sábado, 25 de fevereiro de 2017

Lindo foi o dia em que choveu amor



Lindo foi o dia em que choveu amor naquela cidadezinha pacata do interior.

Era o meio da tarde de uma quarta-feira de outono. Fazia um frio incomum para a época do ano. As pessoas caminhavam encasacadas pelas ruas e quase não se ouviam vozes. Na janela, senhorinhas observavam o movimento enquanto tomavam chá quente. No campo, os plantadores e colhedores semeavam e colhiam sob o céu de um azul celeste sem uma nuvem sequer em todo o horizonte que os olhos podiam ver. Na escola primária, a professora passava uma lição de matemática para uma turma de atentos alunos. O carteiro levava na bolsa o relato de um filho que sentia saudades da mãe que deixou para trás. Uma menina corria de bicicleta pela estrada de terra batida. Um velho homem pescava sozinho no açude.

Tudo ocorria como sempre ocorrera. Era apenas mais um dia normal naquela cidadezinha pacata do interior.

Até que choveu amor.

Foi de repente. Não houve anúncio. Nem um trovão sequer. Veio uma gota. E depois outra. E, depois, vieram todas as demais. Era uma chuva quente e leve. De início, ninguém percebeu que aquela era uma chuva especial. Seguiram todos nos seus afazeres. Aquilo não os atrapalharia.

Quem primeiro notou que havia algo de diferente nos pingos que caíam lépidos do céu foi uma menina. Sete anos de idade. Cabelos escuros abaixo dos ombros. Grandes e curiosos olhos castanhos. Ela estava sozinha, sentada no meio-fio da calçada em frente à casa onde morava com a mãe e a avó. Nas mãos, tinha um livro. Ela quase sempre tinha um livro nas mãos. Quando não os segurava, carregava no cesto da bicicleta, ou deixava na mesinha ao lado da cama, ao alcance de um espichar de braço. Naquela tarde, ela estava sentada no meio-fio da calçada em frente à casa onde morava com a mãe e a avó.

Quando a primeira gota explodiu sobre as páginas do seu livro aberto, ela não se assustou nem saiu correndo para se abrigar. Ficou onde estava e sorriu. De pronto, percebeu que aquela não se tratava de uma chuva comum. Sentiu o calor tocando sua pele e um perfume de rosas no ar. Ouviu os pássaros inquietos saírem dos galhos das árvores e dançarem em conjunto no ritmo do bater das asas.   

Luana era o seu nome. Ela estudava pela manhã e era uma aluna bem adiantada na sua turma. Na escola, tinha fama de bagunceira, mas não era verdade. O que os professores entendiam como desobediência e indisciplina, era, na realidade, insatisfação com o básico. Luana tinha em si aquele sopro de curiosidade viva que todos têm quando nascem e que vão perdendo com o passar dos anos. Apenas alguns poucos o mantém. Aquele sopro. Luana o manteve.

Olhou para o céu e viu nuvens cor de rosa formando desenhos. A menina ficou de pé. Maravilhada, tirou os óculos de aros grossos, esfregou os olhos, e voltou a colocá-los. Ela não duvidava daquilo que via. Não achava que aquilo era um sonho ou algum tipo de alucinação. Ela acreditava na possibilidade de coisas extraordinárias acontecerem. Sempre acreditara. Nunca fechara seu coração para o fantástico. Nunca deixara de acreditar no impossível.

Era um ponto colorido em meio ao cinza. Pele rosada junto à palidez. Estrela brilhante no céu noturno.

Um formigamento tomou conta de seu franzino corpo. Começou a dar pequenos saltos no mesmo lugar. Precisava correr. Olhar tudo, percorrer os caminhos de sua infância, gritar bem alto, avisar a todos. Por que não estavam na rua como ela? Por que se escondiam sob os telhados? Por que não olhavam para o céu? Do que fugiam?

Fechou os olhos e respirou fundo. O mais fundo que podia respirar. Ali, em seu momento íntimo consigo mesma, Luana buscava encontrar-se com sua essência. Ela sabia que aquilo iria acontecer uma hora ou outra. Sempre soube. Não gostava de ficar em seu quarto. Ia para a escola caminhando, não de ônibus. Insistia para os professores darem aulas ao ar livre. Não perdia a oportunidade de tomar um banho de chuva por nada. Andava descalça sempre que podia. Era livre em sua imaginação e isso lhe bastava para ser feliz.

Quando começou a chover amor naquela tarde, percebeu que tudo se encaixava. Tudo fazia sentido. Tudo finalmente fazia sentido. Cada escolha. Cada olhar. Cada sensação. Seu corpo, agora respondia ao que seu espírito sempre lhe mostrou. Estava certa em sua inocente rebeldia.

