sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Retrato em preto e branco de um amor




Chovia.

Sentado no sofá da sala, que dava de frente para a grande janela na qual as gotas grossas explodiam em fúria, ele olhava para a rua enquanto pensava. Entre os dedos médio e indicador da mão esquerda, um cigarro barato qualquer. Com a mão direita, segurava um copo com conhaque. Na mesinha ao lado do sofá, o aparelho de telefone e, sobre as teclas, um pedaço de papel com bordas irregulares trazia escrito um número. Em seu colo, o retrato em preto em branco de um amor.

Ele queria tomar o aparelho nas mãos, pressionar as teclas certas, esperar o telefone chamar, uma, duas, três, quatro, cinco – não esperaria mais de cinco chamados – e ouvir a voz dela. Mas ele sabia que, no momento em que fizesse isso, estaria reabrindo uma porta que já havia sido fechada há muito tempo. Estaria revirando baús velhos, remexendo caixas que já acumulavam poeira.

Feridas haviam cicatrizado. O tempo os afastara e a distância soube acalmar a tempestade, aparar as arestas. Ele sentia, porém, dentro de si, uma força que o impulsionava de volta àquele passado que pensara já ter esquecido.

Depois do fim daquilo que por muito tempo acreditou ser o amor de sua vida, passou a ver com desconfiança qualquer relacionamento entre duas pessoas.  Não enxergava verdade. Esforçava-se, mas não enxergava. Tornou-se um cético.

Nos últimos anos, sua vida entrara nos eixos. Todo o encantamento, toda a paixão, todo o amor, todas as decepções, todas as brigas, toda a tristeza. Tudo havia ido embora. Eram parte de uma história que não queria esquecer para não repetir os mesmos erros, mas que preferia não lembrar a todo o momento, para não revivê-la.

Estava bem. Não tinha dias excepcionais, mas também não havia muito do que se queixar. Levara um bom tempo para se desapegar, carregou consigo uma soma incontável de mágoas e traumas, mas, agora, estava bem. Até deixar de tomar os remédios que tomava desde que ela havia partido ele deixara.

Não contava, porém, que, em uma agradável manhã de segunda-feira, uma carta chegaria em sua caixa de correio. Era uma carta. Quem envia cartas nos dias de hoje? Ele, com certeza, não. Sequer recordava a última vez que havia postado uma. Ouviu dizer que muitas pessoas ainda faziam uso do papel e da caneta, da cola e do selo. Não acreditava que essas pessoas eram muitas, mas também não pensava nisso com frequência. Naquela agradável manhã de segunda-feira, entretanto, uma carta repousava em sua caixa de correio e ele não conseguia esconder o misto de surpresa e êxtase que lhe tomava.

Uma carta! Tomou-a nas mãos e, de súbito, um frisson apossou-se de seu corpo. A mesma sensação que sentira no dia em que a viu pela primeira vez, e que sentira novamente quando a beijou pela primeira vez, e que sentira outra vez quando se amaram pela primeira vez. A mesma sensação de quando a viu cruzando a porta de sua casa pela última vez.

O envelope em branco, sem remetente, aumentou ainda mais o enigma. Aquilo havia sido deixado ali pela pessoa que o escrevera. Era alguém que fazia questão de entregar pessoalmente, mas que não quis o fazer em mãos. Mais mistério, mais mistério.

Cruzou o portão, olhou para ver se via alguém suspeito na rua, mas não enxergou ninguém. Era uma viela bem tranquila aquela, sem condomínios, com casinhas humildes, jardins modestos. Deu meia volta e entrou em casa.

Na cozinha, preparou um chá preto fumegante e se acomodou junto à mesa. Com o envelope, ainda fechado, à sua frente, tamborilava no vidro com a ponta dos dedos da mão direita. Esperava o momento certo para abri-lo. O seu momento certo.

Depois que ela se fora, tornou-se um homem metódico. Gostava de seguir certos ritos. Pela manhã, ao acordar, espreguiçava-se e fazia alguns alongamentos ainda na cama. Colocava, primeiramente, o pé direito no chão e, depois, calçava seus chinelos acolchoados de pelúcia. No banheiro, espirrava água fria no rosto, desejava um bom dia para si mesmo ao espelho e saltitava por alguns poucos segundos. Pronto. Estava desperto. O dia havia começado.

