segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Ela era oceano, ele era rio


Estavam apaixonados. Davi e Jasmin estavam apaixonados. Difícil acreditar que estivessem, eram tão diferentes um do outro. Mas estavam. Davi e Jasmim estavam apaixonados.

Ela era dois anos mais nova do que ele. Ele era um amante da ciência. Ela era espiritualizada até a raiz do fios dos cabelos castanhos. Ele sofria por não conseguir vislumbrar um futuro para os dois. Ela vivia feliz com cada momento que estavam juntos.

Eram um casal improvável.

Jasmin era oceano. Aberta, livre, sem limites e sem destino. Queria ser. Em plenitude.

Davi era rio. Consciente de suas margens, buscava avançar, descobrir algo novo na próxima curva.

A paixão os pegou de repente. Sem aviso algum, sem sequer um sinal discreto. Conheciam-se há alguns anos já. Haviam trocado poucas palavras. Nada demais.

Uma certa noite, um temporal, guarda-chuva e sombrinha esquecidos em casa. Lá estavam eles, dois quase desconhecidos, parados, inertes, junto à portaria da faculdade.

Por um momento, houve certo desconforto. Perceberam que estavam próximos demais um do outro. Um passo curto para lado.

A chuva cada vez mais forte e nenhum sinal de que iria parar tão cedo. Os minutos passando e se tornando hora.

Com a noite sendo cada vez mais noite, a faculdade foi esvaziando. Uns saíram em grupos, outros, sozinhos. Eles, seguiam ali.

Davi não queria se molhar. Tinha medo de pegar um resfriado, depois, uma gripe, e, depois, uma pneumonia. Ele tinha a saúde um tanto quanto frágil.

Jasmim não tinha pressa. Contemplava encantada os clarões iluminando o céu noturno, e os sons e cheiros que a água explodindo em fúria no chão lhe proporcionava.

Eram rio e oceano.

As luzes foram desligadas.

Davi se sentou no degrau que dava para a rua.

Jasmim fez o mesmo.

Ficaram ali. Sentados. Lado a lado.

A chuva foi enfraquecendo. O silêncio, aumentando.

Davi estava prestes a se levantar e seguir caminho para casa quando sentiu Jasmin se aproximar e apoiar a cabeça sobre o seu ombro esquerdo.

Pronto. Estava feito.

Moça e rapaz, sentados no degrau da entrada da faculdade em uma noite chuvosa.

Foi assim que aconteceu.

Muita coisa se passou desde aquele dia. Se conheceram, se aproximaram, contaram histórias – e até segredos.

Tornaram-se amigos muito próximos.

Ele sabia que ela adorava ouvir heavy metal. Ela sabia que ele chorava toda vez que assistia ET na Sessão da Tarde. Ele sabia que ela fazia barulhos estranhos ao dormir. Ela sabia que ele nunca conseguiu andar de bicicleta.

Sabiam muito um sobre o outro.

Só não sabiam que iriam se apaixonar.

Davi se deu conta disso quando se pegou escrevendo o nome dela repetidas vezes em uma folha do caderno no meio de uma aula de Economia.

Jasmim, por sua vez, percebeu na noite em que ele não lhe mandou uma mensagem sequer pelo celular e ela sentiu um aperto no peito que há muito não sentia.

Assim, apaixonados, ambos, tentavam lidar com seus sentimentos sem fazer com que a amizade pudesse ser afetada.

Queriam mais, entretanto, temiam perder o que já tinham.

O dilema clichê. Sempre ele.

A diferença no caso de Davi e Jasmim é que ela era oceano e ele era rio.

Cada um ao seu modo – às vezes onda tranquila, às vezes correnteza bravia –, trataram de encontrar meios de obter aquilo que queriam.

Davi decidiu ser discreto em suas investidas. Iria mais insinuar do que fazer, deixar nas entrelinhas do que dizer. Aos poucos, pensava ele, iria cimentar um caminho que o levaria para dentro do coração dela.

Jasmim tinha mais pressa. Queria viver aquilo o quanto antes. Sua paixão era urgente. Teria, assim, de agir, mas na medida certa, sem errar o tom, sem correr o risco de, pressionando-o, fazê-lo se afastar.

Com o final do semestre se aproximando, e junto dele a formatura em Engenharia, Davi achou que convidá-la para a festa da turma de formandos seria uma boa oportunidade para colocar em prática seu plano.

Com o final do semestre se aproximando, e junto dele o fim da convivência diária entre os dois, Jasmin achou que ir na festa da turma de formandos seria a oportunidade perfeita para dar o passo seguinte.

Sem saber que ela iria de qualquer maneira, ele a convidou. Sem saber os motivos do convite, ela aceitou na hora.

