Não se lembrava de
já tê-lo visto. Ainda assim, ele parecia ter um rosto familiar. Ela
remexia suas memórias em busca de um nome, de um lugar. Uma imagem sem foco,
lembrança distante de algum momento que não tinha certeza de ter vivido. Talvez
um retrato na parede de uma sala de estar, ou uma história sem final perdida em
um baú de espantos.
Em vão, tentou
recordar de um instante, de uma palavra, de alguém. Sem encontrar sua resposta,
aceitou que existem coisas que a vida não explica. Simplesmente ocorrem. Recordações
imprecisas de fatos que nunca aconteceram. Restos de tempo.
Estavam sentados lado a lado.
Ele, de cabeça
baixa, lia um livro repousado no colo e que ela tentava descobrir qual era. Ela,
se esforçando para tentar disfarçar o nervosismo, estalava os dedos sem saber
para onde olhar.
Ela notara que ele
estava inquieto e interpretara como um sinal de que, talvez, realmente já
tivessem se visto antes. Não seria algo incomum. A cidade era grande, mas tinha
um quê de interior. Seguidamente reencontrava ao acaso pessoas que já tinham
cruzado o seu caminho em algum momento e que, assim como chegaram, tinham ido
embora. Agora, se via frente a alguém que não lhe era de todo estranho, mas que
não tinha ideia de quem poderia ser, de qual momento passaram juntos.
Ele parecia mais
jovem do que ela, mas não muito. Não haviam sido colegas de escola ou de
faculdade, portanto. Nada impedia, porém, que tivessem amigos em comum, que já
tivessem sido apresentados um ao outro, que uma música em uma festa qualquer
pudesse tê-los aproximado.
De fato, a simples
presença daquele rapaz ao seu lado lhe despertou uma sensação de deja vu. Ele
não precisou dizer ou fazer nada. Ela não precisou ligar aquele momento a
nenhuma memória antiga. Era ele. Apenas ele.
Havia algum tipo de
conexão entre ambos. Enquanto ele lia, sem conseguir esconder algum desconforto
pela situação, ela pensava e pensava, fazendo ilações com acontecimentos
importantes de sua vida e buscando nos lugares mais escondidos e escuros de
suas lembranças alguma passagem que pudesse lhe dizer de onde o conhecia.
Poderia dar fim àquele
martírio pedindo licença por interromper a leitura e perguntando se, por acaso,
já haviam se visto antes. Quem sabe ele se lembraria. Suspeitou que algum tipo
de bloqueio a estivesse impedindo de encontrar a reposta para a dúvida que a
perturbava desde que sentara naquele banco de ônibus há alguns minutos. Teria
de desapegar daqueles pensamentos. Sim, teria de fazer isso. Era uma iniciante
nas práticas da meditação e sabia que uma das formas de acessar suas recordações
esquecidas era não pensar em como encontrá-las, não pensar em nada relacionado
a elas, distanciar-se, apagar as memórias recentes e, assim, abrir caminho para
as lembranças perdidas.
Tentou se
concentrar, mas, a cada balanço do ônibus ao passar por um desnível na pista, a
cada campainha sinalizando que um passageiro iria descer, a cada buzina tocada
por um motorista impaciente, perdia o fio de sua experiência sensorial e se
via, mais uma vez, diante do homem que sabia que conhecia, mas não tinha a
menor ideia de quem era.
Passou, então, a
prestar atenção nos detalhes. Talvez alguma característica peculiar a fizesse
lembrar quem ele era. O jeito com que movia os lábios ao ler em silêncio, o
modo como arqueava a sobrancelha direita a cada passagem do texto que o
chamava atenção, a maneira com que coçava a barba da boca até a ponta do
queixo.
Nada.
Ela era psicóloga.
Tinha um consultório no Centro da cidade e um bom número de clientes. Já havia
ouvido de tudo. Conhecia bem os meandros da mente humana. Sabia que seu cérebro
poderia estar enganando-a. E sabia até porque ele poderia estar fazendo isso.
Saber o que se
passava em sua cabeça, porém, não diminuía sua aflição. Ao contrário.
Racionalizava o cenário e esquadrinhava as possibilidades que seu estudo e
experiência lhe indicavam.
Sempre teve o
controle de tudo. Sempre fora tão dona de si, de seus pensamentos, de suas
atitudes, de seu passado e de seu futuro. Agora, seu presente lhe pregava uma
peça.
Os pontos de ônibus
iam ficando para trás e ela via o tempo para solucionar aquele enigma escorrer
por suas mãos suadas.
Ele, por sua vez, lia sem sequer erguer a cabeça. Precisava
terminar aquele livro. Estava preso a ele há quase três meses. Era um
livro chato, mas ele nunca abandonara uma leitura antes do fim. Fosse ruim ou
fosse péssima. Não seria daquela vez que o faria.
