Ele queria morrer. Mas não para
sempre. Simplesmente tirar umas férias da vida. Só por alguns meses. Ele estava
cansado. Ele não sabia muito bem do que estava cansado, mas sabia que estava
cansado. Muito cansado. Era um cansaço físico, mas também era um cansaço mental
e também era um cansaço de espírito. Era cada um desses e era tudo ao mesmo
tempo. Era uma massa disforme e indefinida. Não havia, portanto, como descansar
de um cansaço desses, assim, meio líquido. Ele precisava de férias.
Começou a pensar, então, em como
viabilizar seu desejo. Ele não queria férias do trabalho, então não adiantava
procurar seu chefe. Não queria férias da faculdade, então de nada valia pedir
uma licença do curso. Ele não queria férias de sua família, portanto, viajar
pra longe não era uma opção. Ele queria férias da vida.
Ele próprio não sabia como
operacionalizar o descanso. Passou dias e dias pensando na questão e, ainda
assim, não chegara nem perto de encontrar uma solução ou uma pista que fosse. Resolveu
procurar os amigos, afinal de contas, eles sempre foram excelentes em dar
ideias e sugestões estapafúrdias e ele acreditava que a resposta para o seu
problema não deveria ser muito óbvia.
Sentados em uma mesa de bar, os
quatro, um em cada lado, tentavam descobrir um meio de fazer com que ele
obtivesse o que tanto queria. A primeira hora foi gasta com ele tentando
explicar o que significava aquilo que buscava. Não adiantou muito. Um dos
companheiros de mesa sugeriu um retiro espiritual, algo meio ao estilo budista.
“Dizem que os budistas, quando fazem aquelas orações tântricas deles, ficam bem
fora da casinha.” A sugestão foi descartada de pronto. “Cara, pelo que eu
entendi, o único jeito é entrar em coma”, disse um dos colegas. A ideia não era
de toda má, mas envolvia um alto grau de risco e acabou sendo abandonada
também. A conversa continuou com os amigos tentando entender porque ele
desejava aquilo. “Tás com algum problema de saúde?”. “É dinheiro, tá sem
grana?”. “Mulher, só pode ter mulher envolvida”. E assim prosseguiram os
palpites e questionamentos. Eles não passavam nem perto. Era difícil explicar
uma coisa como aquela. Ele já imaginava de antemão que pouca gente ou ninguém
entenderia. Mas, não custava nada tentar.
A madrugada principiava, os garçons
começavam a recolher as coisas, indicando que o bar estava prestes a fechar.
Todos se levantaram e iam se encaminhando em direção ao balcão do caixa quando,
ainda sentado, um dos confrades, o que não tinha dito nenhuma palavra a noite
toda e passou bebendo uísque com gelo de modo insaciável, ergueu a voz e disse
como quem tivera a solução na ponta da língua todo o tempo. “O diabo.” Todos se
viraram e ele repetiu com um ar professoral. “Faz um pacto com o diabo. É o
único jeito. Ele é o cara pra te quebrar esse galho.” Os amigos em pé riram e
seguiram até o caixa. Ele riu também, mas aquilo ficou na sua cabeça.
Resolveu ir para casa caminhando.
Não morava longe e a noite estava deveras agradável, com céu aberto e estrelas
cintilando nas alturas. A cada passo dado, aquela ideia gritava na sua cabeça.
“O diabo! O diabo!” Mais alguns metros. “O diabo! O diabo!”. Um quarteirão
depois. “O diabo! O diabo!” Na esquina onde ficava o seu prédio. “O DIABO! O
DIABO!”
Era isso. Era a solução. Tinha de
ser. O tinhoso. O cão. O coxo. O chifrudo. O belzebu. Se havia alguém com poder
para fazer o que ele desejava, era ele. Deus também poderia, mas, para o
barbudo, a vida é divina e não pode ser tratada com desdém. É, o cara lá de
cima não iria ajudar. O negócio mesmo era recorrer para o lá de baixo.
Naquela noite, ele não conseguiu
dormir. Ébrio da bebida, pensou o tempo todo em como viabilizar seu encontro
com o demo. Analisando o calendário que ficava na cômoda ao lado da cama,
concluiu que a segunda noite da próxima lua cheia, ou seja, a quinta-feira
seguinte, dia 12, seria perfeita. Chegou a cogitar a sexta-feira 13, mas disse
para si mesmo que seria muito óbvio e Lúcifer era um rebelde, um
revolucionário, um cara que enfrentou o sistema e que não deveria gostar de clichês.
Passou os dias que faltavam para
o grande encontro muito nervoso. A ansiedade o tomava por completo e passou a
beber xícaras e xícaras de café. Buscou informações na internet sobre como
fazer para se encontrar com o príncipe das trevas e fechar um acordo com ele.