Olhando para o envelope, tentava imaginar a história por trás dele. Não apenas quem o deixara ali com o seu ainda oculto conteúdo. Imaginava o que levara uma pessoa a fazer isso e como ela o fizera. E quando e por que o fizera.

Ficou por quase meia hora daquele jeito. Tomando chá e encarando o envelope sem tocá-lo. Levantou-se e circulou a mesa caminhando lentamente. As mãos, ora nos bolsos, ora mexendo no cabelo, ora segurando o queixo. Os braços, cruzados, às costas, na cintura.

Tinha grande atração por correspondências. Uma carta, por exemplo. Uma carta é sempre um mistério. Uma carta não se mostra por antecipação. Ela se insinua. Desperta a curiosidade, incita a imaginação. Mas não se mostra.

Para ele, era um jogo. Aquela era, possivelmente, a coisa excitante que lhe acontecia em anos.

Tomou banho, arrumou sua bolsa, pôs o envelope no bolso da camisa, fechou o botão e saiu. Trabalhava em uma corretora de seguros. Analisava riscos. Era um homem bastante racional. E pragmático. Precisava se acalmar, deixar a emoção ir embora e pensar.

O dia de trabalho foi como qualquer outro. Nada demais. Planilhas, relatórios, cálculos. Mais do mesmo. Ele era bom naquele trabalho. Detalhista, perspicaz, e, acima de tudo, chato. É preciso ser chato para ser um bom analista de riscos. Um analista de riscos vê problemas em tudo. E, quando não existe um, ele cria. É o trabalho dele. Esgotar todas as possibilidades de algo dar errado.

Durante toda a manhã e tarde, o envelope fechado jazeu embaixo do teclado do computador. Intocado. Esperando ser violado e, assim, revelar ao mundo ou a apenas uma pessoa todo o seu conteúdo.

Tentou a todo o custo se concentrar em suas tarefas profissionais. Não conseguia, porém esconder de ninguém sua inquietação. Estalava os nós dos dedos das mãos sem parar. Roía as unhas. Tirava e recolocava os óculos. Passava álcool gel nas mãos. Coçava um cavanhaque que não tinha. Rangia os dentes. Bebia uma caneca de café atrás da outra. Os colegas de trabalho notaram que havia algo errado com ele. Às perguntas questionando se estava tudo bem, respondia com um movimento rápido de cabeça para cima e para baixo e um “tudo, tudo”. Não convenceu ninguém, mas sempre fora visto como um sujeito bem excêntrico por todos. Nenhum dos companheiros de labuta deu muita bola, portanto. Talvez, não tivesse conferido se o gás havia sido desligado, ou se as torneiras estavam todas fechadas, ou se a porta da geladeira tinha sido fechada.

Produziu pouco naquele dia. Muito pouco. Pouco mesmo. Quase nada. Arrumou suas coisas, recolheu canetas e anotações espalhadas sobre a mesa, colocou a bolsa a tiracolo e o envelope no bolso da camisa. Deu as costas a todos sem se despedir. Desceu as escadas rapidamente, quase correndo, cruzou a avenida por entre os carros sem esperar o sinal fechar para os veículos e esperou por três longos minutos na parada pelo seu ônibus.

Durante o caminho, tentou esvaziar sua cabeça, abster-se de pensamentos. Concentrar-se em nada. Precisava estar pleno de suas capacidades cognitivas. Dormiu. Necessitava daquele sono. Esgotou suas energias naquele dia de massacrante angústia à espera de uma descoberta que teimava em adiar.

Já em casa, tratou de tomar um banho quente. Acendia um cigarro sentado ao sofá quando começou a chover. Respirou fundo e tomou o envelope nas mãos. Rasgou a lateral com cuidado e retirou de dentro um pedaço rasgado de uma folha de caderno. Desfez as dobras, ajeitou os óculos que teimavam em correr para a ponta do nariz, sorveu um bom gole de conhaque e leu as palavras ali escritas.

“Sinto saudades.”

E um número de telefone.

