Era uma bela manhã de verão. Ele acordara refeito após uma
excelente noite de sono pesado e revigorante. Espreguiçara-se com parcimônia,
tomara um demorado banho com água fria. Que dia fazia lá fora! Sol reinando
soberano, algumas poucas nuvens quebrando a monocromia do céu. Vestira-se e
saíra para, como fazia em todas as manhãs, comprar pão quentinho na padaria que
ficava há duas quadras descendo a rua. Caminhava com alegre satisfação.
Cumprimentou os conhecidos, sorriu ao ver os cãezinhos se refestelando no
parque, gargalhou após tropeçar em uma lajota que se sobressaía às outras na
calçada. Limpou os tênis no tapete da entrada da padaria, meneou a cabeça para
a senhora de óculos com grandes aros de acrílico transparente que ficava no
caixa logo cedo pela manhã fazendo tricô entre um cliente e outro, deu passos
leves em direção ao balcão ao fundo, postou-se em frente a ele e à moça que,
atenta, aguardava o seu pedido, e disse:
“A bela senhorita poder-me-ia dar quatro pãezinhos?”
Saiu assim, ao natural, sem cerimônias. “Poder-me-ia dar
quatro pãezinhos?”
A atendente, que estava no seu segundo dia naquele emprego e
não o conhecia, ficou boquiaberta. Não entendera nada daquela profusão de
letras e palavras, mas compreendera do que se tratava o pedido e achara aquele
homem muito metido com seu palavreado rebuscado. Virou-se e foi pegar os pães,
que ainda estavam no forno.
Enquanto isso, do outro lado do balcão, ele estava
petrificado. Imóvel. Olhos bem abertos. Estava quase que em estado de choque. O
seu cérebro não havia enviado à sua boca aquela ordem. Ou, se havia, o fizera
por sua livre e espontânea vontade. Ele
não sabia o que pensar. De onde viera aquilo? Não tinha a menor ideia. Ele nem
gostava de usar palavras ou construções frasais difíceis e costumava chamar de
pedante quem fazia isso. Agora, assim, do nada, sem nenhuma necessidade, no
balcão da padaria, vestindo bermuda e camiseta regata, ele fizera uso de uma
mesóclise. “Poder-me-ia dar quatro pãezinhos?”
A partir daquela manhã, daquele dia, a sua vida virou um
inferno. Ele já não conseguia falar uma frase sequer sem usar uma mesóclise.
Não conseguia se conter. Era mais forte do que ele. Era uma força superior,
incontrolável, selvagem.
Para a esposa, após uma noite de luxurioso amor. “Se, em um
dia desses, eu sumisse, tu procurar-me-ia até me encontrar?”
A um transeunte que procurava uma rua nas redondezas.
“Ajudá-lo-ia com prazer, mas, infelizmente, não sei onde fica essa rua.”
Para a filha, após ela fazer uma travessura. “Se tu fizeres
isso de novo, eu zangar-me-ei muito, ouviste?”
No fórum, testemunhando em um caso de acidente de
trânsito, após lhe perguntarem se diria a verdade, somente a verdade, nada
mais que a verdade. “Di-la-ei.”
Ao recusar uma proposta de trabalho. “Eu sei que no futuro
arrepender-me-ei disso, mas não posso aceitar o emprego neste momento.”
Nem ele se aguentava mais. Passados três meses, após ser
convencido pela família e amigos de que aquilo deveria ter algum tipo de
tratamento, procurou um médico.
“Doutor, é muito constrangedor, já não tenho mais saído de
casa, pedi licença no trabalho, ninguém consegue ficar mais de um minuto
conversando comigo. Colocar-me-ei à disposição do senhor, faça os testes que
quiser. Já tentei simpatia, pai de santo, sessão espírita. Nada adiantou. O senhor
é a minha última esperança, doutor. O senhor ajudar-me-ia a dar fim a essa
maldição que me tomou e da qual eu não consigo me ver livre?”
O médico confessou que nunca vira ou tivera ouvido falar
daquilo antes. Algum tipo de síndrome que fazia com que um homem usasse a todo
o momento uma forma verbal que não se usa na linguagem oral. Um caso sério e
intrigante, sem dúvida. O doutor disse que iria pesquisar a respeito e o dispensou garantindo que entraria em contato quando tivesse descoberto algo. Na
ficha que estava em sua mesa, no espaço reservado para o tipo de doença que
acometia o paciente, ele escreveu com letras ininteligíveis: “O Incrível Caso
do Homem Mesóclise.”
Seis meses se passaram. Ele abandonara o trabalho. Outros
seis meses se foram. Desistira de toda e qualquer relação social. Outros seis
meses. A família o deixara.
Ele não tinha mais nada. Não tinha mais ninguém.
Somente tinha um vocabulário rico em variedade de conjugações verbais, mas isso
não o deixava feliz.
Sofria. Ele sofria muito, e sofria calado, o que é bem
pior. Sofre em dobro aquele que sofre calado. Ele sofria calado, e sofria
sozinho. Muito. Sofria muito. Calado e sozinho. Era assim que ele sofria.
Durante todo um ano, viveu se mantendo com as economias
de uma vida inteira. Até que elas acabaram. Teve de deixar a sua casa, pois não
podia mais pagar as prestações. Pegou suas poucas coisas que haviam restado,
basicamente roupas e livros, e saiu. A rua passou a ser o seu lar. Um lar
hostil, mas, ainda assim, um lar.
Perambulou por entre os becos. Dormiu sob viadutos e pontes.
Agasalhou-se com caixas de papelão. Comeu restos nas calçadas. Foi esquecido
por todos que, em algum dia do passado, disseram que o amavam. Perdeu-se no
mundo.
Esperou até seus últimos dias pelo chamado do médico que
nunca ocorreu. Morreu sonhando em se ver curado da sua maldição. Ainda hoje,
espalhados pelos muros da cidade, estão seus escritos de lamento. Testemunhos de sua
existência.
“Procurar-me-ia?
Não importa.
Encontrar-te-ei!”