Encontrou algumas coisas interessantes, mas achou tudo uma grande baboseira
escrita por guris de apartamento criados a Toddy e viciados em RPG. Decidiu que iria
fazer do seu jeito.
Era quinta-feira e faltavam cinco
minutos para a meia noite. Não fazia frio, mas também não fazia calor. A
temperatura amena combinada com uma serração leve e a luz desfocada dos postes
criava um clima perfeito. Ele não levava nada às mãos. Não iria acender vela,
fazer oferenda, tocar tambor. Nada. À meia noite em ponto, despiu de sua calça
de moleton cinza e de sua cueca samba-canção lilás. Tirou o casaco e a camiseta
que vestia por baixo. Estava nu.
No cruzamento há duas quadras de
seu apartamento, à meia noite de uma quinta-feira, ele estava nu, de braços abertos
tal qual o Cristo Redentor, de olhos fechados e com a cabeça baixa. Ele fazia
algum tipo de oração, um pedido com fé. Ele pedia para que o todo poderoso
senhor do inferno aparecesse e lhe desse uma graça, lhe concedendo um pedido.
Uma garoa começou a cair e, de súbito, um raio espocou à sua frente. A luz
intensa o cegou por alguns instantes mesmo ele estando com os olhos fechados no
momento da explosão. Quando seus olhos começaram a enxergar novamente, ele
percebeu um vulto à sua frente. Um vulto com curvas. Um vulto com curvas voluptuosas.
Um vulto com uma longa cauda movendo-se para lá e para cá. A nitidez do que ele
via foi aumentando e então, quando conseguiu ver perfeitamente o que estava
ali, diante de si, achou que algo havia dado errado.
Uma mulher, vestida com um
macacão vermelho de couro reluzente, colado ao corpo luxurioso, com um rabo
sacolejante, dois pequenos chifres sobre a cabeça, a mão direita segurando
firme um tridente e a esquerda junto à cintura. Um sorriso insinuante no rosto
lindo e um cheiro de perfume barato que tomava conta do ar. Em suma, era o
retrato da lascívia e do desejo. Com chifres e cauda.
Ele esfregou os olhos como quem
acorda de um sono profundo e conferiu, mais uma vez, aquele ser postado há dois
metros de si. Tão logo percebeu que estava nu diante de uma mulher, cobriu com
as mãos suas vergonhas.
- “Que... quem é você?”,
perguntou.
- “Como assim ‘quem é você’? Foi
você que me chamou. Não estou aqui porque gosto desta cidade horrorosa. Fale
logo de uma vez, o que você quer de mim?”
- “Não pode ser, deve ter havido
algum engano. Eu invoquei Satanás, eu exigi a presença do próprio Diabo, e não
de uma assistente ou ‘diabete’ ou o que quer que você seja.”
- “Em primeiro lugar, querido,
insetos não exigem nada, imploram. Em segundo lugar, ‘diabete’ é a
grandessíssima puta que o pariu. E, em terceiro lugar, eu sou aquela a quem
você queria ver e, portanto, fale de uma vez o que deseja, pois tenho muitas
coisas mais divertidas para fazer do que ficar aqui embaixo dessa chuva, nesse
fim de mundo, olhando para essa sua cara feia.”
- “Mas você é mulher! Ou, pelo
menos, parece ser.”
- “Sim, sou mulher, e daí? Quem é
que disse que quem manda lá embaixo tinha de ser homem? Sou mulher, gostosa,
linda, poderosa e sadomasô. Sou a rainha das trevas, a maioral do submundo, a manda-chuva
do inferno. Qual o problema?”
- “Nenhum problema não, senhora,
mas... bom, ... hã,... se o Diabo é mulher, Deus também é?”
- “Não, chéri, ele é um traveco.”
- “Traveco!! Como assim, um
traveco?”
- “Um traveco, bebê. Uma mulher
com pica, gogó e bunda sem celulite. E não vem me dizer que não sabe como é,
pois, assim como a tia lá de cima, eu também sou onipresente e me lembro muito
bem do Carnaval de 2007, em Camboriu, o senhor bebaço, quatro e meia da manhã,
atrás do posto de gasolina.”
- "Hmm... err... mas todo mundo te
chama de Lúcifer! E você é mulher!”
- "Ahhh... essa história é antiga,
mon petit. Isso remonta a um réveillon lá no céu. Eu era uma anjinha rebelde,
que adorava dançar. A festa estava ótima, a bebida estava, literalmente,
divina, eu me empolguei e rebolei loucamente, como se não houvesse amanhã.
Pessoal parou pra me olhar. Foi demais! A Banda de Harpas parou de tocar
também, ficaram embasbacados. Eu fui até o chão, linda, leve e louca.”
