Era uma tarde de quarta-feira. Fazia sol e a temperatura estava amena para a época do ano. O café ficava em uma rua transversal à avenida que ladeava o parque. Ainda assim, eu conseguia ver os homens de meia idade passeando com os seus pequenos cães de raça, as moças jovens fazendo as suas corridas vespertinas, os casais adolescentes trocando carícias e rindo sem motivos durante a caminhada, os velhos senhores sentados no banco falando a respeito do clima, debatendo sobre política externa, recordando os “bons tempos” do regime autoritário, e analisando a rodada do Brasileirão.
Aquele era um dia como outro qualquer para todos eles. Não para
mim. Eu já estava no meu terceiro expresso e ainda faltava meia hora para ela
chegar. Isso se ela fosse pontual. Eu sorvia o café quente tentando acalmar
meus nervos. Obviamente, não funcionou. Mas quem conseguiria manter o
raciocínio em perfeitas condições estando em uma situação como a minha?
Enquanto a aguardava, tentei rever todos os passos de minha
vida, todas as minhas escolhas, que fizeram com que eu estivesse ali naquele
momento. Difícil lembrar de tudo. Muito tempo se passou. Porém, eu tenho uma
memória excelente. Guardo tudo. Elas estão lá, em algum lugar, as lembranças.
Basta procurar. Isso me atormenta. Não conseguir esquecer. Tudo seria tão mais
fácil. Tão menos doloroso.
Mas não era, e, agora, eu estava me vendo com 19 anos.
Cabelo na altura dos ombros, revoltos. Mochila nas costas. Em pé, escorado no
poste no qual a placa que indicava que era ali que o ônibus tinha de parar
estava afixada, eu lia Salinger.
Eu tinha acabado de sair de uma das aulas da faculdade. Não
recordo qual era, mas lembro que tinha sido bem chata. O sol já estava prestes a se pôr. A noite se
aproximava de mansinho.
Ela veio caminhando, discretamente, e parou próximo a mim. Eu
a notei de cara. Cabelos negros, curtos. Usava sapatilhas e um vestido pouco
abaixo dos joelhos. Óculos de armação grossa no rosto. Ela ficou parada, com as
pernas cruzadas e as mãos às costas. Três minutos no máximo. O ônibus chegou e
ambos subimos os degraus, cruzamos a roleta e sentamos. Ela, em um dos bancos do
centro do coletivo. Eu, lá no fundão.
Durante toda a viagem, não consegui tirar os olhos dela.
Foi magnetismo puro. Não me aproximei. Não lhe dirigi uma palavra sequer. Só
fiquei observando. Criei todo um retrato imaginário. Ela era doce. Inteligente
e esperta. Alegre. Gostava de dançar sozinha no quarto. Leitora de Asimov e
Lovecraft. Ouvia The Cure e Neil Young. Adorava dormir à tarde e cantar
enquanto secava os cabelos.
Ela desceu do ônibus cinco paradas antes de mim. Eu segui, me
perguntando se voltaria a vê-la alguma vez mais. Veria.
Na segunda vez que nos cruzamos, novamente na parada de
ônibus, engatamos uma conversa. Ela que puxou papo. Perguntou se não nos
conhecíamos de algum lugar, pois o meu rosto era familiar. Respondi que sim,
que já havíamos nos visto, três dias antes, ali, naquele mesmo local. Ela titubeou, mas disse que podia ser isso
mesmo. Bem assim, “pode ser”, foi que ela disse.
Embarcamos e nos sentamos juntos, lado a lado. Eu na janela,
ela no corredor. Descobrimos que estudávamos na mesma faculdade. Cursos
diferentes e turnos diferentes até o semestre anterior. Agora, ela havia pedido
transferência para a manhã, daí a razão de nos encontrarmos as duas vezes na
parada de ônibus. Conversamos sobre alguns professores. Ela achava o de Teoria
da Comunicação um pedante pretensioso. Eu o achava bacana. Um pedante pretensioso
bacana. Ela achava que a professora de
Introdução à Filosofia fumava maconha antes da aula. Eu concordava, e achava o
maior barato. Seguimos conversando, basicamente, sobre a faculdade, sobre os
colegas que tínhamos em comum em algumas disciplinas e sobre a pintura feita no
centro acadêmico que acabou com toda a alma do lugar. O ponto em que ela
desceria estava próximo. Ela se levantou, sem não antes me dar um beijo no rosto,
e disse “até!”. A porta se abriu e ela já havia descido o primeiro degrau
quando voltou o rosto para mim e falou, sorrindo: “Eu amo Salinger.”