Só isso. Nada mais.

Em letras miúdas. Escritas a lápis, em traço leve, sutil.

“Sinto saudades.”

Nenhuma assinatura. Nenhuma indicação de quem poderia ter escrito.

Ainda que a dúvida sobre o remetente misterioso martelasse em sua cabeça, ele sabia muito bem que somente uma pessoa poderia ter escrito aquilo. Tentava convencer-se de que estava enganado, de que aquilo poderia ser obra de algum garoto da vizinhança querendo lhe pregar uma peça, mas não conseguia ludibriar a si mesmo.

Sabia que era dela.

De quem mais haveria de ser?

Aquela simplicidade, aquele modo direto de falar tudo com poucas palavras.

“Sinto saudades.”

Quem mais haveria de ser?

Era ela. Definitivamente, era ela.

Levou o bilhete ao rosto para tentar sentir um perfume que não existia. Ela nunca gostara de perfumes. Tinha alergia.

Releu por incontáveis vezes as duas palavras ali escritas. Tentava, agora, entender por qual razão ela fizera aquilo. Fora ela que o deixara. Estavam bem. Não brigavam há meses. Nem uma discussão sequer. Estavam afinados como nunca antes haviam estado. Tinham tido um dia muito agradável, fizeram amor antes de dormir. Acordou pela manhã e ela já não estava mais lá. Se foi sem lhe dizer nada. Simplesmente partiu.

Agora, como quem voltasse de férias, um pouco prolongadas, quem sabe, ela aparecia em sua caixa de correio querendo, mais uma vez, fazer parte de sua vida.

Por quê?

O que será que acontecera para esse repentino retorno?

Precisava compreender o que se passava. Ela poderia ter batido à sua porta pela manhã bem cedo, ou à noite, logo depois de escurecer. Ele estaria lá. Ela sabia disso. Sabia muito bem. Haveria um constrangimento inicial, sem dúvida. O fim fora traumático, mas ela sabia que ele era um homem compreensível e educado. Não iria destratá-la. 

Era preciso ser racional. Ao certo, ela ficara sabendo, de uma forma ou outra, que ela ainda a amava. Algum amigo em comum, quem sabe. Ele não escondia de ninguém o que sentia. Sob a cama, guardava, em uma caixa de papelão, objetos diversos que o remetiam aos dias em que viveram juntos. Bilhetes, e-mails, desenhos, postais, cartões de embarque, fotografias dos lugares que haviam visitado (mas nenhuma em que os dois apareciam juntos).

Eles tinham sido felizes. Completavam-se. Conheciam-se muito bem. Talvez, por isso tenha chegado ao fim. Eram tão perfeitos um para o outro que a falta de ruídos, a ausência de oscilações, de altos e baixos, que a permanente constância da relação acabou por levá-los a um cenário em que não havia mais surpresas. Tornaram-se óbvios. 

Com a carta nas mãos, chorou como há muito não chorava. Não estava triste. Uma esperança já soterrada irrompeu em seu coração. Ela não o havia esquecido.

“Sinto saudades.”

Típico dela. Sempre fora sucinta, sem rodeios. Dizia exatamente o que sentia. Sentia saudade. Duas palavras. Para quê mais? Dissera tudo.

Passou a semana inteira à espera de algo mais. Nada. Um mês ficou para trás, e depois mais um, e outro, e outro, e outros mais. Assim como ressurgiu, desaparecera. Sem deixar vestígios. Durante todos esses dias, tentou, em vão, criar coragem para tomar o telefone em suas mãos e ligar para ela. Não o fez.     

Depois de mais um dia de apreensiva espera, de desesperadora indecisão, chorou novamente. Sentia dentro de si uma dor que médico algum poderia dar fim. Enxugou as lágrimas. Respirou fundo. Uma. Duas vezes.

Foi dormir.

Antes, porém, remexeu a gaveta do criado mudo que estava ao lado da cama, tateou a peruca, o batom, a maquiagem, jogou a câmera fotográfica para o lado, e pegou uma folha de papel e uma caneta.

Na manhã seguinte, quem sabe, um novo envelope poderia estar na caixa de correio.


Ela sentia saudades. Ele também.