- “E o que isso tem a ver com o
nome Lúcifer? Qual o seu nome de verdade?”
- “Pois então. Depois disso, a
galera me deu um apelido. Como o meu nome é Lúcia, começaram a me chamar de
Lucinha Cintura Feroz. Daí para contraírem o apelido e transformarem em Lúcifer
foi um pulo.”
- “Puxa vida, que coisa. Mas, me
conta, como é que saíste do céu e foste parar no inferno?”
- “Ahh, mas que cara chato do
caralho. Tá bom, essa é última que eu respondo. Eu andei jogando charme pro
Gabriel, o bofe da chefia. Sempre quis saber se havia nele algo mais do que
aqueles cachinhos louros e olhos azuis. Ele resistiu por um tempo, mas eu manjo
do negócio. Acabou que eu peguei ele, a biba mor descobriu, deu um piti e me
chutou de lá. Acabei indo parar onde parei. No final das contas, apesar do Gabi
ser meio fraco, não ter pegada, eu acabei no lucro. Lá embaixo é muito mais
legal. Satisfeito?”
- “Sim, sim, muito.”
- “Tá, seguinte, o que você quer,
afinal? Já perdi muito tempo aqui. Vamos, fala de uma vez.”
- “Sim, sim, ok. É que eu queria
tirar umas férias da minha vida, sabe? Basicamente, deixar de existir por
alguns meses, uns três, mais ou menos. Seria, tipo, morrer, só que por pouco
tempo. Só pra descansar a cabeça, aliviar a tensão, relaxar de verdade.
Entende?”
- “Hmmm, interessante, bem
interessante. Confesso que seu pedido é bem original. Nunca fiz nada igual, mas
acho que posso dar um jeito. Bom, você sabe como funciona comigo né?”
- “Sim, sei. Vou ter de te vender
a minha alma né? Sem problemas. É sua, pode pegar.”
- “Nã-na-ni-na-não. Esse negócio
de alma a minha assessoria espalhou na imprensa pra manter uma aura mística na
coisa. Comigo é diferente. Sou mais hot, se é que me entendes.”
- “Tudo bem, pra mim tanto faz. O
que eu vou ter de te dar, então?”
- “O cu.”
- “O quê??!!”
- “Vais ter de me dar o cu, ora.”
- “Como assim?”
- “É um fetiche que eu tenho.
Usar um cinto desses com uma pica de borracha e mandar ver. E aí, vâmo ou não
vâmo? Você que decide.”
- “Caramba, por essa eu não
esperava...”
- “Decide de uma vez porque eu
não tenho todo o tempo do mundo. Quem controla o tempo é ela lá de cima.”
- “Seria tão mais fácil se
desfazer da alma. Mas, se desfazer das pregas é complicado... que coisa... bom,
acho que é um sacrifício que vai valer a pena.”
- “Negócio fechado, então?”
- “Negócio fechado!”
- “Ótimo! Aperta a minha mão aqui
e que seja feita a vossa vontade.”
Ela estendeu a mão esquerda e ele
fez o mesmo. As mão se uniram e, então, a Capeta puxou com força o braço de sua
vítima fazendo com que ele, como em um passo de dança de salão, ficasse, de súbito,
de costas para si. Com uma batida rápida do tridente no chão, um cinto com um
tremendo de um cacete surgiu ao redor da cintura dela que, na mesma hora,
cravou o instrumento no orifício anal do homem que, só teve tempo de arregalar
os olhos e dar um uivo que varreu a escuridão da noite. Uma lágrima escorreu
solitária na sua face alva.
Para a frustração dele, toda a
história do acordo era mentira. Ele não ganhou as férias da vida e ficou por
mais de mês sem poder sentar direito. A tristeza tomou conta dos seus dias e a
prostração, do seu corpo. Deixou de comer, não saiu mais do apartamento.
Abandonou os amigos e a família. A bebida lhe corroeu a carne. Definhou. Ao fim dos três meses que havia
pedido de férias vitais e que passou sozinho entre quatro paredes, estava caído
no chão da sala. A vida, enfim, lhe daria o descanso que tanto queria. Por um
instante, lembrou do encontrou que selou seus últimos dias, pensou em como era
bonita, a danada, e expirou. Segundo relatos, até hoje, pelas bandas daquele
bairro, ainda se ouve aquele uivo desesperado nas noites de lua cheia.
Ao fim das contas, a emenda
acabou saindo pior do que o soneto. A solução rápida e fugaz, o esquecimento, a
substituição simples, nenhum deu resultado. No fundo, bem lá no fundo, ele
sabia que não devia confiar no diabo. Ou na diaba. Ainda mais em uma diaba
chamada Lucinha Cintura Feroz.
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