Senti um toque no ombro e voltei à mesa do café. Era o
garçom, perguntando se eu queria mais um expresso. Aceitei. Quase 18 anos
haviam se passado desde aquele dia em que eu a encontrei na parada de ônibus.
Meus cabelos diminuíram de tamanho e cada vez mais fios brancos teimavam em
aparecer e quebrar a monocromia existente até então. Tanto tempo passou. Agora,
eu era um conhecido jornalista na cidade. Escrevia crônicas, mas ainda amava a reportagem. Meus anos de rebeldia aparente
ficaram para trás. Agora, eu estava ali, sentado, no café, olhando as pessoas
no parque, esperando, nervoso, uma menina de 17 anos chegar. Ela era minha
filha.
Foi tudo muito rápido. Entre o dia em que nos conhecemos até
o dia em que decidimos dar fim àquele romance juvenil, não se passaram três
meses. Oitenta e um dias, mais precisamente. Ao fim do semestre, ela se mudou
para a Austrália. Foi fazer intercâmbio. Eu nunca mais a vi. Nunca mais nos
falamos.
Dobrei o papel e o coloquei de volta no bolso.
Tudo fazia sentido. A idade, Mônica, a parada de ônibus,
Holden Caufield. Tudo.
Poderia ser verdade. Poderia não ser.
Eu acreditei no que a menina escrevera. Não sei por que, mas
acreditei.
Três dias depois de receber o e-mail, respondi dizendo onde
estaria e o horário. Ela me retornou com um “ok”.
Eu aguardava aquela menina chegar e, possivelmente,
revolucionar a minha vida, com um estranho nervosismo. Não tinha medo. Estava
curioso. Como será que ela era? Parecia com a Mônica? Será que ela também
colocava a mão esquerda nos quadris e arqueava a sobrancelha direita quando
ficava braba? Tinha algum traço meu? O jeito de andar, quem sabe. Se ela conseguisse estalar os dedos das mãos
nas três articulações, não haveria dúvidas: era minha filha. Nunca conheci alguém
que conseguisse fazer isso.
O relógio marcava 18h01min quando uma moça de estatura
mediana, cabelos negros e olhos faiscantes atravessou a rua e veio em minha
direção. Ela tinha o meu jeito de andar.
Eu me levantei da cadeira e a aguardei. Ela se aproximou e
me estendeu a mão. Retribui o gesto. Fiz sinal para que se sentasse.
Ficamos frente a frente. Perguntei se ela queria um café. “Um mocaccino, por
favor.” Ela tinha as mãos da Mônica.
Eu disse que não sabia como começar aquela conversa e
perguntei se ela tinha uma sugestão. Sem piscar os olhos, ela falou que fazia
questão de deixar uma coisa bem clara: não queria nada de mim, que não era para
eu me preocupar. Eu não estava preocupado.
“Como vai sua mãe”, perguntei. Eu realmente estava
interessado em saber sobre isso, não era uma pergunta qualquer para iniciar uma
conversa. Ela me disse que Mônica estava bem, que era sócia de uma agência de
publicidade em São Paulo e que falou muito bem de mim quando da conversa séria
que elas tiveram a meu respeito. Mônica estava casada. Mariana não tinha
irmãos.
Ela era uma garota muito bonita. Eu via nela muito daquela
jovem estudante de publicidade pela qual me apaixonei no passado. Falava com
uma voz meiga, mas firme e segura.
Disse a ela que sequer imaginava que tinha uma filha. Que a
mãe dela nunca havia me dito nada, nunca mais me procurara. Não tinha como eu
saber. “Você também nunca mais a procurou”, me falou. Era verdade. Vivemos uma paixão, mas não chegamos a nos
amar. Foi bom enquanto durou. Deu muito certo, mas acabou. Não houve
lágrimas. Cada um seguiu o seu caminho.
Ela não estava magoada, tampouco braba. Falava com vigor e
expressava suas ideias e opiniões de forma clara e franca. Quis saber como sua
mãe e eu nos conhecemos, como ela era quando jovem, se nos amávamos. Eu
respondi a todas as suas perguntas. Mesmo que a resposta fosse um “não sei”.
Não perguntou muito sobre a minha vida. Não quis saber sobre
esse homem qualquer que ela nem sabia que existia até alguns minutos atrás. Até
aquela tarde de quarta-feira, eu não era nada para ela, assim como ela para
mim.
A conversa transcorreu, basicamente, comigo perguntando
sobre ela, principalmente, e sobre Mônica, e com ela querendo saber detalhes
a respeito do que aconteceu lá atrás, quando eu tinha 19 anos e os cabelos revoltos
na altura dos ombros.