Foi retirada de seu transe quando, da janela, sua avó gritou pelo seu nome. Mandando a neta entrar para se proteger da chuva e não pegar um resfriado, ela chegou a elevar o tom da voz, mas Luana não lhe deu ouvidos. Aquilo não fora um desrespeito a avó que a amava tanto. Acima de tudo, a menina respeitava o espetáculo que a vida e o universo lhe proporcionavam naquele instante e que não sabia se iria se repetir. Provavelmente não. Nunca ouvira falar que, no passado, já chovera amor na cidade. Era a primeira vez. Talvez, a última. Possivelmente, a única. Assim, antes de obedecer à avó, Luana precisava respeitar a sua natureza inquieta. Precisava ouvir a sua voz interior que, desde que ela se conhecia por gente, gritava bem alto por mais, por muito mais.

Saiu em disparada pelas ruas de pedra regular. Os cabelos soltos e as mãos balançando a cada passo, a cada salto. Não levava nada nas mãos. Deixara o livro sobre o meio fio da calçada. Percorrendo as ruas, dobrando as esquinas, cruzando os caminhos, ela ia batendo em todas as portas de todas as casas. Queria que todos que viviam naquela cidadezinha pacata do interior saíssem à rua, vissem o que estava acontecendo, sentissem o que estava acontecendo.

Enquanto corria, abria os braços para sentir a chuva tocar sua pele e abria a boca tentando capturar uma gota aqui e outra ali. Sempre imaginara como seria o gosto do amor se ele fosse uma fruta. Em sua imaginação, o amor não seria igual a nenhuma outra fruta conhecida. Seria algo novo, totalmente diferente. Teria todas as cores, seria doce e forte e suave e teria o poder de transformar a vida de quem a provasse. E brotaria em todos os lugares, desde que fosse regada com afinco, desde que fosse cuidada e valorizada. Desde que fosse tratada sempre como a primeira, sempre como a única.

Não foram muitas as almas que se sentiram tocadas pelo chamado de Luana. Foram bem poucas, aliás. O barbeiro olhou para a porta com cara de poucos amigos e seguiu lendo seu jornal. O farmacêutico continuou fazendo o balanço de seu estoque de remédios. A costureira sequer se levantou de onde estava pregando botões em um vestido de noiva. A advogada abriu rapidamente a cortina para ver se era um novo cliente e, desanimada, voltou aos processos.

Luana seguia correndo. Entrou no pátio da escola e bateu nas portas de todas as salas, inclusive na da diretora, que, ao sair, só viu o rastro de poeira deixado para trás no corredor. A menina até tentou entrar no hospital, queria trazer os doentes para a rua, um por um, para experimentarem aquilo que ela experimentava, a vida em sua magnitude, mas os guardas mal-humorados não a deixaram passar da recepção. Uma pena, pois achava que, se o amor, um novo amor, tinha o poder de curar um coração partido, o que não faria com uma pneumonia?

Cansada de correr e gritar sem ser ouvida, a menina teve de parar e recuperar o fôlego. Olhando a chuva cair, percebeu que tudo ao seu redor estava diferente. Havia mais frutos nas árvores e a grama no parque estava mais verde. Os jardins floriram fora de época e o vento assoviava canções de ninar.

Sozinha na rua sob a chuva de amor, Luana se pegou pensando em quão formidável era aquilo que se passava naquela pequena cidade do interior e em quão sortuda ela era em estar ali naquele momento. Olhando para o céu, para o chão, olhando à sua volta, para suas mãos, a menina imaginou qual a probabilidade de aquilo ocorrer uma única vez na história do mundo e ser na sua cidade e ser em uma época em que ela estava viva caminhando sobre a Terra. Luana era boa em matemática, mas achou que gastar alguns minutos para fazer o cálculo seria um desperdício de vida. Bastava saber que a possibilidade de todos aqueles fatores ocorrerem era mínima, menor do que mínima, quase inexistente.

Era uma privilegiada, portanto. O universo age de modos misteriosos e inexplicáveis e, desta vez, conspirara para que chovesse amor naquele fim de mundo. E foi assim que aconteceu.

Findou seu périplo pela cidade e se viu na praça central, bem no meio dela. A chuva cessara. Um arco-íris colorido pintava o céu.

Ao seu redor, a cidade permanecia a mesma. Nada mudara. Ninguém saíra à rua para ver a chuva. Ninguém abrira a boca para sentir o gosto das gotas na ponta da língua. Todos seguiram suas rotinas ordinárias, em suas vidas coreografadas.

Luana vivera um sonho. Se aquilo tudo fora real ou não, não sabia ao certo.

Na janela de sua casa, a avó gritava por seu nome. “Vai pegar um resfriado, menina!”, dizia. Provavelmente, ela estava certa. Luana corria grande risco de se resfriar. Seus cabelos pingavam, o vestido estava encharcado e os pés descalços estavam sujos de lama. Ainda sem responder ao chamado da avó, a menina fechou os olhos e tentou se desligar de todos os pensamentos. Queria gravar com tinta forte em sua memória aquilo que havia vivido há pouco. Respirou fundo e sorriu. Estava feliz. Profundamente feliz.

Aos sete anos de idade, Luana soube qual era o seu lugar no universo. Todas as terras distantes, todos os recantos escondidos, todas as cidades e campos, ao Norte e ao Sul. Não importa onde estivesse, não importa por onde andasse, ela sempre estaria ali, naquela rua, em frente à sua casa, banhada por gotas de amor.

Lindo foi o dia...

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