sexta-feira, 27 de junho de 2014

A Festa


Quando seu telefone celular vibrou indicando que uma mensagem havia chegado, ele já imaginou do que se tratava. “Festa hoje. Meia noite lá. Ela vai também.” Ele já esperava aquela mensagem. De algum modo, porém, torcia para que ela não chegasse. Torcia para que o telefone não vibrasse naquele fim de tarde. Mas ele vibrou. Havia dado a sua palavra de que, desta vez, iria acompanhar os amigos. Precisava honrá-la. (bobagem, bobagem...)

Terminou de assistir ao filme que via na TV (na verdade, vira muito pouco, pois dormira durante a maior parte do tempo depois de mais uma madrugada em claro), e foi à cozinha comer algo. Suco de laranja e alguns biscoitos. Ligou o som, Stones nas alturas, e foi tomar um banho. Abriu o roupeiro e começou a escolher o que iria vestir. Não se demorou muito, apesar de ser razoavelmente vaidoso. Calças jeans escuro, camisa aberta sobre uma camiseta e tênis. Penteou-se, gotas de perfume, carteira, celular. Uma última olhada no espelho... hmm... ok, tudo certo.

Luzes desligadas, porta trancada, portão chaveado.

Ainda era cedo. O clima estava agradável, temperatura amena. O céu estrelado e a lua cheia brilhante faziam daquela uma noite bem clara. Ele resolveu caminhar um pouco. Não havia razão para parar o primeiro táxi ou a primeira lotação que passasse. As ruas estavam bem movimentadas. Era uma sexta-feira.

Enquanto caminhava, pensou em muitas coisas. Precisava mesmo fazer aquilo? Não estavam lhe obrigando. Ele não tinha uma faca no pescoço. Por que estava indo, então? Ok, ele gostava dela. Esse era um motivo. Esse era o motivo. Era um bom motivo, sem dúvida. O melhor motivo possível, talvez. Leu, mais uma vez, a mensagem no celular. “Ela vai também.” Ganhou confiança. Sorriu. “Ela vai estar lá”, disse para si mesmo. “Ela vai estar lá”

Fez sinal. Embarcou em um ônibus. Estava vazio. Sentou-se em um banco junto à janela, bem no meio do coletivo. Pôs os fones nos ouvidos e recostou a cabeça no vidro. A viagem seria longa.

Não a conhecia há muito tempo. Alguns poucos meses, apenas. Não estava apaixonado. Sabia o efeito de uma paixão na sua vida. Não era o caso agora. Ainda não. Mas ele gostava dela. Gostava muito. A festa era uma oportunidade de encontrá-la em um ambiente mais descontraído, mais relaxado. Seria, até aquele momento, a melhor oportunidade que ele teria para uma aproximação. Mas ele não gostava muito de festas. Costumava ir com frequência quando mais jovem. Mas, agora, não gostava muito. Não tinha paciência para esperar em grandes filas do lado de fora, para entrar, nem do lado de dentro, para pagar ou pedir uma cerveja. Além disso, nunca se dava bem com as garotas. Sua maior virtude em todo o processo, do flerte até o beijo, sempre fora a conversa. Era esperto, respondia rápido, tinha boa cultura geral, acabava fazendo o papo fluir. Mas, lá dentro, no meio da festa, seu superpoder era neutralizado. Música alta demais era a sua kriptonita. Também tinha os amigos tirando a atenção, mas isso era secundário. O som estourando nos alto-falantes é que dificultava muito a coisa toda.

Mas ela iria estar lá. Isso mudava um pouco a situação. E mudava porque ele já a conhecia.  Não precisaria mostrar para ela que era um cara bacana. Uma parte importante do caminho já havia sido percorrida, portanto. Por um momento, tentou projetar em sua cabeça todo o cenário que vivenciaria a seguir. Viu as luzes, viu o globo espelhado girando sobre a sua cabeça. Havia muita gente. Todo o tipo de gente. O dj balançava os braços e fazia uma dança bem estranha, movimentando o quadril sinuosamente.  Um rapaz jazia, solitário, em um sofá de dois lugares que ficava em um canto. Havia se passado na bebida, aquele rapaz. Encostadas em uma das paredes, duas meninas se beijavam fervorosamente.  Bem no meio da pista, estava ela. Nossa, como estava linda. Seus cabelos negros dançavam, iluminados pelas luzes coloridas que cruzavam de um lado para o outro. Ela sorria um sorriso livre, verdadeiro. Seu vestido girava. As mãos para o alto. Um salto! Seus pés no ar, suspensos. Era como se ela pudesse voar. A partir daí, todo o resto deixou de existir. Já não via mais o rapaz no sofá, não via as meninas na parede, tampouco o dj dançarino. Ela brilhava em meio ao caos. Era uma deusa entre mortais.

O ônibus passou sobre um buraco, sacolejou, ele bateu a cabeça na janela, e voltou a si. Tirou os óculos, esfregou os olhos. Conferiu o horário no telefone. Não estava atrasado. O que era bem bom, pois costumava se atrasar com frequência a qualquer tipo de compromisso acertado.