Mariana cursava o primeiro semestre de Arquitetura. Gostava
de música clássica – Bach e Verdi, os seus preferidos – e de andar de bicicleta
no Ibirapuera. Não era de sair à noite, mas tinha muita curiosidade de
conhecer um baile funk em um morro carioca. Era uma leitora ávida e tinha em
Fante seu autor predileto. Achava Salinger superestimado. Olhei de soslaio.
Quando o semestre acabou e Mônica me disse que iria para o
outro lado do mundo, eu fiquei mal. Gostava dela. Gostava muito. Mas eu era
jovem. Tinha 19 anos. Esses dolorosos sentimentos passam rápido quando se tem
19 anos. Foi intenso e caloroso. Foi juvenil. Nós sabíamos que aquilo não iria
durar. Em nenhum momento nos imaginamos levando uma vida inteira lado a lado. Agora,
sentado naquele café, eu tentava imaginar como teria sido.
Mônica não me contou que iria embora quando as aulas se
encerrassem. Foi uma surpresa quando, dois dias antes de embarcar no voo que a
levaria para longe de mim, muito longe, disse que iria sentir minha falta, que
fora tudo maravilhoso, mas que tinha de partir. Não tive como me preparar. Quem
sabe, eu fosse com ela. Improvável, eu sei. Quando me contou, disse que não me
avisara antes para que eu não ficasse chateado. Ela não queria que o nosso
envolvimento fosse afetado. Queria viver aquilo, daquele jeito, o máximo que
pudesse.
Não fiquei brabo, na época. De que adiantaria?
Eu não fui ao aeroporto me despedir. Seria atiçar ainda mais
uma dor que já ardia em fogo alto. Despedimo-nos na noite anterior. Amamo-nos.
Foi doce. Quando eu despertei na manhã seguinte, ela não estava mais lá. Nenhum
adeus. A última lembrança que eu tinha dela era o seu gosto na minha boca. Eu
ainda o sinto.
Mariana falava em alta velocidade. Despejava palavras e
informações em um ritmo frenético. Ela era uma tormenta. Eu a queria na minha
vida a partir daquele instante. Não sabia, porém, se ela me queria na dela.
Seria natural se não quisesse. Não existia vínculo algum entre nós. Ela não me
via como pai. Eu era um estranho.
Ninguém teve culpa. Simplesmente aconteceu. Talvez eu
devesse ter procurado Mônica. Talvez ela devesse ter me procurado. Talvez,
talvez...
Há momentos em nossa vida os quais parece que pegamos carona
em um trem o qual não sabemos para onde vai. Simplesmente embarcamos. Não somos
responsáveis pela direção. Não escolhemos os caminhos.
Algumas coisas acontecem ao acaso. Outras, porque têm de
acontecer. Muitos chamam de destino. Eu não. A ideia de destino sempre me
pareceu muito fácil, um tanto quanto descompromissada, preguiçosa. Diria, até,
covarde. Por destino, imagino algo sobre o qual não temos controle algum. Algo
inevitável, que ocorre independentemente de nossa vontade. Não podemos fazer
nada para alterá-lo.
Eu não acho que seja destino. Não acho que tenha sido o
destino. Mesmo quando embarcamos naquele trem, mesmo sem saber para onde ele
vai, por onde ele vai, mesmo sem saber onde estamos, ainda assim, podemos
descer na próxima estação. Ainda assim, podemos pular no primeiro campo florido
que virmos surgir ao lado dos trilhos. Isso não é destino. Isso é escolha.
Eu tinha de estar naquele dia, naquela hora, naquela parada
de ônibus. Todas as circunstâncias de minha vida me levaram até aquele lugar,
naquele momento. Noi foi destino. Não foi acaso.
Fizemos as nossas escolhas. Mônica e eu. Podemos nos
arrepender delas. Podem não ter sido as melhores escolhas. Eu não acho que foram. Ela trocou de trem no
meio do caminho. Eu preferi seguir no mesmo. Foi isso.
Agora eu estava ali. Quase 18 anos depois. Sentada à minha
frente, uma menina que eu não conhecia. Minha filha.
Ao longe, eu ouvi o som. A composição se aproximando. O
burburinho crescente na estação. Abraços de despedida. Lágrimas. Lenços abanando.
Eu embarquei de novo.
Mais uma viagem.
Para onde? Não sei.
Para qualquer lugar. Para nenhum lugar.
Até a próxima escolha.
Até o próximo campo florido.
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