sábado, 29 de junho de 2019

Relato de uma cena em um final de sábado


Em pé enquanto esperam um ônibus que custa chegar em uma noite chuvosa de sábado em Porto Alegre, um casal discute a relação. Falam em tom de voz normal sem se preocupar se estavam sendo ouvidos por mim, que fazia companhia a eles já há um bom tempo.

– Tu não disseste que tinha me esquecido? – diz ela.

– Tu não podes levar a sério o que eu falo quando estou magoado – responde ele.

Foi possível ouvir apenas isso antes de os dois embarcarem no coletivo que encostou junto ao meio-fio da calçada espirrando água na minha calça jeans.

Sozinho no ponto de ônibus, peguei-me pensando o seguinte: moça, nós, humanos, nunca esquecemos. A gente não esquece quando fica em silêncio e não esquece quando diz que esqueceu.

A gente principalmente não esquece quando diz que esqueceu.

quarta-feira, 12 de junho de 2019

NÃO TE AMO PORQUE...




Em uma úmida madrugada de um dia 12 de junho, ele preparou uma caneca de chá quente, pegou seu caderno de amareladas folhas, um lápis, sentou na varanda vendo os clarões da tempestade que se aproximava, e riscou as razões pelas quais não a amava.

"Não te amo porque preciso de ti, ou porque és minha metade.
Te amo porque não preciso de ti e, mesmo assim, te quero.
Te amo porque sou inteiro, completo, e tu, tu me transbordas.

Não te amo porque me fazes sorrir ou porque sinto tua falta.
Te amo pelo teu sorriso.
Te amo porque, embora não estejas, sempre estás – e estarás.

Não te amo porque me olhas com carinho, porque me tocas, porque me acolhes.
Te amo porque me enxergas até quando me escondo em mim.
Te amo porque me estendes a mão.
Porque me empurras para fora e me mostras como pode ser frio por lá e como é quente junto a ti.

Não te amo porque sonho com o ‘para sempre ao teu lado’.
Te amo porque te desejo aqui, comigo, agora.

Não te amo porque me escutas, porque me fazes companhia
Te amo porque me deixas só e me silencias.

Não te amo porque dizes que me ama.
Te amo porque não dizes e, ainda assim, te amo."

sábado, 1 de junho de 2019

Relato de um encontro casual qualquer





Não se lembrava de já tê-lo visto. Ainda assim, ele parecia ter um rosto familiar. Ela remexia suas memórias em busca de um nome, de um lugar. Uma imagem sem foco, lembrança distante de algum momento que não tinha certeza de ter vivido. Talvez um retrato na parede de uma sala de estar, ou uma história sem final perdida em um baú de espantos.

Em vão, tentou recordar de um instante, de uma palavra, de alguém. Sem encontrar sua resposta, aceitou que existem coisas que a vida não explica. Simplesmente ocorrem. Recordações imprecisas de fatos que nunca aconteceram. Restos de tempo.

Estavam sentados lado a lado.

Ele, de cabeça baixa, lia um livro repousado no colo e que ela tentava descobrir qual era. Ela, se esforçando para tentar disfarçar o nervosismo, estalava os dedos sem saber para onde olhar.

Ela notara que ele estava inquieto e interpretara como um sinal de que, talvez, realmente já tivessem se visto antes. Não seria algo incomum. A cidade era grande, mas tinha um quê de interior. Seguidamente reencontrava ao acaso pessoas que já tinham cruzado o seu caminho em algum momento e que, assim como chegaram, tinham ido embora. Agora, se via frente a alguém que não lhe era de todo estranho, mas que não tinha ideia de quem poderia ser, de qual momento passaram juntos.

Ele parecia mais jovem do que ela, mas não muito. Não haviam sido colegas de escola ou de faculdade, portanto. Nada impedia, porém, que tivessem amigos em comum, que já tivessem sido apresentados um ao outro, que uma música em uma festa qualquer pudesse tê-los aproximado.

