domingo, 13 de outubro de 2013

Lucinha Cintura Feroz

Ele queria morrer. Mas não para sempre. Simplesmente tirar umas férias da vida. Só por alguns meses. Ele estava cansado. Ele não sabia muito bem do que estava cansado, mas sabia que estava cansado. Muito cansado. Era um cansaço físico, mas também era um cansaço mental e também era um cansaço de espírito. Era cada um desses e era tudo ao mesmo tempo. Era uma massa disforme e indefinida. Não havia, portanto, como descansar de um cansaço desses, assim, meio líquido. Ele precisava de férias.

Começou a pensar, então, em como viabilizar seu desejo. Ele não queria férias do trabalho, então não adiantava procurar seu chefe. Não queria férias da faculdade, então de nada valia pedir uma licença do curso. Ele não queria férias de sua família, portanto, viajar pra longe não era uma opção. Ele queria férias da vida.

Ele próprio não sabia como operacionalizar o descanso. Passou dias e dias pensando na questão e, ainda assim, não chegara nem perto de encontrar uma solução ou uma pista que fosse. Resolveu procurar os amigos, afinal de contas, eles sempre foram excelentes em dar ideias e sugestões estapafúrdias e ele acreditava que a resposta para o seu problema não deveria ser muito óbvia.

Sentados em uma mesa de bar, os quatro, um em cada lado, tentavam descobrir um meio de fazer com que ele obtivesse o que tanto queria. A primeira hora foi gasta com ele tentando explicar o que significava aquilo que buscava. Não adiantou muito. Um dos companheiros de mesa sugeriu um retiro espiritual, algo meio ao estilo budista. “Dizem que os budistas, quando fazem aquelas orações tântricas deles, ficam bem fora da casinha.” A sugestão foi descartada de pronto. “Cara, pelo que eu entendi, o único jeito é entrar em coma”, disse um dos colegas. A ideia não era de toda má, mas envolvia um alto grau de risco e acabou sendo abandonada também. A conversa continuou com os amigos tentando entender porque ele desejava aquilo. “Tás com algum problema de saúde?”. “É dinheiro, tá sem grana?”. “Mulher, só pode ter mulher envolvida”. E assim prosseguiram os palpites e questionamentos. Eles não passavam nem perto. Era difícil explicar uma coisa como aquela. Ele já imaginava de antemão que pouca gente ou ninguém entenderia. Mas, não custava nada tentar.

A madrugada principiava, os garçons começavam a recolher as coisas, indicando que o bar estava prestes a fechar. Todos se levantaram e iam se encaminhando em direção ao balcão do caixa quando, ainda sentado, um dos confrades, o que não tinha dito nenhuma palavra a noite toda e passou bebendo uísque com gelo de modo insaciável, ergueu a voz e disse como quem tivera a solução na ponta da língua todo o tempo. “O diabo.” Todos se viraram e ele repetiu com um ar professoral. “Faz um pacto com o diabo. É o único jeito. Ele é o cara pra te quebrar esse galho.” Os amigos em pé riram e seguiram até o caixa. Ele riu também, mas aquilo ficou na sua cabeça.

Resolveu ir para casa caminhando. Não morava longe e a noite estava deveras agradável, com céu aberto e estrelas cintilando nas alturas. A cada passo dado, aquela ideia gritava na sua cabeça. “O diabo! O diabo!” Mais alguns metros. “O diabo! O diabo!”. Um quarteirão depois. “O diabo! O diabo!” Na esquina onde ficava o seu prédio. “O DIABO! O DIABO!”

Era isso. Era a solução. Tinha de ser. O tinhoso. O cão. O coxo. O chifrudo. O belzebu. Se havia alguém com poder para fazer o que ele desejava, era ele. Deus também poderia, mas, para o barbudo, a vida é divina e não pode ser tratada com desdém. É, o cara lá de cima não iria ajudar. O negócio mesmo era recorrer para o lá de baixo.
Naquela noite, ele não conseguiu dormir. Ébrio da bebida, pensou o tempo todo em como viabilizar seu encontro com o demo. Analisando o calendário que ficava na cômoda ao lado da cama, concluiu que a segunda noite da próxima lua cheia, ou seja, a quinta-feira seguinte, dia 12, seria perfeita. Chegou a cogitar a sexta-feira 13, mas disse para si mesmo que seria muito óbvio e Lúcifer era um rebelde, um revolucionário, um cara que enfrentou o sistema e que não deveria gostar de clichês.

