sábado, 16 de julho de 2016

Os quatro muros de Júlia



Acordou, levantou-se da cama, abriu a janela, e viu, do outro lado da rua, uma frase pintada no muro. Coçou os olhos para enxergar melhor. Estava lá.

“Ainda te amo, Júlia.”

Depois da morte do irmão mais novo, ela não costumava sair muito de casa. Tornara o apartamento uma espécie de fortaleza onde sentia-se segura e, mais ainda, acolhida de um modo que nunca conseguia se sentir em lugar algum. Não havia olhares, nem julgamentos. Estava longe de tudo o que lhe fazia mal.

Trabalhava em casa como consultora de uma pequena editora local. Garimpava novos talentos, cuidava de originais, dava pareceres, revisava, mantinha contato com os autores. Era a ponte invisível que ligava os escritores, em sua maioria iniciantes pretensiosos, ao editor, um professor universitário aposentado que viu no mercado literário um passatempo pouco lucrativo, mas que dava bastante retorno com a bajulação nos círculos sociais.

Sua vida andava nos trilhos nos últimos dois anos. Levara um ano inteiro para se curar da depressão que quase lhe tirou a vida após a tragédia familiar. Mas agora estava bem. Encontrara um trabalho que lhe satisfazia intelectualmente e que lhe rendia o suficiente para se manter. Não precisava sair de casa pela manhã cedo nem voltar tarde da noite. Fazia as compras no mercadinho da esquina que, apesar de ser mais caro do que o supermercado dois quarteirões abaixo, estava sempre vazio às tardes, e ela pagava alguns reais a mais com gosto para não ficar em filas ou ter de desviar ou esbarrar em pessoas nos corredores. O sossego tem o seu preço.

Júlia havia entregue seu último trabalho na noite anterior. Era um ótimo livro de poesias eróticas escrito por uma senhora de seus sessenta e tantos anos, bancária aposentada, e que escrevia sob um pseudônimo, pois tinha vergonha do seu talento. Ela tentou por dois meses convencer a mulher a revelar para o mundo o quão sensível e bela era a sua visão do sexo. Mandou e-mails, mensagens no celular, telefonemas, até pensou em fazer uma visita, mas aí já seria demais. De nada adiantou. Devolveu o trabalho ao editor com muitos elogios e uma extensa recomendação para publicação.

Ainda pela manhã, iniciaria sua nova tarefa. Sabia que seria um serviço de edição completo. Iria trabalhar os originais, cortar, incluir, reorganizar e revisar o texto, trocar e-mails com o autor para obter as aprovações a respeito das mudanças e, depois de cerca de um mês, devolver o material prontinho para ir para a gráfica. Não tinha ideia do que se tratava a obra e não se importava com isso. Enxergava as leituras para o trabalho como trabalho. Não se divertia, não relaxava. Via de regra, esquecia do que tratava o texto dois ou três dias depois de terminar de lê-lo. Não podia se envolver com a história, com os personagens, sob o risco de perder a objetividade na avaliação.

Acordara disposta naquele dia. Ainda não eram sete horas da manhã quando abriu a janela para deixar o luz do sol entrar e, assim, poder fazer seus exercícios de yoga no quarto. Ela não contava, porém, com aquela frase no muro. Aquela frase mudou tudo.

Alguém ainda a amava.

Não se lembrava da última vez em que ouvira uma declaração de amor. Sequer tinha certeza se alguém já havia se declarado para ela. Talvez sim, talvez não. Mais provável que não. Iria se lembrar. Não se esquece um “eu te amo” sincero. Ela não esqueceria. Tinha uma excelente memória. Recordava o nome o sobrenome de todos os seus colegas de jardim de infância. E isso tinha sido há uns 25 anos. Lembraria de um “eu te amo”. Certamente lembraria.

Ninguém passa incólume a um “eu te amo”. Júlia sabia disso. Sabia que um “eu te amo” mexe com as pessoas. Poucas eram as histórias que lera em que um “eu te amo” não estivesse escrito em uma página, ou em mais de uma, geralmente no meio, algumas vezes no início, e raramente, no fim.

