Quando seu telefone celular vibrou indicando que uma
mensagem havia chegado, ele já imaginou do que se tratava. “Festa hoje. Meia
noite lá. Ela vai também.” Ele já esperava aquela mensagem. De algum modo,
porém, torcia para que ela não chegasse. Torcia para que o telefone não
vibrasse naquele fim de tarde. Mas ele vibrou. Havia dado a sua palavra de que,
desta vez, iria acompanhar os amigos. Precisava honrá-la. (bobagem, bobagem...)
Terminou de assistir ao filme que via na TV (na verdade,
vira muito pouco, pois dormira durante a maior parte do tempo depois de mais
uma madrugada em claro), e foi à cozinha comer algo. Suco de laranja e alguns
biscoitos. Ligou o som, Stones nas alturas, e foi tomar um banho. Abriu o roupeiro
e começou a escolher o que iria vestir. Não se demorou muito, apesar de ser
razoavelmente vaidoso. Calças jeans escuro, camisa aberta sobre uma camiseta e
tênis. Penteou-se, gotas de perfume, carteira, celular. Uma última olhada no
espelho... hmm... ok, tudo certo.
Luzes desligadas, porta trancada, portão chaveado.
Ainda era cedo. O clima estava agradável, temperatura amena.
O céu estrelado e a lua cheia brilhante faziam daquela uma noite bem clara. Ele
resolveu caminhar um pouco. Não havia razão para parar o primeiro táxi ou a
primeira lotação que passasse. As ruas estavam bem movimentadas. Era uma sexta-feira.
Enquanto caminhava, pensou em muitas coisas. Precisava mesmo
fazer aquilo? Não estavam lhe obrigando. Ele não tinha uma faca no pescoço. Por
que estava indo, então? Ok, ele gostava dela. Esse era um motivo. Esse era o
motivo. Era um bom motivo, sem dúvida. O melhor motivo possível, talvez. Leu,
mais uma vez, a mensagem no celular. “Ela vai também.” Ganhou confiança.
Sorriu. “Ela vai estar lá”, disse para si mesmo. “Ela vai estar lá”
Fez sinal. Embarcou em um ônibus. Estava vazio. Sentou-se em
um banco junto à janela, bem no meio do coletivo. Pôs os fones nos ouvidos e
recostou a cabeça no vidro. A viagem seria longa.
Não a conhecia há muito tempo. Alguns poucos meses, apenas. Não
estava apaixonado. Sabia o efeito de uma paixão na sua vida. Não era o caso
agora. Ainda não. Mas ele gostava dela. Gostava muito. A festa era uma
oportunidade de encontrá-la em um ambiente mais descontraído, mais relaxado. Seria,
até aquele momento, a melhor oportunidade que ele teria para uma aproximação.
Mas ele não gostava muito de festas. Costumava ir com frequência quando mais
jovem. Mas, agora, não gostava muito. Não tinha paciência para esperar em
grandes filas do lado de fora, para entrar, nem do lado de dentro, para pagar
ou pedir uma cerveja. Além disso, nunca se dava bem com as garotas. Sua maior
virtude em todo o processo, do flerte até o beijo, sempre fora a conversa. Era
esperto, respondia rápido, tinha boa cultura geral, acabava fazendo o papo
fluir. Mas, lá dentro, no meio da festa, seu superpoder era neutralizado.
Música alta demais era a sua kriptonita. Também tinha os amigos tirando a
atenção, mas isso era secundário. O som estourando nos alto-falantes é que
dificultava muito a coisa toda.
Mas ela iria estar lá. Isso mudava um pouco a situação. E
mudava porque ele já a conhecia. Não
precisaria mostrar para ela que era um cara bacana. Uma parte importante do
caminho já havia sido percorrida, portanto. Por um momento, tentou projetar em sua
cabeça todo o cenário que vivenciaria a seguir. Viu as luzes, viu o globo
espelhado girando sobre a sua cabeça. Havia muita gente. Todo o tipo de gente.
O dj balançava os braços e fazia uma dança bem estranha, movimentando o quadril
sinuosamente. Um rapaz jazia, solitário,
em um sofá de dois lugares que ficava em um canto. Havia se passado na bebida,
aquele rapaz. Encostadas em uma das paredes, duas meninas se beijavam
fervorosamente. Bem no meio da pista,
estava ela. Nossa, como estava linda. Seus cabelos negros dançavam, iluminados
pelas luzes coloridas que cruzavam de um lado para o outro. Ela sorria um
sorriso livre, verdadeiro. Seu vestido girava. As mãos para o alto. Um salto!
Seus pés no ar, suspensos. Era como se ela pudesse voar. A partir daí, todo o
resto deixou de existir. Já não via mais o rapaz no sofá, não via as meninas na
parede, tampouco o dj dançarino. Ela brilhava em meio ao caos. Era uma deusa
entre mortais.
O ônibus passou sobre um buraco, sacolejou, ele bateu a
cabeça na janela, e voltou a si. Tirou os óculos, esfregou os olhos. Conferiu o
horário no telefone. Não estava atrasado. O que era bem bom, pois costumava se
atrasar com frequência a qualquer tipo de compromisso acertado.