Repassou na memória a última festa a que tinha ido. Era em uma casa conhecida na cidade. Ele já havia estado lá algumas vezes, na época da faculdade. Passou quase toda a noite avulso. Encontrou companhia na cerveja. Gastou muito naquela festa. Bebeu além da conta. Foi embora antes de todos os conhecidos, controlando-se para não vomitar a cada passo que dava na rua semideserta. No dia seguinte, passou a maior parte do tempo atirado em qualquer lugar da casa. Seu corpo cobrava o preço do excesso.

Desta vez, seria diferente.

“Ela vai também.”

Já havia cruzado a cidade. Sentia uma mistura de ansiedade e nervosismo. Não distinguia o som que tocava em seus ouvidos. Tamborilava os dedos no encosto de cabeça do banco da frente. Só tinha de esperar o tempo passar, as rodas girarem, o asfalto ficar para trás.

Luzes do lado de fora ofuscaram a sua visão. Levantou de sobressalto. Puxou a cordinha sinalizando que desejava desembarcar na próxima parada. O ônibus freou bruscamente. As portas se abriram e, em um pulo, ele já estava na rua. Dois, três passos. Parou. Olhou para os lados. Tirou do bolso o mapa que havia desenhado de forma tosca em um pequeno pedaço de papel. Procurou a luz de um poste logo à frente. Franziu a testa. Havia algo errado. Não era ali. Ele descera do coletivo no susto e acabara errando o ponto de desembarque. Teve de caminhar.

Seguiu solenemente pelas ruas movimentadas daquela região da cidade que ele não conhecia bem. Era uma visita ao desconhecido.  Uma área com um comércio agitado durante o dia e outro, da mesma forma, à noite. As vitrines eram as esquinas. Peças expostas ao toque, sem proteção, sem vidraças, sem cortinas de ferro. Um comércio popular. Sem restrições de circulação e público. Cheiros e cores. Corpos e silhuetas. Desejos latentes. Seguiu. Passou por alguns bares. Lugares pequenos. Cheirando a cigarro barato. Cerveja quente nas mesas. Homens de meia idade gastando o tempo livre após o expediente nas fábricas falando bobagem e jogando sinuca a cinquenta centavos a ficha.

Mais alguns minutos de caminhada, e ele avistou à frente as luzes da fachada do seu local de destino.

“Ela vai também.”

Parou ao lado de um carro estacionado. Conferiu o penteado no vidro escurecido. Nada mal. Respirou fundo. Estava confiante. Havia de ser desta vez. Chegando próximo à entrada do lugar, percebeu que não havia filas. Achou que era um bom sinal. Algumas meninas conversavam e fumavam descontraidamente junto à porta, mas não pareciam estar esperando para entrar. Empertigou o corpo, meneou a cabeça para o segurança da entrada, pegou a comanda que levava o seu nome, e entrou.

Percorreu sozinho um estreito e silencioso corredor escuro que cheirava a incenso barato. Logo à frente, vislumbrou uma porta. Lentamente, foi em direção a ela. Com a mão direita espalmada, empurrou-a.

Ali estava ele. Ao seu redor, pessoas se moviam sem pudores. O som, como previsto, fazia seus ouvidos zunirem. Caminhou até o centro da pista de dança. Olhou para os lados. Havia bastante gente ali naquela noite de sexta-feira. Levou alguns poucos minutos para ele entrar na frequência do ambiente. As pessoas dançavam alegremente em uma atmosfera festiva, mas ainda pouco alcoólica. A noite recém estava começando.

A partir daí, muita coisa aconteceu. De pouca coisa ele se lembrava. Somente flashes. Relâmpagos cruzando a sua mente. Imagens pueris, se liquefazendo em sua memória.

Quase seis horas haviam se passado. Ele já estava ébrio. Seus ouvidos doíam. Suas pernas, cansadas. Seu corpo gritava, querendo pôr para fora aquilo que tinha lhe deixado tão desinibido. Seus olhos já não enxergavam direito. Foi ao banheiro. Vomitou. Juntou água com as mãos e jogou sobre a face. Estava um caco. Voltou para o salão. Deu, detalhadamente, uma última olhada por todo o espaço. Não. Já estava amanhecendo lá fora. No caixa, pagou a conta. Alta, bem alta. Quatro pessoas ainda resistiam bravamente naquele resquício de festa. Passou por elas com vagar. Andava com dificuldade. Antes de sair, voltou a vomitar, no meio da pista, desta vez. Não acertou ninguém, por sorte. Junto à porta que dava para o corredor estreito e silencioso com cheiro de incenso barato, escorou-se e olhou para trás. Não.

Ela não estava lá. Ela não esteve lá. Não adiantava mais esperar. Ela não estaria lá.

Abriu a porta e se foi.

Ele não ouviu a si mesmo.

Ele não gostava muito de festas.

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