria. Não funcionou. Por
mais algumas vezes ela insistiu perguntando para Clarice o que estava
acontecendo, se ela estava sentindo algo, como poderia ajudar. Seguiu sem
respostas.
A mãe começou a pensar. O choro
não era por causa de um namorado. Clarice não tinha namorado. Não que a mãe
soubesse, e ela tinha certeza de que, se existisse um, saberia, pois eram muito
próximas. A filha não tinha doenças e não havia se queixado de algum mal que
pudesse estar a acometendo. Nenhum de seus artistas favoritos tinha morrido.
Sua boneca chinesa de porcelana não havia se quebrado. Ela não havia pegado G2
na faculdade. Seu time não tinha perdido um campeonato importante.
A mãe não sabia o que fazer.
Levantou-se e foi ao quarto do outro filho, o irmão mais novo de Clarice. Deu
uns empurrões, o menino despertou e ela perguntou se ele sabia de alguma coisa
que poderia explicar a choradeira da irmã. Ele, como é típico dos irmãos mais
novos, não deu a menor bola, resmungou, virou-se na cama e cerrou no sono de
novo. Ela não achava que ele saberia de algo mesmo. Voltou ao quarto de
Clarice. O berreiro continuava.
Clarice estava desesperada.
Alguma coisa muito séria devia ter acontecido, pensava a mãe. Espichou o braço
e pegou o celular da filha, que estava na cômoda ao lado da cama. Era uma
situação de urgência, e, portanto, aquilo não poderia ser considerado invasão
de privacidade. Nenhuma chamada ou mensagem recente. Ainda com o telefone em
mãos, resolveu ligar para as melhores amigas de Clarice. Talvez alguma delas
soubesse de algo ou desse alguma pista sobre as causas do espetáculo que ela
via ao seu lado. Primeiro ligou para a Paulinha. A Paulinha devia passar mais
tempo naquele quarto do que na própria casa ou em qualquer outro lugar. Se
havia um motivo e se mais alguém sabia qual era, além de Clarice, essa pessoa
seria a Paulinha. O telefone chamou seis vezes até a garota atender. Com voz
arrastada, ela disse não ter a menor ideia do que se passava com a amiga, mas
que iria tomar um banho, comer algo e ir voando para lá, afinal, “best friend é
para essas coisas”. A mãe achou um tanto quanto ridículo aquilo de “best
friend”, mas, tudo bem, a presença da amiga podia animar a filha chorona.
Seguiu nas ligações. Discou para
a Mari. As duas eram amigas desde a infância e se conheciam como a palma de
suas próprias mãos. Ela não gostava da Mari. Achava a garota muito
metida. Quando a menina vinha visitar Clarice, o máximo de proximidade que
tinham era um “oi” ou um “bom dia” e um “tchau” ou um "até a próxima”. O caso,
porém, era sui generis e, portanto,
merecia uma ação extraordinária. A menina atendeu de pronto. Já estava
acordada, pois ia à academia pela manhã bem cedo, quando havia pouca gente no
local. A amiga também não sabia de nada e o seu tom de voz deixou claro que ela
havia ficado aborrecida por ter de ir à casa de Clarice ao invés de ir para os
aparelhos de ginástica. Desligou o telefone e retornou ao quarto da filha. A
essa altura, ela já não conseguia compreender de onde vinham tantas lágrimas.
Clarice já chorava enlouquecida a mais de meia hora, sem parar por um instante
sequer. A mãe tentou de tudo. Primeiro foi um chazinho para acalmar os nervos.
Nada feito. Depois, um abraço apertado, bem junto, com palavras de acalanto ao
pé do ouvido. Nada de novo. Por último, tentou fazer com que a filha tomasse
junto com meio copo de água um comprimido calmante. Obviamente, não deu certo.
Clarice só abria a boca para chorar. Colocar goela abaixo era perigoso,
pois a garota poderia se engasgar. Por fim, a mãe já estava desesperada, não
sabia mais o que fazer, a quem pedir ajuda. Agora era ela que estava prestes a
ter um ataque dos nervos e surtar. A chegada das amigas, que combinaram entre
elas de chegarem juntas, foi um alívio.
O Comitê de Gerenciamento de
Crise marchou em direção ao quarto de Clarice. Já no recinto, ficaram as três,
uma ao lado da outra, observando a cena que se desenrolava na frente de seus
olhos. Momentos de silêncio entre elas. Só entre elas, pois Clarice se
desmanchava sobre a cama. Enquanto Paulinha coçava a cabeça, Mari segurava o
queixo, e a mãe, bem, a mãe olhava para aquilo como quem olha para um
ornitorrinco, sem entender nada.
Após algum tempo, as amigas se
entreolharam e a mãe olhou pra elas, esperando a resposta para o problema. As duas,
Paulinha e Mari, não tinham a menor ideia do que se passava com Clarice.