Passou os dias que faltavam para o grande encontro muito nervoso. A ansiedade o tomava por completo e passou a beber xícaras e xícaras de café. Buscou informações na internet sobre como fazer para se encontrar com o príncipe das trevas e fechar um acordo com ele. Encontrou algumas coisas interessantes, mas achou tudo uma grande baboseira escrita por guris de apartamento criados a Toddy e viciados em RPG. Decidiu que iria fazer do seu jeito.

Era quinta-feira e faltavam cinco minutos para a meia noite. Não fazia frio, mas também não fazia calor. A temperatura amena combinada com uma serração leve e a luz desfocada dos postes criava um clima perfeito. Ele não levava nada às mãos. Não iria acender vela, fazer oferenda, tocar tambor. Nada. À meia noite em ponto, despiu de sua calça de moleton cinza e de sua cueca samba-canção lilás. Tirou o casaco e a camiseta que vestia por baixo. Estava nu.

No cruzamento há duas quadras de seu apartamento, à meia noite de uma quinta-feira, ele estava nu, de braços abertos tal qual o Cristo Redentor, de olhos fechados e com a cabeça baixa. Ele fazia algum tipo de oração, um pedido com fé. Ele pedia para que o todo poderoso senhor do inferno aparecesse e lhe desse uma graça, lhe concedendo um pedido. Uma garoa começou a cair e, de súbito, um raio espocou à sua frente. A luz intensa o cegou por alguns instantes mesmo ele estando com os olhos fechados no momento da explosão. Quando seus olhos começaram a enxergar novamente, ele percebeu um vulto à sua frente. Um vulto com curvas. Um vulto com curvas voluptuosas. Um vulto com uma longa cauda movendo-se para lá e para cá. A nitidez do que ele via foi aumentando e então, quando conseguiu ver perfeitamente o que estava ali, diante de si, achou que algo havia dado errado.

Uma mulher, vestida com um macacão vermelho de couro reluzente, colado ao corpo luxurioso, com um rabo sacolejante, dois pequenos chifres sobre a cabeça, a mão direita segurando firme um tridente e a esquerda junto à cintura. Um sorriso insinuante no rosto lindo e um cheiro de perfume barato que tomava conta do ar. Em suma, era o retrato da lascívia e do desejo. Com chifres e cauda.

Ele esfregou os olhos como quem acorda de um sono profundo e conferiu, mais uma vez, aquele ser postado há dois metros de si. Tão logo percebeu que estava nu diante de uma mulher, cobriu com as mãos suas vergonhas.

- “Que... quem é você?”, perguntou. 

- “Como assim ‘quem é você’? Foi você que me chamou. Não estou aqui porque gosto desta cidade horrorosa. Fale logo de uma vez, o que você quer de mim?”

- “Não pode ser, deve ter havido algum engano. Eu invoquei Satanás, eu exigi a presença do próprio Diabo, e não de uma assistente ou ‘diabete’ ou o que quer que você seja.”

- “Em primeiro lugar, querido, insetos não exigem nada, imploram. Em segundo lugar, ‘diabete’ é a grandessíssima puta que o pariu. E, em terceiro lugar, eu sou aquela a quem você queria ver e, portanto, fale de uma vez o que deseja, pois tenho muitas coisas mais divertidas para fazer do que ficar aqui embaixo dessa chuva, nesse fim de mundo, olhando para essa sua cara feia.”

- “Mas você é mulher! Ou, pelo menos, parece ser.”

- “Sim, sou mulher, e daí? Quem é que disse que quem manda lá embaixo tinha de ser homem? Sou mulher, gostosa, linda, poderosa e sadomasô. Sou a rainha das trevas, a maioral do submundo, a manda-chuva do inferno. Qual o problema?”

- “Nenhum problema não, senhora, mas... bom, ... hã,... se o Diabo é mulher, Deus também é?”

- “Não, chéri, ele é um traveco.”

- “Traveco!! Como assim, um traveco?”

- “Um traveco, bebê. Uma mulher com pica, gogó e bunda sem celulite. E não vem me dizer que não sabe como é, pois, assim como a tia lá de cima, eu também sou onipresente e me lembro muito bem do Carnaval de 2007, em Camboriu, o senhor bebaço, quatro e meia da manhã, atrás do posto de gasolina.”

- "Hmm... err... mas todo mundo te chama de Lúcifer! E você é mulher!”

- "Ahhh... essa história é antiga, mon petit. Isso remonta a um réveillon lá no céu. Eu era uma anjinha rebelde, que adorava dançar. A festa estava ótima, a bebida estava, literalmente, divina, eu me empolguei e rebolei loucamente, como se não houvesse amanhã. Pessoal parou pra me olhar. Foi demais! A Banda de Harpas parou de tocar também, ficaram embasbacados. Eu fui até o chão, linda, leve e louca.”