Júlia tinha sete anos de idade quando os pais se separaram. Aquilo não a deixou mal. Eram as brigas diárias no café da manhã e no jantar que a faziam chorar. Era isso que vinha à sua cabeça quando tentava se lembrar da época em que viveram na mesma casa ela, o irmão e os pais. Eles brigavam por qualquer coisa. Sobre o programa que iriam ver na televisão, sobre um par de meias que não tinha sido lavado, sobre a geleia de morango que estava no fim e não tinha sido reposta, sobre quem iria na reunião de pais e mestres na escola. Não gostavam um do outro e, assim, transformavam qualquer pequena discordância irrelevante em uma declaração de guerra. Júlia e o irmão viviam em meio ao fogo cruzado. Mesmo não sendo os alvos, seguidamente saíam chamuscados pelas chamas do combate.

Sempre que os pais começavam uma discussão, Júlia pegava o irmão três anos mais novo pela mão e o levava para o seu quarto. Lá, com uma pequena lanterna, cobria ambos com um lençol. Ficavam ali inventando histórias até que a briga acabasse. Aquela era a fortaleza que os mantinha a salvo. O primeiro muro que ela criara para si foi para proteger o seu irmão.

O divórcio trouxe calma àquela casa. O pai de Júlia se mudou para outro estado. Mandava dinheiro para a mãe e, muito de vez em quando, ligava para conversar com as crianças por alguns poucos minutos. O irmão menor sentiu muito a separação. Ele era o preferido do pai e, toda a vez que se falavam brevemente ao telefone, perguntava quando ele iria visitá-los. A resposta sempre era um “logo, logo”, mas a visita só veio no Natal. Nos três Natais seguintes ao divórcio, ele veio visitar e dar presentes aos filhos. Depois, nunca mais apareceu.

A mãe de Júlia era professora de História e, enquanto o filho mais novo ficava o dia inteiro em uma creche comunitária do bairro onde moravam, a primogênita estudava pela manhã na mesma escola em que ela dava aulas. Após o almoço, que fazia na cantina da escola junto com a mãe, sem ter nenhum de seus colegas de turma para conversar, a menina recolhia-se à biblioteca, onde ficava até o horário em que a mãe saía, por volta das seis da tarde. Foi na biblioteca, a maior parte do tempo sozinha, que ela se envolveu com o mundo dos livros. Além de ler, analisava tudo, tipo de papel, formato da edição, desenho da capa. Brincava com a bibliotecária de adivinhar o número de páginas dos livros conforme a grossura de cada um deles. Ela ficou tão boa naquilo que a bibliotecária passou a apostar com alguns professores que a garota acertaria sempre. Ganhou uma graninha até que a diretora da escola ficou sabendo da jogatina e acabou com a festa na biblioteca.

Foi no segundo ano do Ensino Médio que Júlia se apaixonou pela primeira vez. O garoto, magricelo e alto, chegou no segundo bimestre, transferido de outra escola. Como não conhecia nenhum dos colegas, não conseguiu se enturmar e passava os recreios sozinho comendo um sanduíche com leite achocolatado e fazendo exercícios de matemática. Júlia ficou com pena do menino e se aproximou dele. Com o passar dos dias e dos recreios e intervalos entre as aulas, foram se conhecendo mais e mais e descobrindo que tinham muitas coisas em comum um com outro. Assim como ela, ele também era filho de pais separados. Assim como ele, ela também era antissocial. Os dois esqueciam das horas quando estavam mergulhados em livros. Os dele, de matemática, os dela, de literatura.   

Aquele menino tímido e de óculos de aros grossos foi o primeiro rapaz com o qual Júlia se deitou. Não foi especial como ela imaginava que iria ser. Na verdade, foi bem desagradável. O namoro entre os dois durou pouco mais de seis meses. As notas dele caíram muito e a mãe decidira mudá-lo de escola mais uma vez. Júlia nunca mais o viu.