De fato, a simples presença daquele rapaz ao seu lado lhe despertou uma sensação de deja vu. Ele não precisou dizer ou fazer nada. Ela não precisou ligar aquele momento a nenhuma memória antiga. Era ele. Apenas ele.

Havia algum tipo de conexão entre ambos. Enquanto ele lia, sem conseguir esconder algum desconforto pela situação, ela pensava e pensava, fazendo ilações com acontecimentos importantes de sua vida e buscando nos lugares mais escondidos e escuros de suas lembranças alguma passagem que pudesse lhe dizer de onde o conhecia.

Poderia dar fim àquele martírio pedindo licença por interromper a leitura e perguntando se, por acaso, já haviam se visto antes. Quem sabe ele se lembraria. Suspeitou que algum tipo de bloqueio a estivesse impedindo de encontrar a reposta para a dúvida que a perturbava desde que sentara naquele banco de ônibus há alguns minutos. Teria de desapegar daqueles pensamentos. Sim, teria de fazer isso. Era uma iniciante nas práticas da meditação e sabia que uma das formas de acessar suas recordações esquecidas era não pensar em como encontrá-las, não pensar em nada relacionado a elas, distanciar-se, apagar as memórias recentes e, assim, abrir caminho para as lembranças perdidas.

Tentou se concentrar, mas, a cada balanço do ônibus ao passar por um desnível na pista, a cada campainha sinalizando que um passageiro iria descer, a cada buzina tocada por um motorista impaciente, perdia o fio de sua experiência sensorial e se via, mais uma vez, diante do homem que sabia que conhecia, mas não tinha a menor ideia de quem era.

Passou, então, a prestar atenção nos detalhes. Talvez alguma característica peculiar a fizesse lembrar quem ele era. O jeito com que movia os lábios ao ler em silêncio, o modo como arqueava a sobrancelha direita a cada passagem do texto que o chamava atenção, a maneira com que coçava a barba da boca até a ponta do queixo.

Nada.

Ela era psicóloga. Tinha um consultório no Centro da cidade e um bom número de clientes. Já havia ouvido de tudo. Conhecia bem os meandros da mente humana. Sabia que seu cérebro poderia estar enganando-a. E sabia até porque ele poderia estar fazendo isso.

Saber o que se passava em sua cabeça, porém, não diminuía sua aflição. Ao contrário. Racionalizava o cenário e esquadrinhava as possibilidades que seu estudo e experiência lhe indicavam.

Sempre teve o controle de tudo. Sempre fora tão dona de si, de seus pensamentos, de suas atitudes, de seu passado e de seu futuro. Agora, seu presente lhe pregava uma peça.

Os pontos de ônibus iam ficando para trás e ela via o tempo para solucionar aquele enigma escorrer por suas mãos suadas.

Ele, por sua vez, lia sem sequer erguer a cabeça. Precisava terminar aquele livro. Estava preso a ele há quase três meses. Era um livro chato, mas ele nunca abandonara uma leitura antes do fim. Fosse ruim ou fosse péssima. Não seria daquela vez que o faria.

Ela pensou em iniciar uma conversa. Ouvir a voz dele poderia acionar algum lugar escondido de suas lembranças. Colocar luz sobre um momento que ficou esquecido sob camadas e mais camadas de novos acontecimentos

Isso. Precisava ouvir a voz dele.

Tinha de ser discreta, porém. Ele não podia notar seu interesse.

Assim, forjou uma cruzada de pernas que resultou em um pisão no pé direito dele.

- Perdão, perdão... sou muito desastrada mesmo –, disse, esperando que, em troca, ele lhe falasse algo, um “não foi nada”, que fosse.

Não logrou êxito na iniciativa, porém.

Ele apenas deu um meio sorriso e meneou a cabeça brevemente, retornando suas atenções para o livro no seu colo.

Mais alguns pontos ficaram para trás. Ela tinha de encontrar uma solução urgente, um meio, qualquer meio, para resolver aquele mistério e acalmar seus pensamentos.

