sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Ela tinha tempestades sob os olhos



Sob os olhos castanho-escuros, ela tinha grandes e profundas olheiras. Era como se duas nuvens carregadas, prontas para despejarem tempestade, tivessem cruzado o céu durante a noite e se acomodado ali, sob o castanho-escuro dos olhos dela.

De toda a beleza que ela tinha no rosto de menina, era naquelas olheiras que ele mais se fixava quando ficava por vários minutos contemplando seus traços sutis. Por vezes – não raras – ele se via em um tipo de estado de transe. Mergulhava nas sombras que ela tinha embaixo dos olhos e ficava ali, sem se dar conta do mover dos ponteiros no relógio, sem se preocupar com nada que não fosse ela.

Não havia coisa alguma nela que ele não gostasse. Até os seus defeitos. Ele amava aqueles defeitos que a faziam tão humana, tão real, tão única.

Esforçou-se o quanto pôde, vasculhou em suas memórias inconscientes, mas não conseguia se lembrar de quando havia sido a primeira vez que percebera as olheiras. Talvez tivera sido já no primeiro encontro, dentro da loja de departamentos, ou, quem sabe, no segundo, enquanto se esgueiravam feito gatos ariscos por entre os pilares da catedral para não atrapalhar a missa.

Alguns dos únicos momentos em que ele não admirava as olheiras dela eram quando fechava os olhos para beijá-la. O beijo o fazia esquecer de tudo, como se entrasse em um misterioso túnel de sensações, um espiral de cores e perfumes e sabores cruzando sua mente na velocidade da luz e deixando para trás um rastro de saudade de cada um dos momentos que nunca mais iriam se repetir.  

Ela tinha tempestades sob os olhos e, todas as vezes em que estavam juntos, ele sentia como se estivesse para chover. Uma chuva ora calma e suave, como se gotas de amor explodissem sob a lente dos seus óculos, ora com fúria e poder, com relâmpagos iluminando a noite escura e lhe mostrando o caminho a seguir.

E ele seguiu. E ela também. Cada um para o seu lado.

Mesmo depois do fim, de todas as pequenas coisas que nela o encantavam, eram três as que ele mais sentia falta: a gargalhada que espantava os pássaros ao redor, atraía os olhares de assombro de todos que estavam por perto e preenchia qualquer lugar da mais pura energia da vida; o cheiro nos negros cabelos longos os quais ele desbravava com as mãos, deixando os fios escaparem por entre os dedos feito filetes de rios correndo pelos Elíseos; e as olheiras..., as olheiras que davam um ar de mistério ao seu rosto, o fazendo pensar, quando com ela, que estava em um conto de Edgar Allan Poe, ou percorrendo, feito um bailarino, de salto em salto, as notas na partitura de Moonlight Sonata de Beethoven.

Ela tinha tempestades sob os olhos.

Ele amava o barulho da chuva.