O segundo homem para o qual Júlia se entregou era um jovem bem bonito. Altura mediana, cabelos negros e olhos faiscantes. Ele estudava na mesma faculdade que ela, mas estava um ano à frente no curso. Era um rapaz bastante popular e, falava-se nos corredores, já havia se envolvido com diversas meninas da faculdade. Ela o conhecia de vista e admirava sua beleza, mas não sentia nada especial. Júlia almoçava sozinha em uma mesa de canto do restaurante universitário quando sentiu alguém se aproximar, levantou os olhos e viu que era ele. O jovem lhe disse “olá” e perguntou se poderia se sentar. Ela relutou por um instante, mas acabou consentindo. Durante os vinte minutos em que ficaram frente à frente enquanto comia, ele foi educado, respeitoso e agradável. Júlia achou aquele jovem bem diferente da descrição que costumava ouvir ao seu respeito no banheiro feminino. A cena se repetiu no dia posterior, e no outro, e no outro também. No quarto dia, uma quinta-feira, após se despedirem, ele a convidou para irem ao cinema na noite seguinte. Ela aceitou de pronto. O filme não era muito bom, e eles passaram boa parte daquela hora e meia se acariciando, se olhando nos olhos, e se beijando. Ao fim da sessão, já na rua, ele a chamou para ir ao seu apartamento, beber alguma coisa, terminar o que haviam começado. Ela pensou um pouco e disse não. Ele insistiu. Ela manteve o não. Ele levantou a voz. Ela disse que gritar não iria fazê-la mudar de ideia. Ele lhe agarrou com força pelo braço. Ela se soltou com um movimento brusco. Ele lhe deu um tapa no rosto. Ela caiu. Ele cuspiu aos pés dela, a chamou de vadia, entrou no carro e foi embora cantando pneus. Ela ficou sentada. Quis chorar, mas não o fez. Durante uma hora inteira ela ficou sentada sozinha, querendo chorar, mas não chorando. Foi ali que Júlia ergueu seu segundo muro.

Após terminar a faculdade de Letras, passou a fazer trabalhos freelancer de revisão e tradução de textos. Não ganhava muito, mas era o suficiente para se sustentar. Morava em um apartamento que era de sua avó e, portanto, não pagava aluguel. Durante três anos viveu assim, de trabalhos esporádicos. Até que recebeu uma ligação do velho professor perguntando se ela poderia ir ao seu escritório, pois ele queria contratar uma faz tudo para a sua editora e ela havia sido muito bem recomendada por um amigo próximo. Ela foi, gostou do trabalho oferecido e ainda mais do seu futuro patrão. O salário era bom, mas ele cobrava exclusividade, pois exigia um serviço do mais alto padrão de qualidade. Ela topou na hora.

Com o novo emprego, Júlia pôde se mudar do pequeno apartamento da avô para um outro mais amplo, com dois quartos. Trabalhava em casa, não tinha contato pessoal direto com seu chefe e tampouco com os clientes. Fazia algo que gostava e não imaginava um modo de as coisas ficarem melhores do que estavam.

Foi em um domingo à noite que Júlia recebeu uma ligação que a fez perder o equilíbrio da vida que levava. Ela preparava um parecer sobre uns originais que havia recebido há pouco mais de uma semana. A ideia da autora, uma garota de 19 anos, até que era boa - o processo de desintegração de uma família de classe média contado pelos olhos da filha autista de seis anos de idade -, mas a menina necessitava urgentemente de aulas de português. Muitas aulas, muito urgentemente.

Sentada na cama, com as costas escoradas na cabeceira e com o computador sobre o colo, Júlia bebericava uma taça de vinho tinto quando o celular, que estava, como de costume, no silencioso, vibrou em cima do criado mudo. Ela olhou o número no visor, viu que era do telefone do seu irmão, e atendeu. A voz do outro lado da linha não era a do seu irmão. Era a voz de um homem mais velho. O homem se identificou como inspetor de polícia e perguntou se ela era Júlia e se ela conhecia o dono daquele celular. Ela disse que sim e que ele era seu irmão mais novo. O homem ao telefone, então, foi direto no que queria falar.

“Sinto lhe dizer, mas encontramos o seu irmão morto há pouco”, disse com um lamento na voz. “Ele se suicidou. Seria bom se a senhora viesse ao apartamento dele agora.”

Enfrentando o choque que aquelas palavras lhe haviam causado, ela levantou-se rapidamente, trocou de roupa e saiu rua afora esperando cruzar com um táxi que a levasse ao apartamento do irmão. Vinte minutos depois, passava pelos carros de polícia estacionados em frente ao prédio e subia correndo as escadas até o quinto andar. No corredor, os vizinhos a olharam com tristeza quando ela irrompeu ofegante em direção à porta, sendo contida por dois policiais que a seguraram.