- “E o que isso tem a ver com o nome Lúcifer? Qual o seu nome de verdade?”

- “Pois então. Depois disso, a galera me deu um apelido. Como o meu nome é Lúcia, começaram a me chamar de Lucinha Cintura Feroz. Daí para contraírem o apelido e transformarem em Lúcifer foi um pulo.”

- “Puxa vida, que coisa. Mas, me conta, como é que saíste do céu e foste parar no inferno?”

- “Ahh, mas que cara chato do caralho. Tá bom, essa é última que eu respondo. Eu andei jogando charme pro Gabriel, o bofe da chefia. Sempre quis saber se havia nele algo mais do que aqueles cachinhos louros e olhos azuis. Ele resistiu por um tempo, mas eu manjo do negócio. Acabou que eu peguei ele, a biba mor descobriu, deu um piti e me chutou de lá. Acabei indo parar onde parei. No final das contas, apesar do Gabi ser meio fraco, não ter pegada, eu acabei no lucro. Lá embaixo é muito mais legal. Satisfeito?”

- “Sim, sim, muito.”

- “Tá, seguinte, o que você quer, afinal? Já perdi muito tempo aqui. Vamos, fala de uma vez.”

- “Sim, sim, ok. É que eu queria tirar umas férias da minha vida, sabe? Basicamente, deixar de existir por alguns meses, uns três, mais ou menos. Seria, tipo, morrer, só que por pouco tempo. Só pra descansar a cabeça, aliviar a tensão, relaxar de verdade. Entende?”

- “Hmmm, interessante, bem interessante. Confesso que seu pedido é bem original. Nunca fiz nada igual, mas acho que posso dar um jeito. Bom, você sabe como funciona comigo né?”

- “Sim, sei. Vou ter de te vender a minha alma né? Sem problemas. É sua, pode pegar.”

- “Nã-na-ni-na-não. Esse negócio de alma a minha assessoria espalhou na imprensa pra manter uma aura mística na coisa. Comigo é diferente. Sou mais hot, se é que me entendes.”

- “Tudo bem, pra mim tanto faz. O que eu vou ter de te dar, então?”

- “O cu.”

- “O quê??!!”

- “Vais ter de me dar o cu, ora.”

- “Como assim?”

- “É um fetiche que eu tenho. Usar um cinto desses com uma pica de borracha e mandar ver. E aí, vâmo ou não vâmo? Você que decide.”

- “Caramba, por essa eu não esperava...”

- “Decide de uma vez porque eu não tenho todo o tempo do mundo. Quem controla o tempo é ela lá de cima.”

- “Seria tão mais fácil se desfazer da alma. Mas, se desfazer das pregas é complicado... que coisa... bom, acho que é um sacrifício que vai valer a pena.”

- “Negócio fechado, então?”

- “Negócio fechado!”

- “Ótimo! Aperta a minha mão aqui e que seja feita a vossa vontade.”

Ela estendeu a mão esquerda e ele fez o mesmo. As mão se uniram e, então, a Capeta puxou com força o braço de sua vítima fazendo com que ele, como em um passo de dança de salão, ficasse, de súbito, de costas para si. Com uma batida rápida do tridente no chão, um cinto com um tremendo de um cacete surgiu ao redor da cintura dela que, na mesma hora, cravou o instrumento no orifício anal do homem que, só teve tempo de arregalar os olhos e dar um uivo que varreu a escuridão da noite. Uma lágrima escorreu solitária na sua face alva.

Para a frustração dele, toda a história do acordo era mentira. Ele não ganhou as férias da vida e ficou por mais de mês sem poder sentar direito. A tristeza tomou conta dos seus dias e a prostração, do seu corpo. Deixou de comer, não saiu mais do apartamento. Abandonou os amigos e a família. A bebida lhe corroeu a carne. Definhou. Ao fim dos três meses que havia pedido de férias vitais e que passou sozinho entre quatro paredes, estava caído no chão da sala. A vida, enfim, lhe daria o descanso que tanto queria. Por um instante, lembrou do encontrou que selou seus últimos dias, pensou em como era bonita, a danada, e expirou. Segundo relatos, até hoje, pelas bandas daquele bairro, ainda se ouve aquele uivo desesperado nas noites de lua cheia.

Ao fim das contas, a emenda acabou saindo pior do que o soneto. A solução rápida e fugaz, o esquecimento, a substituição simples, nenhum deu resultado. No fundo, bem lá no fundo, ele sabia que não devia confiar no diabo. Ou na diaba. Ainda mais em uma diaba chamada Lucinha Cintura Feroz.