Nenhuma mesmo. Disseram isso para a mãe com uma dose de pena na voz. Elas viam
que ela sofria com a situação. Decidiram pedir para a mãe de Clarice sair do
quarto. O mal que fazia a filha chorar poderia ter alguma razão que a
envergonhasse perante a mãe e, por isso, ela não falava. A mãe aceitou sem
objeções.
Sozinhas no quarto com Clarice,
as amigas tentaram furar o bloqueio que impedia a existência de interação entre
ela e qualquer outra pessoa que estivesse por perto. Sentaram-se junto a ela e
com as mais doces vozes possíveis tentaram mostrar para a amiga que estavam
ali, junto com ela, que sempre estariam, e que, portanto, Clarice podia dizer
para elas qual a causa do seu choro, sem medo, sem vergonha. As duas ficaram
fazendo isso por toda a manhã.
Com a frustração do fracasso nas
costas, as amigas começaram a duvidar do tamanho da amizade que as unia. Sempre
diziam que, não importa o que acontecesse com qualquer uma delas, as outras
estariam juntas, ao lado, e o sofrimento iria passar. O sentimento, ao fim e ao
cabo, era de impotência. Não sabiam o que fazer. Passados muitos minutos, a mãe
de Clarice bateu à porta, entrou no quarto e, quando ia abrir a boca, ficou
pasma: as três jovens, unidas em um abraço que tinha Clarice no centro,
choravam. Ela permaneceu em
silêncio. A cena era triste. Bastante triste. Mas era bela.
Muito bela. Tristeza e beleza se misturavam e a tristeza era bela e a beleza,
triste. Ela também chorou, quieta. Com discrição, fechou a porta, foi ao seu
quarto, calçou os tênis e saiu. Foi dar uma volta na rua, ver pessoas, ouvir
outras coisas que não o soluçar incontido do desespero coletivo, desanuviar a
cabeça e tentar pensar um pouco, ser racional.
Assim como as amigas de Clarice,
ela também questionou o seu papel de mãe. Ela não compreendia a sua filha, não
havia sido capaz de entender o que a sua menina estava tentando lhe dizer com
as suas lágrimas. Por que Clarice chorava? O que faria Clarice chorar? Clarice,
Clarice, Clarice, Clarice... E foi assim, pensando em tudo o que vira pela manhã,
em tudo o que sentira, em tudo o que dissera e em tudo aquilo que podia ter
dito, que ela andou e andou e andou e se desprendeu do tempo. Quando se deu por
conta, o sol já havia se ido e uma leve brisa morna anunciava a chegada da
noite.
Apressou o passo, começou a
correr. Precisava ver Clarice. Precisava saber como ela estava. Precisava
abraçar e beijar, muito, a sua garotinha.
Chegou em casa. Abriu a porta.
Entrou. Algo estava diferente. Em um primeiro momento, não conseguiu
identificar o que se alterou desde o instante em que saiu. Mas estava claro que
alguma coisa tinha mudado. Foi caminhando devagar. Cruzou a sala, passou pelo
corredor, foi até a cozinha. Deu meia volta e foi em direção aos quartos.
Primeiro o seu. Estava vazio, como era de se esperar. Depois, foi ao quarto do
caçula. Ele não estava lá, assim como o seu skate. Dirigiu-se, por fim, ao
quarto de Clarice. Aproximou-se, colocou a mão na maçaneta e, então, foi aí que
percebeu o que estava diferente. O silêncio. A casa era puro silêncio. Clarice
não chorava mais. Abriu, sorrateiramente, a porta do quarto da filha. Clarice
não estava lá. Havia saído, ido para a faculdade, provavelmente, pois sua bolsa
com cadernos e livros também não estava no quarto. A cama estava arrumada,
assim todo o resto. Todas as coisas estavam em seus devidos lugares. Clarice
era muito organizada e fez questão de deixar tudo perfeito antes de sair. Sobre
o móvel de cabeceira, jazia um pequeno pedaço de papel. Era um bilhete. Nele,
Clarice escrevera, com sua letra cuidadosamente desenhada, um recado breve para
a mãe: “Estou bem. Fui pra aula. Vou dormir na casa da Mari. Bj. Te amo.”
A mãe ficou com o bilhete nas
mãos. Releu-o algumas vezes, sentada na cama da filha. “Estou bem”. Sua menina
sofrera durante quase todo o dia e ela não pôde fazer nada. Sua criança chorara
por horas e horas e ela não conseguiu acalmá-la. Sentada na cama de Clarice,
com os olhos no bilhete, ela sentia que as coisas haveriam de mudar dali para
frente. Ela não seria a mesma mãe e Clarice não seria a mesma filha (para ela).
Pela primeira vez, sentira que não tinha o controle de tudo. Pela primeira vez,
sentiu-se dispensável.
“Estou bem.”
Triste foi o dia em que Clarice acordou
chorando.
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