“É o meu irmão. É o meu irmão”, disse aos gritos. Os vizinhos confirmaram que a moça que respirava com dificuldade e o jovem que morava no apartamento em frente eram irmãos e um dos policiais, então, a acompanhou até o quarto. Chegando lá, ela o viu. Pendurado pelo pescoço com um cinto no ventilador de teto. Não havia sangue, não havia bagunça. A pele do seu rosto já descamava. O cheiro forte no quarto foi o que o fez com que os vizinhos chamassem o síndico, que, por sua vez, após bater na porta e ligar para o morador do apartamento 512 por quase uma hora, resolveu chamar a polícia. O perito que registrava o ocorrido disse à Júlia que ele morrera há uns três ou quatro dias.

Ela cuidou de toda a burocracia envolvendo um suicídio, velório e enterro. Enquanto sua mãe chorava continuamente ao lado do caixão fechado, permanecia firme. Não derramou uma lágrima sequer. Estava destruída, mas não chorou. Por algum motivo que nunca soube entender muito bem, Júlia não chorou a morte do seu irmão querido. Escorada no caixão, chegou a quase sorrir algumas vezes ao recordar das brigas que tiveram, das brincadeiras no pátio da casa da avó. O irmão fora a única pessoa que sempre estivera ao seu lado, acontecesse o que acontecesse. E ela sempre fora a única que esteve junto dele em todos os momentos, bons e ruins. Desde que ele se envolvera com as drogas pela primeira vez, ela lhe dava o apoio que ele não encontrava em mais ninguém. A namorada o deixou. Os amigos também. Os pais desistiram, mas Júlia não. Ela acreditava nele. Acreditava que ele iria vencer. Mas ele não venceu e, antes de fazer algo que pudesse deixar sua irmã envergonhada, ele resolvera que era hora de partir. Naquele dia, ao lado do caixão do seu irmão, sem conseguir chorar, mas sentindo uma dor que sabia que nunca mais iria sentir, Júlia construiu o terceiro muro ao seu redor.

Durante um longo ano, vivera como se estivesse permanentemente em uma montanha russa de emoções. Tinha dias muito bons, mas a maioria deles era de profunda tristeza. A prostração tornou-se uma rotina e ela passou a se distanciar. Quando já não ouvia o que precisava ouvir, preferiu o silêncio. Havia encontrado um lugar somente seu, em que se sentia, ao mesmo tempo, protegida e completa. Buscou no trabalho solitário e, ainda mais, na convivência sincera consigo mesma, a serenidade que traria o equilíbrio que desejava.

Superada a fase difícil, vivia agora do jeitinho que queria viver. Vivia para si e, mesmo sozinha, nunca se sentira tão inteira na vida. Demorara, mas compreendera que não era possível se sentir plena sem uma dose de individualismo. Buscara nos outros a paz de uma vida suave, mas somente encontrara a dor do falso interesse.

Mais do que momentos de efusiva alegria, de intenso êxtase, o riso fácil, o prazer vazio, procurava dentro de si a sintonia com as energias ao seu redor que pudesse trazer significado para o que sentia, sentido para o que entendia e clareza para o que sonhava em conhecer.

Júlia não sabia se iria viver aquele amor pintado. Ela sequer sabia se voltaria a viver um amor. Havia se distanciado de todas as coisas que pudessem lhe magoar. Criara muros imaginários ao seu redor, recolhera-se a uma vida segura. Pagava o preço por isso. Sentia falta de ser especial para outra pessoa. Não tinha com quem conversar após um dia de intenso conflito com um egocêntrico autor irredutível. Não tinha com quem debater o filme que aguardava ansiosamente para ver. Não tinha quem lhe preparasse um chá quente quando sofria com seus recorrentes resfriados. Não vivia a vida que queria viver, mas a que podia suportar.

Pintado no muro em frente à janela, uma declaração de amor.

“Ainda te amo, Júlia.”

Antes de dormir, depois de passar o dia inteiro pensando naquilo, ela guardou no armário da área de serviço a pequena lata de tinta e o pincel ainda manchado. Por uma semana, ela seria intensamente amada. Alguém haveria de considerá-la muito especial na próxima segunda-feira. Alguém haveria.

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