Davi fora o maior incentivador para que a festa fosse um baile e não uma balada. Smokings e vestidos longos. Banda no palco tocando música para dançar em par. Queria Jasmin como sua companhia durante toda a noite. Tinha imaginado tudo. Primeiro a dança. Depois, uma caminhada pelo jardim do clube e, por fim, um beijo apaixonado sob a luz das estrelas. Ele era um romântico. Sempre fora.

Jasmin imaginava que, lá pela terceira música – quem sabe, meados da segunda –, o clima estaria pronto para um beijo. Assim, poderiam curtir juntos, já como um casal, o resto da noite. A vida é curta demais para esperar pelo momento perfeito. Para ela, o momento perfeito é o agora. Sempre o agora.

Que linda noite aquela do baile com o qual Davi e Jasmin haviam sonhado durante toda a semana. Um céu sem nuvens revelava pingos brilhantes na escura imensidão do cosmos.

Quando ela surgiu na portaria do prédio, ostentando no corpo um vestido preto que só não brilhava mais que seus grandes olhos castanhos, ele ficou paralisado. Ela caminhou até ele e lhe fez uma pergunta.

- Estou bonita?

Ele se esforçou para sair de seu estado petrificado e respondeu com a voz firme.

- Mais que bonita. Estás poderosa.

Seguiram no banco de trás do carro que os levava. Jasmin, por ela, já o atacaria ali mesmo. Só não o fez por receio de o assustar. Davi, por sua vez, sentia as palmas das mãos suarem e lutava contar seu pé esquerdo que, ritmadamente, batia no chão impedindo que ele disfarçasse seu nervosismo.

O salão, adornado por luzes pendentes, tinha um perfume de flores do campo.

- Sentiste o perfume? São flores do campo –, disse ele junto ao ouvido dela.

Ela não havia sentido, mas achou aquilo fofo.

O baile fora ótimo. A banda era boa, as pessoas estavam animadas, a bebida, gelada, e a noite, calorosa.

As coisas para Davi e Jasmin, porém, não se deram do modo como eles esperavam. Ela não o beijara na terceira música. Ele não a levara para caminhar pelos jardins.

Já era madrugada e os últimos acordes dos músicos no palco deram fim à festa. Restara apenas o burburinho dos jovens remanescentes cansados e a pista de dança repleta de copos plásticos jogados ao chão.

Davi e Jasmin estavam frustrados.

Quase tristes.

Não entendiam o porquê de nada do que planejaram ter acontecido.

Estava tudo tão claro em suas cabeças.

Foram embora. Davi a deixou em casa. Um abraço e um beijo no rosto antes de dar as costas à garota por quem estava completamente apaixonado. Jasmin ficou em pé junto à portaria olhando o carro se afastar. Uma solitária lágrima rolou por seu rosto.

Sentado no banco de trás, Davi ia para casa com um sentimento estranho lhe apertando o peito. Não era dor, mas um incômodo que crescia a cada metro de asfalto que o veículo deixava para trás. Algo estava muito errado.

Deitada na cama, o olhar distante de Jasmin em direção ao teto do quarto denunciava seu estado de espírito. Não era tristeza, mas um vazio que embaralhou as cartas do jogo da sua vida. Algo, definitivamente, estava errado.

Não foi preciso mais do que alguns poucos minutos, entretanto, para que, no mesmo instante, como que movidos por uma força que os unia além da presença física, algum tipo de energia presente em ambos, se dessem conta do que estavam fazendo e, de um pulo, tomassem as rédeas do destino nas mãos e assumissem o controle daquela história.

Davi mandou o motorista dar meia volta e fincar o pé no acelerador. Jasmin ergueu-se, pegou a chave da porta do apartamento, e, descalça, desceu correndo as escadas.

O som dos pés dela nos corredores do prédio e o barulho do cantar dos pneus do carro a cada curva, se unidos, formariam uma sinfonia única, uma melodia composta só para eles dois.

Jasmim puxou a porta de entrada. Davi empurrou a porta do carro.

Jasmim ganhou a rua, sentindo as pedras machucarem seus pés. Davi, atravessou a rua sem olhar para os lados.

Os passos se tornaram mais rápidos e, de repente, cessaram. Ficaram estáticos, ambos.

Estavam frente a frente. Os olhos de um, nos olhos do outro.

Nenhuma palavra foi dita. Não foi necessário dizê-las.

Beijaram o beijo mais cheio de paixão que já foi beijado.

A madrugada caminhou para o seu fim, o sol surgia tímido, a escuridão despedia-se e dava lugar à luz da manhã.

Já em suas casas novamente, os dois não conseguiram dormir nem por um momento sequer naquele dia. Refletindo sobre tudo o que acontecera nas últimas horas, descobriram, assim, Davi e Jasmim, qual fora o erro que cometeram, o qual ainda tiveram tempo de corrigir: paixão não combina com planejamento. Paixão é loucura, instinto. Paixão é fazer antes de pensar. Paixão é calor, planejamento é frio.

Ela era oceano.

Ele era rio.

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