Repassou na memória a última festa a que tinha ido. Era em
uma casa conhecida na cidade. Ele já havia estado lá algumas vezes, na época da
faculdade. Passou quase toda a noite avulso. Encontrou companhia na cerveja.
Gastou muito naquela festa. Bebeu além da conta. Foi embora antes de todos os
conhecidos, controlando-se para não vomitar a cada passo que dava na rua
semideserta. No dia seguinte, passou a maior parte do tempo atirado em qualquer
lugar da casa. Seu corpo cobrava o preço do excesso.
Desta vez, seria diferente.
“Ela vai também.”
Já havia cruzado a cidade. Sentia uma mistura de ansiedade e
nervosismo. Não distinguia o som que tocava em seus ouvidos. Tamborilava os
dedos no encosto de cabeça do banco da frente. Só tinha de esperar o tempo
passar, as rodas girarem, o asfalto ficar para trás.
Luzes do lado de fora ofuscaram a sua visão. Levantou de
sobressalto. Puxou a cordinha sinalizando que desejava desembarcar na próxima
parada. O ônibus freou bruscamente. As portas se abriram e, em um pulo, ele já
estava na rua. Dois, três passos. Parou. Olhou para os lados. Tirou do bolso o
mapa que havia desenhado de forma tosca em um pequeno pedaço de papel. Procurou
a luz de um poste logo à frente. Franziu a testa. Havia algo errado. Não era
ali. Ele descera do coletivo no susto e acabara errando o ponto de desembarque.
Teve de caminhar.
Seguiu solenemente pelas ruas movimentadas daquela região da
cidade que ele não conhecia bem. Era uma visita ao desconhecido. Uma área com um comércio agitado durante o
dia e outro, da mesma forma, à noite. As vitrines eram as esquinas. Peças
expostas ao toque, sem proteção, sem vidraças, sem cortinas de ferro. Um
comércio popular. Sem restrições de circulação e público. Cheiros e cores.
Corpos e silhuetas. Desejos latentes. Seguiu. Passou por alguns bares. Lugares
pequenos. Cheirando a cigarro barato. Cerveja quente nas mesas. Homens de meia
idade gastando o tempo livre após o expediente nas fábricas falando bobagem e
jogando sinuca a cinquenta centavos a ficha.
Mais alguns minutos de caminhada, e ele avistou à frente as
luzes da fachada do seu local de destino.
“Ela vai também.”
Parou ao lado de um carro estacionado. Conferiu o penteado
no vidro escurecido. Nada mal. Respirou fundo. Estava confiante. Havia de ser
desta vez. Chegando próximo à entrada do lugar, percebeu que não havia filas.
Achou que era um bom sinal. Algumas meninas conversavam e fumavam
descontraidamente junto à porta, mas não pareciam estar esperando para entrar. Empertigou
o corpo, meneou a cabeça para o segurança da entrada, pegou a comanda que
levava o seu nome, e entrou.
Percorreu sozinho um estreito e silencioso corredor escuro
que cheirava a incenso barato. Logo à frente, vislumbrou uma porta. Lentamente,
foi em direção a ela. Com a mão direita espalmada, empurrou-a.
Ali estava ele. Ao seu redor, pessoas se moviam sem pudores.
O som, como previsto, fazia seus ouvidos zunirem. Caminhou até o centro da
pista de dança. Olhou para os lados. Havia bastante gente ali naquela noite de
sexta-feira. Levou alguns poucos minutos para ele entrar na frequência do
ambiente. As pessoas dançavam alegremente em uma atmosfera festiva, mas ainda
pouco alcoólica. A noite recém estava começando.
A partir daí, muita coisa aconteceu. De pouca coisa ele se
lembrava. Somente flashes. Relâmpagos cruzando a sua mente. Imagens pueris, se
liquefazendo em sua memória.
Quase seis horas haviam se passado. Ele já estava ébrio.
Seus ouvidos doíam. Suas pernas, cansadas. Seu corpo gritava, querendo pôr para
fora aquilo que tinha lhe deixado tão desinibido. Seus olhos já não enxergavam
direito. Foi ao banheiro. Vomitou. Juntou água com as mãos e jogou sobre a
face. Estava um caco. Voltou para o salão. Deu, detalhadamente, uma última
olhada por todo o espaço. Não. Já estava amanhecendo lá fora. No caixa, pagou a
conta. Alta, bem alta. Quatro pessoas ainda resistiam bravamente naquele
resquício de festa. Passou por elas com vagar. Andava com dificuldade. Antes de
sair, voltou a vomitar, no meio da pista, desta vez. Não acertou ninguém, por
sorte. Junto à porta que dava para o corredor estreito e silencioso com cheiro
de incenso barato, escorou-se e olhou para trás. Não.
Ela não estava lá. Ela não esteve lá. Não adiantava mais
esperar. Ela não estaria lá.
Abriu a porta e se foi.
Ele não ouviu a si mesmo.
Ele não gostava muito de festas.
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