Ela pensou em
iniciar uma conversa. Ouvir a voz dele poderia acionar algum lugar escondido de
suas lembranças. Colocar luz sobre um momento que ficou esquecido sob camadas e
mais camadas de novos acontecimentos
Isso. Precisava
ouvir a voz dele.
Tinha de ser
discreta, porém. Ele não podia notar seu interesse.
Assim, forjou uma
cruzada de pernas que resultou em um pisão no pé direito dele.
- Perdão, perdão...
sou muito desastrada mesmo –, disse, esperando que, em troca, ele lhe falasse
algo, um “não foi nada”, que fosse.
Não logrou êxito na
iniciativa, porém.
Ele apenas deu um
meio sorriso e meneou a cabeça brevemente, retornando suas atenções para o
livro no seu colo.
Mais alguns pontos
ficaram para trás. Ela tinha de encontrar uma solução urgente, um meio,
qualquer meio, para resolver aquele mistério e acalmar seus pensamentos.
Ela sabia que
aquilo iria lhe atormentar por muito tempo. Conhecia-se muito bem. Era
obsessiva compulsiva. Não iria conseguir descansar até encontrar a resposta que
procurava. Sabia também que, após descer daquele ônibus, as coisas ficariam
mais difíceis. Pouco a pouco, a face dele iria se perder, assim como os
trejeitos, o modo de sentar e levar o dedo indicador à boca para poder trocar
de página. Tudo isso iria sumir e, sumindo, tornariam sua empreitada quase
impossível.
Corria contra o
relógio. Ficava feliz cada vez que o coletivo parava e muitas pessoas
embarcavam e desembarcavam. Isso lhe dava mais tempo.
A tranquilidade
dele a incomodava demasiadamente. Se ela o conhecia, ele deveria conhecê-la
também. Porque, então, não demonstrava intenção alguma em resolver aquilo? Porque
não se incomodava com aquela situação? Porque não reagia?
- Por acaso, tu
poderias me dizer as horas? –, perguntou, esperando que ele abrisse a boca para
dizer algo de verdade e não apenas mover os lábios no ritmo da leitura
silenciosa.
Como que zombando
do desespero dela, ele tomou o telefone celular do bolso, apertou em um botão
lateral, e mostrou os 19h27min que brilhavam na tela.
- Obrigada –, disse
ela, com um perceptível tom de desapontamento na voz.
Iria desistir.
Provavelmente, nunca haviam se visto antes. Sua mente estava lhe pregando uma
peça, certamente. Não seria a primeira vez. Andava muito cansada do trabalho e
a reta final da tese de seu doutorado estava lhe tirando noites e noites de
sono. Precisava de um dia ou dois de folga. Apenas dormir. Era isso que estava
precisando: dormir.
Ela fechou os olhos e imaginou a cidade que ficava para trás do lado
de fora. Tentou deter seu nervosismo. As ruas se fizeram borrões e os pensamentos
escorreram junto com a chuva fina que descia pelo vidro.
Ficou ali, alheia a
tudo ao seu redor, por alguns minutos, uns cinco, ou dez, ou talvez apenas um
ou dois. Só saiu de seu transe quando o coletivo freou bruscamente para evitar um atropelamento.
O seu ponto de desembarque era o próximo.
Era isso. Ela estava indo embora. Ele iria seguir. Possivelmente, nunca mais o veria. Tinha a
certeza, porém, de que a lembrança dele e daquele fim de tarde no coletivo a
iriam perseguir por meses e meses e, quem sabe, anos e anos.
O ônibus reduziu a
velocidade gradualmente até parar. A porta se abriu. Ela desceu os degraus
lentamente. Antes de dar o último passo, porém, virou-se para olhar para ele
pela última vez.
Ele, que
permanecera imóvel durante todos aqueles pequenos momentos, ergueu a cabeça,
como que movido por uma força oculta que o obrigava a fazer isso, e, então,
seus olhares se cruzaram por um instante.
Foi o bastante.
Já na rua, parada e
sozinha, olhando o coletivo se distanciar ao som das gotas explodindo
no asfalto, ela via as memórias se desenrolarem em sua mente como um novelo.
Era ele. Sabia que o conhecia. Era ele. Depois de tanto tempo, depois de tantas
outras histórias, aquelas páginas ainda estavam lá, empoeiradas, esquecidas,
amareladas. Mas ainda estavam lá.
Dentro do ônibus, ele
guardou o livro na mochila. Tirou os óculos, esfregou os olhos e olhou através
da janela para a rua. As luzes e as cores borradas, assim como os rostos e todo
o resto. Era difícil de acreditar. Ela não o reconhecera. Depois de tanto
tempo, depois de tantas outras histórias, aquelas páginas, as que escreveram
juntos, já não estavam mais lá. Foram esquecidas, rasgadas e descartadas. Não
estavam mais lá.
Eles já não eram os
mesmos. A vida os afastara e os transformara. Os mastigara e os cuspira.
Mas a viagem
seguia.
A viagem sempre
segue...