Ela sabia que aquilo iria lhe atormentar por muito tempo. Conhecia-se muito bem. Era obsessiva compulsiva. Não iria conseguir descansar até encontrar a resposta que procurava. Sabia também que, após descer daquele ônibus, as coisas ficariam mais difíceis. Pouco a pouco, a face dele iria se perder, assim como os trejeitos, o modo de sentar e levar o dedo indicador à boca para poder trocar de página. Tudo isso iria sumir e, sumindo, tornariam sua empreitada quase impossível.

Corria contra o relógio. Ficava feliz cada vez que o coletivo parava e muitas pessoas embarcavam e desembarcavam. Isso lhe dava mais tempo.

A tranquilidade dele a incomodava demasiadamente. Se ela o conhecia, ele deveria conhecê-la também. Porque, então, não demonstrava intenção alguma em resolver aquilo? Porque não se incomodava com aquela situação? Porque não reagia?

- Por acaso, tu poderias me dizer as horas? –, perguntou, esperando que ele abrisse a boca para dizer algo de verdade e não apenas mover os lábios no ritmo da leitura silenciosa.

Como que zombando do desespero dela, ele tomou o telefone celular do bolso, apertou em um botão lateral, e mostrou os 19h27min que brilhavam na tela.

- Obrigada –, disse ela, com um perceptível tom de desapontamento na voz.

Iria desistir. Provavelmente, nunca haviam se visto antes. Sua mente estava lhe pregando uma peça, certamente. Não seria a primeira vez. Andava muito cansada do trabalho e a reta final da tese de seu doutorado estava lhe tirando noites e noites de sono. Precisava de um dia ou dois de folga. Apenas dormir. Era isso que estava precisando: dormir.

Ela fechou os olhos e imaginou a cidade que ficava para trás do lado de fora. Tentou deter seu nervosismo. As ruas se fizeram borrões e os pensamentos escorreram junto com a chuva fina que descia pelo vidro.

Ficou ali, alheia a tudo ao seu redor, por alguns minutos, uns cinco, ou dez, ou talvez apenas um ou dois. Só saiu de seu transe quando o coletivo freou bruscamente para evitar um atropelamento.

O seu ponto de desembarque era o próximo.

Era isso. Ela estava indo embora. Ele iria seguir. Possivelmente, nunca mais o veria. Tinha a certeza, porém, de que a lembrança dele e daquele fim de tarde no coletivo a iriam perseguir por meses e meses e, quem sabe, anos e anos.

O ônibus reduziu a velocidade gradualmente até parar. A porta se abriu. Ela desceu os degraus lentamente. Antes de dar o último passo, porém, virou-se para olhar para ele pela última vez.

Ele, que permanecera imóvel durante todos aqueles pequenos momentos, ergueu a cabeça, como que movido por uma força oculta que o obrigava a fazer isso, e, então, seus olhares se cruzaram por um instante.

Foi o bastante.

Já na rua, parada e sozinha, olhando o coletivo se distanciar ao som das gotas explodindo no asfalto, ela via as memórias se desenrolarem em sua mente como um novelo. Era ele. Sabia que o conhecia. Era ele. Depois de tanto tempo, depois de tantas outras histórias, aquelas páginas ainda estavam lá, empoeiradas, esquecidas, amareladas. Mas ainda estavam lá.

Dentro do ônibus, ele guardou o livro na mochila. Tirou os óculos, esfregou os olhos e olhou através da janela para a rua. As luzes e as cores borradas, assim como os rostos e todo o resto. Era difícil de acreditar. Ela não o reconhecera. Depois de tanto tempo, depois de tantas outras histórias, aquelas páginas, as que escreveram juntos, já não estavam mais lá. Foram esquecidas, rasgadas e descartadas. Não estavam mais lá.

Eles já não eram os mesmos. A vida os afastara e os transformara. Os mastigara e os cuspira.

Mas a viagem seguia.

A viagem sempre segue...